domingo, 15 de julho de 2012

Sobre uma leitura de Cage por A. de Campos

Entre ser e nada


Acabo de ver isto: http://www.erratica.com.br/opus/110/nada.html e, em seguida, isto: http://vimeo.com/29791907.

A conferência sobre o nada na interpretação de Augusto de Campos (gravada por Vanderley Mendonça e, no primeiro link, editada por André Vallias) enfatiza o auditório vazio. Que é, evidentemente, uma alegoria. O auditório real está em outra parte: do outro lado da tela: o internet surfer que clica no item, dentro da revista eletrônica.

Sendo assim, o que quer dizer a ênfase no auditório vazio? Ou melhor, a construção de um auditório vazio para a leitura filmada, pois neste momento e naquele lugar, o mais provável é que houvesse nele público significativo, não fosse a necessidade do cenário.

É uma espécie de testemunho sobre a época (Cage, 1949)? Ou afirmação sobre a nossa própria época (Campos et al., 2011)? Um lamento por não haver já quem se interesse por ouvir uma conferência sobre o nada, isto é, uma conferência que se reduza a um ato performativo, que se desdobra numa pregação de silêncio? Ou um elogio do solitário ouvinte que contempla a leitura e contempla o auditório vazio (ao qual, por contemplar, já não pertence)?

O pequeno filme configura o leitor/tradutor/intérprete, bem como aquele que assiste ao vídeo como figuras de exceção, irmanadas na recusa à suposta recusa de ouvir o que o poeta não tem a dizer.

Mas o poeta que quer o silêncio e quer dizer nada, quer dizer que tem o direito de não ter nada para dizer, exceto a vontade ou o imperativo de dizer – e que identifica a poesia com esse não-dizer ou dizer-nada – mas esse poeta, perguntava, que lugar real configura para o público? E para si mesmo?

Sem a afirmação negativa, isto é, sem a afirmação pela negação, onde está a poesia? Essa poesia, que se constrói como antipoesia, no sentido de ser uma declaração de ser o contrário do que a expectativa do suposto público (ausente da plateia filmada) teria do que fosse a poesia.

Mas quando quem vê é reduzido à pessoa eleita a que o discurso se dirige (com ou sem a edição que alude a um determinado tipo ou momento da história da poesia), qual o sentido do silêncio, ou da afirmação negativa, se não há expectativa a contrariar? É que aqui a expectativa é plenamente satisfeita. Contrariá-la seria apresentar um poema expressivo, narrativo, lírico ou de versificação tradicional – enfim, tudo o que o leitor acostumado ao discurso negativo da vanguarda e suas descendências não vê ou não aceita como seu contemporâneo. Mas não foi esse o caminho escolhido. Não sendo, qual o sentido da negação? Para quem e por que o poeta/tradutor/intérprete diz “não”? O “não”, aqui, dada a expectativa confirmada, vale por um “sim”, ou por um “assim queríamos demonstrar”. Vigora, pois, como reiteração do esperado. E do lugar à margem em que supostamente se encontram tanto o poeta quanto o seu realizador e o seu espectador.

Nesse caso, a intervenção tem um sentido apenas: reafirmar o acordo, revivificar o já ocorrido. Seu alcance, assim, é predominantemente histórico. Sua reflexividade ensaia, mais do que tudo, a afirmação do pertencimento e do lugar na série. Ou seja, a filiação – de olho na descendência. Reiteração, dogma, elogio, aceno cúmplice: é assim celebração, ou melhor, autocelebração (e eloquente) a coisa dita dessa forma e neste momento por meio da negação do dizer.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Haicai - entrevista a Álvaro Kassab


Haicai – entrevista a Álvaro Kassab


[Jornal da Unicamp - Edição 399 - 16 a 22 de junho de 2008]

O professor e escritor Paulo Franchetti, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), acaba de lançar Oeste (Atelie), reunião de haicais traduzidos para o japonês por Masuda Goga Hidekazu. O interesse do docente pelo gênero foi despertado há quase 30 anos, quando o escritor desenvolveu pesquisa acerca da poesia concreta. Na entrevista que segue, Franchetti fala sobre sua nova obra e analisa o papel do haicai na literatura brasileira contemporânea, sem perder de vista sua dimensão transnacional.
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Jornal da Unicamp – O haicai é um tema recorrente no conjunto de sua obra e em suas áreas de interesse, com ênfase nos aspectos estéticos e históricos. Agora, com a publicação de Oeste, o senhor deixa o ensaio de lado e parte para a prática, digamos, poética, já presente de certa maneira nos contos de O Sangue dos Dias Transparentes, nos quais a concisão era uma das características mais acentuadas. Como foi construído esse processo?
Paulo Franchetti – Tenho trabalhado com o haicai desde o final dos anos de 1970. Minha dissertação de mestrado foi sobre a teoria da Poesia Concreta, para a qual a escrita chinesa (e japonesa) era uma referência importante. Para entender melhor as reflexões de Haroldo e Augusto de Campos, via Ezra Pound, sobre a escrita então chamada de “ideogramática”, dediquei-me ao estudo da língua japonesa. E, na seqüência, sob a supervisão e com a parceria da minha colega do IEL, professora Elza Doi, à leitura e tradução de haicais.
Foram vários anos de trabalho, de que resultou, entre outros textos, o livro Haikai – antologia e história, publicado pela Editora da Unicamp, em 1990. Aos poucos comecei a escrever haicai, depois de assistir aos concursos nacionais que se realizavam no Centro Cultural São Paulo e de me aproximar de um grupo de praticantes da arte que se reuniam, em São Paulo, numa sala da Aliança Cultural Brasil-Japão. Creio que foi o estímulo dessa convivência que me levou a escrever haicais de modo regular. E essa é uma característica do haicai que me agrada muito: o seu caráter de prática coletiva.
Nisso, o haicai se parece com outras artes tradicionais japonesas: o ikebana, o origami, o chá, o sumiê – é simultaneamente uma forma de sociabilidade e um exercício prático de domínio de uma técnica artesanal. Ao mesmo tempo, como as demais artes, é um “caminho”, um “dô”, isto é: uma forma de ver, numa dada prática, um modelo do mundo e, complementarmente, um jeito de olhar para as coisas derivado diretamente do exercício de uma dada arte.
Daí que seja difícil, no caso do haicai e demais artes tradicionais, estudá-las sem as praticar, pois a prática é o lugar onde se pode avaliar o progresso da aprendizagem. Penso que esses anos de estudo e exercício do haicai, de convívio com os haicaístas e, principalmente, de leitura sistemática de textos clássicos do budismo deixaram marcas. Uma delas, eu creio, é o gosto da concisão que você percebe nos contos que publiquei naquele livro.
JU – Os haicais de Oeste foram traduzidos para o japonês, fato raro (inédito?) não só no gênero mas também no mercado editorial. Como se deu essa transposição? O fato de a edição ser bilíngüe trouxe novos elementos à obra?
Franchetti – Talvez existam outros livros de haicai, escritos por brasileiros, com versão para o japonês, embora eu não me recorde de ter visto nenhum. No caso de Oeste, o dado relevante é o tradutor. Os haicais foram vertidos para o japonês por Hidekazu Masuda Goga, que foi um dos fundadores da associação a que me referi há pouco, o Grêmio Haicai Ipê.
JU – Masuda Goga é considerado um dos mestres do gênero no país. Qual foi sua importância no campo teórico e na difusão do haicai no Brasil?
Franchetti – Goga nasceu no Japão em 1911 e veio para o Brasil em 1929. Como todos os imigrantes japoneses, trabalhou primeiro na lavoura. Depois estudou e dedicou-se a outras atividades, entre as quais o jornalismo. Discípulo de Nempuku Sato, que foi o grande mestre do haicai na colônia, Goga dedicou sua vida ao estudo e difusão do haicai, tanto em japonês quanto em português, sendo autor de pelo menos dois livros essenciais: uma história do haicai no Brasil e um dicionário de palavras que podem ser usadas para marcar a sucessão das estações neste país.
Ao lado disso, escreveu sempre, tanto em japonês como em português, haicais que serviram de inspiração para todos os que se interessam por esse gênero de poesia. Sua presença nos encontros de haicai e nas reuniões do Grêmio era fonte de inspiração e estímulo para todos os que o conheceram e tiveram a alegria de com ele conviver.
No caso de Oeste, sinto que as traduções têm um interesse que em muito extrapola o dos originais. Ou seja, não tenho dúvida de que o maior interesse do livro, para quem lê japonês, reside na qualidade da tradução. Para valorizar o trabalho do Goga, o editor do livro deu um tratamento especial ao texto japonês, que foi belamente caligrafado e impresso sobre fundo colorido. De modo que o livro termina por ser, além de um agradecimento, uma homenagem ao velho mestre e à sua generosidade em se ocupar, nos seus últimos anos de vida, da tradução desses poemas.
JU – Num dos primeiros registros sobre haicai feito no Brasil, Afrânio Peixoto escreveu em 1919 que o gênero era “ainda mais simples que nossa trova popular.” O senhor concorda com a afirmação? Em sua opinião, há algum gênero no país que se assemelhe ao haicai e consiga ter, ao mesmo tempo, a sofisticação deste e apelo popular?
Franchetti – A declaração de Peixoto é ao mesmo tempo falsa e verdadeira. É verdadeira se pensarmos no haicai como forma. Por esse aspecto, ele é ainda mais simples do que a quadra, tendo apenas três versos, sem rima. Ou se pensarmos que a forma básica de estruturação do haicai é, como a da maior parte das quadras, a justaposição de duas notações (uma íntima e outra objetiva), deixando a relação entre elas por conta do leitor.
Mas a declaração é falsa se entendermos que o haicai é tão simples quanto a quadra, do ponto de vista da sua composição ou da sua compreensão. Basta ler um conjunto de haicais, ainda que escritos por brasileiros, americanos ou franceses, e um conjunto de trovas, para que as diferenças saltem aos olhos. O haicai recusa o dito espirituoso, a graça evidente, a expressão sentimental direta. Sua beleza provém da contenção, do que é apenas insinuado, da economia de recursos e da modéstia dos objetivos.
Uma forma de resumir o haicai é dizer que ele é a arte de, com o mínimo, obter o suficiente. Uma arte minimalista, portanto. Daí vem a sua característica mais notável, que é a aliança de simplicidade de forma com sutileza espiritual. E o efeito mais impressionante do haicai é que uma anotação rápida e lacunar de uma cena qualquer produz muitas vezes, no leitor, uma impressão poderosa, que fica vibrando na memória, sem muita explicação. Nada disso se encontra na trova, de modo geral.
Penso que é o fato de não haver, na nossa tradição, um gênero de poesia que junte simplicidade formal, sofisticação e apelo popular que se deve justamente a grande voga do haicai no Brasil.
JU – De Guilherme de Almeida a Paulo Leminski, passando pelos concretistas [irmãos Campos, Pedro Xisto e Pignatari], o haicai foi celebrado e teve entusiastas e praticantes na maioria das correntes literárias ao longo dos últimos 80 anos no Brasil. A que o senhor atribui esse interesse?

Franchetti – O haicai foi descoberto pelo Ocidente no começo do século XX. Na França, foi uma verdadeira febre. Seu grande divulgador foi Paul-Louis Couchoud (1879-1959), escritor hoje esquecido, mas nome-chave no orientalismo do começo do século XX. Couchoud esteve no Japão de setembro de 1903 a maio de 1904 e tomou contato com a literatura japonesa por meio dos trabalhos de europeus ali radicados. Em decorrência dessas viagens e leituras, em 1905 Couchoud produziu com dois amigos seu primeiro conjunto de poemas inspirados no haicai: 72 tercetos sem métrica nem rima, que buscavam antes reproduzir o espírito do que a forma desse tipo de poesia japonesa.
A partir daí, tem-se uma intensa produção de haicais, em grande parte estimuladas por outro livro de Couchoud: uma apresentação do haicai japonês, com prefácio de Anatole France. Pela mesma época, Ezra Pound publica as notas e reflexões de Ernest Fenollosa, sinólogo de língua inglesa, nas quais a escrita ideogramática é proposta como um modelo explicativo da poesia chinesa (e japonesa). Desse momento em diante, o haicai passa a ser uma referência básica também para a poesia moderna de língua inglesa. E a partir dos anos de 1950, quando a contracultura busca, no Oriente, formas alternativas de religiosidade, conduta e expressão artística, o traço simultaneamente moderno e marginal do haicai faz dele um objeto de grande interesse.
De modo que, nos nomes que você citou, encontramos representantes das várias linhagens de interesse no haicai. Guilherme de Almeida provém, em certo sentido, de Couchoud, os concretos de Pound e Leminski de uma convergência da tradição radicada em Pound com a contracultura zen dos anos 60. O interesse pelo haicai é, assim, resultado de vários fatores, que aparecem, em cada caso, em combinação variável.
JU – Autores como Leminski e Millôr Fernandes recorrem ao tom declaradamente anedótico e irônico na feitura de haicais. A “matriz” japonesa comporta – ou admite – esse tipo de abordagem?
Franchetti – Existe um tipo de poesia japonesa que se parece mais com o que Millôr Fernandes chama de hai-kai: o senryu, poema que tem a mesma forma do haicai, mas espírito mais jocoso e mesmo sarcástico. Já o tipo de haicai do Leminski se afasta menos da tradição do haicai que, como todas, tem muitas modalizações.
JU – É possível afirmar que já existe um haicai genuinamente brasileiro? Se sim, quais são os aspectos que o diferenciam dos produzidos no Japão e em outros países?
Franchetti – Essa é uma questão difícil, a do haicai brasileiro. Mas talvez seja possível dizer que existe um haicai internacional, isto é, ocidental. De fato, uma pesquisa na internet mostra a enorme quantidade de revistas e livros de haicai em várias línguas, principalmente a inglesa. E há publicações no Japão inteiramente dedicadas ao haicai internacional.
Sem dúvida, escrever haicai não é a mesma coisa para um japonês e para um ocidental. Como não é a mesma coisa escrever um soneto. As formas são carregadas de sentido histórico.
O que é curioso, porém, é que a leitura dos haicais produzidos hoje no Japão por pessoas jovens nos mostra que eles se parecem muito com os haicais produzidos em outras partes do mundo. O que me dá a impressão de que o haicai é hoje basicamente uma forma e uma arte transnacional.
JU – Como o senhor definiria um bom haicai?
Franchetti – Penso que um bom haicai é aquele que tem a modéstia e o despojamento da linguagem como valores centrais, aquele que não se satisfaz na banal exibição de virtuosidade técnica ou capacidade de associação brilhante. Ou seja, penso que um bom haicai é um texto que se limita voluntariamente a apenas situar uma dada percepção sensória, objetiva, num campo maior de referências (objetivas ou subjetivas) onde ela ganhe sentido e componha um quadro único; um texto que traz para o leitor a presentificação de um instante como algo inacabado, aberto, um esboço ou um diagrama do choque entre a sensação fugaz e irrepetível e seu longo ou profundo ecoar nas diversas cordas da sensibilidade e da memória.
JU – Na sua opinião, a literatura japonesa é devidamente valorizada – e difundida – no Brasil?
Franchetti – Creio que tem sido bastante valorizada e difundida, principalmente nos últimos anos, quando têm aparecido traduções de vários autores importantes, realizadas a partir dos textos japoneses e não de outras traduções.
JU – E o haicai, é devidamente contemplado pelos departamentos de teoria literária das nossas universidades?
Franchetti – Não creio que seja muito contemplado. Nem o haicai, nem outras formas de poesia.

sábado, 7 de julho de 2012

Marcos Siscar, O Roubo do Silêncio


O Roubo do Silêncio, de Marcos Siscar

 [texto publicado no portal Cronópios, em 25/10/2009]



Marcos Siscar é uma das vozes significativas da poesia brasileira contemporânea. Tenho acompanhado com atenção e interesse cada novo lance da sua obra poética, bem como os ensaios em que reflete sobre poesia. Da sua poesia própria já se disse que é “culta e teórica”.[1] Por isso mesmo, provoca a reflexão crítica e estimula a discussão mais ampla.
Na última página do seu mais recente livro, O roubo do silêncio, lê-se: “Simplicidade é artifício recolhido, dobrado, alisado a ferro. Leveza aérea daquilo que foi corrigido e passado a limpo”. E poucas linhas abaixo: “Simplicidade é aquilo que se quer. É a górgona do sentido. Desejo de dados já jogados, de versos estendidos com as faces para cima.”
Aparentemente, temos na primeira sequência a glosa de um lugar-comum: em arte tudo é construção, a simplicidade é um objetivo de uma poética, um efeito, um resultado, não uma condição ou um estado de espírito.
Mas, se for assim, como entender a segunda declaração? Se a simplicidade é o que se deseja como resultado poético, qual é o seu aspecto horrível e qual o seu poder paralisante sobre o sentido?
Do ponto de vista da formulação mais alta e convencional, bordejando a angústia da influência, essa górgona que atrai, que ameaça de paralisia, é um ser de muitos nomes. Alguns deles surgem com todas as letras na sequência desse último texto do livro: Bandeira, Montale, Kaváfis, cummings, T. S. Eliot. Uma lista sem evidente coerência, invejando de um o talento e de outro o esforço; de um o poema, de outro a sesta, do terceiro o ambiente, do quarto o que não é o procedimento difundido e mais característico, do último o que não é o tom. Uma listagem díspar que termina pela utilização banal da palavra que é objeto de todo o esforço aforismático do texto, reduzida a uma locução corriqueira: “Eu queria, é simples, mas bem aqui, longe de Starnbergersee”, vinculada à afirmação do local, por interposição de outra reminiscência, a confusão de línguas e fronteiras, à margem do lago alemão da terra devastada. Ou seja, por um gesto de ironia insustentável no calidoscópio de citações, paródias, paráfrases e referências enviesadas que constituem o livro.  
De fato, o livro é dominado pelo vulto dos paredros. Além dos que vêm nesse último texto, há dois nas epígrafes (Rimbaud e Drummond) e na selva selvaggia de reflexos, é fácil perceber a fisionomia fragmentária de Baudelaire, Mallarmé, Ferreira Gullar e outros que seria ocioso caçar para nomear aqui. Mas como a identificação dos intertextos é justamente a isca aliciante do livro, preparada para o leitor dotado de instrumentos para a decifração, a busca da simplicidade, que aparece como o ingênuo ridículo e é denunciada como repetição de estratégias, num jogo já jogado – e poderia completar, mantendo a paráfrase de Eliot: “por gente com quem não podemos pretender rivalizar” –, se tinge também de certa coloração melancólica – quase como a saudade de algo que nunca existiu senão como desejo. Não é possível estar bem aqui, se para definir o aqui se tem necessidade de convocar o Starnebergersee.
Por outro lado, é certo que nesse quadro o simples não é oposto ao complexo. O objetivo do texto não é discutir os limites da expressão do ponto de vista do conceito; pelo contrário, seu foco é a distinção entre simplicidade e espontaneidade, ou seja, imediatismo de expressão.
Sendo assim, o sentido que afinal pode ser paralisado pela simplicidade surge não mais como o significado, mas como aquilo que foi objeto de um sentir, que foi experimentado. Essa dupla acepção da palavra “sentido”, o reverter do nível de referência entre o abstrato e o concreto, entre o geral e o individual se mantém na sequência do texto e dá o movimento íntimo do livro, animando cada uma das suas cinco partes.
Delas (“Prefácio sem fim”; “Sentimento da violência”, “Ficção de origem”, “Balões brancos” e “Cidades sem sol”) é a segunda que interessa a este comentário, porque dá o tom do livro e apresenta os ritmos e procedimentos que, ao longo das demais, comporão o retrato do tempo. Nela se encontra sintetizada a novidade desse volume, em relação à obra pregressa do autor.
A primeira peça da seção “Sentimento da violência” se intitula “As flores do mal”. O título instaura um desenho claro, que busca as fronteiras da modernidade, pois o livro abre com a referência à obra que a crítica vulgarizou como marco de modernidade e fecha com a excelência modernista do Waste Land. As formas de lidar com a herança, de incorporá-la e superá-la ou, pelo menos, decepá-la do seu poder de paralisia são um dos núcleos positivos de tensão do livro.
Desde o primeiro parágrafo, ocorre a redução bruta da expectativa e da perspectiva instalada pelo título a um cenário de fundo de quintal. As flores do mal terminam por ser carrapichos, nomeados cuidadosamente nas suas espécies. No entanto, o investimento alegórico é grande: o aparecimento das ervas é devido a uma falha de responsabilidade individual, o silêncio é o gerador de mato, a erva impetuosa representa uma ameaça para o espaço civilizado do pomar, o sentido calejado é espicaçado em certos momentos pela intrusão do mato, o arrancador de flores do mal se declara um misto de filósofo e artesão, um defensor da ordem no pomar, ou seja, no jardim das musas. Já não é um maldito este que nos fala. Não cultiva flores do mal, nem nelas se compraz culpadamente, nem demonstra maior empenho em combatê-las. Pelo menos, não é maldito pelas mesmas razões que Baudelaire, convocado pelo título. Não há aqui movimento luciferino de superar as limitações impostas por um deus ciumento às suas criaturas, nem comprazimento pecaminoso nos sentidos, muito menos revolta por não poder ter, deste lado da vida, delícias que se prometem para depois dela. Este parece afinal um ser inofensivo: enquanto as ervas se renovam, ele se deita na grama e no fundo da alegoria, após uma peleja exaustiva, na qual, de joelhos, arrancou alusões e ervas más que não param de brotar. A desproporção entre as referências do poeta contemporâneo e do poeta moderno cria um efeito de comicidade corrosiva, que mais se acentua pela ausência de epifania. Mas não é o absurdo o resultado. O absurdo não se instala a não ser por um momento, como decorrência da desproporção, como efeito da concentração no pequeno, no irrisório. O procedimento lógico aqui não é a reductio ad absurdum, mas a reductio ad parvum. Por isso mesmo, a peça seguinte, ao traçar a fenomenologia do carrapicho enfraquece a primeira, reinstalando um discurso alto, no qual a ironia fica contida ou se dissolve na evocação final da infância.
Na sequência, o texto que dá nome ao livro, embora seja aberto por uma volta à redução ao pequeno e pela corrosão irônica, logo ensaia a mimese do discurso engajado. Mas a ironia não pode tudo. Aqui, parece francamente impotente para afastar o namoro real, por baixo do pano, com o Poema sujo de Gullar, que aflora não na última parte do livro, onde é chamado pelo nome (uma peça ali é denominada “Outro poema sujo”), mas disseminado intermitentemente ao longo do volume – respondendo pelos vários momentos de tensão mais baixa e formulações apaziguadoras da consciência burguesa (para usar a linguagem do engajamento) como, por exemplo, “Natureza morta”.
Contribui para essa impressão o fato de que, precisamente onde se poderia esperar a melhor justificação do título (no texto denominado “O roubo do silêncio”), depara-se com uma declaração das menos suficientes para explicar o sentido do livro, seu título e a própria forma assumida pelo seu discurso: “A vida vai bem em prosa, quando a violência lhe rouba definitivamente a liberdade de corte”. É uma explicação que, se levada a sério, banalizaria a forma do poema em prosa de tal modo que não haveria gesto irônico posterior capaz de redimi-la. O melhor é concluir que, embora venha no poema homônimo do volume, não é uma asserção mais sincera ou confiável do que as demais, embora seja mais fácil de compreender do que esta outra: “O silêncio é o sofrimento da palavra, quando a poesia do silêncio lhe é roubada”. O interessante é que o raciocínio não se segue: o definido entra como definidor. A poesia do silêncio é algo roubado à palavra; desse roubo resulta que a palavra sofre e a forma do seu sofrimento é a não-palavra, o silêncio. Se fosse possível, “simplificar” a proposição, teríamos que quando se rouba a poesia à palavra, obtém-se o silêncio. Nesse caso, a palavra não existiria plenamente sem a poesia. A poesia responderia pelo sentido da palavra; sem poesia, a palavra esvaziada equivaleria ao silêncio. Mas não é isso o que se lê. Há, claramente proposta, a existência de uma “poesia do silêncio”, que ecoa a “musicista do silêncio” de Mallarmé. Mas a alusão não salva: a frase seguinte traz para o chão: “A vingança dos desapropriados é o barulho da prosa do mundo”. Compõe um quadro de família, essa frase, quando posta lado a lado com esta outra: “a vida vai bem em prosa”.
A encenação da violência moderna atinge ponto de destaque na peça “A vítima”, na qual o vocabulário exibe gosto cediço (“palavras peroladas de silêncio”, por exemplo). Aqui também, a ironia não consegue vir em socorro do sentido: a cedência à moda do discurso contemporâneo sobre a violência termina por revelar-se a verdadeira górgona do livro.
O ressaibo do tributo ao empenho felizmente se dissolve em poemas como “Ötzi”, que retoma o texto de abertura da seção “Sentimento da violência” e consegue equacionar as linhas de força do volume, reduzindo o lugar do contemporâneo por meio da postulação de que as raízes das flores do mal se perdem no tempo. O homem pré-histórico, autor e vítima da violência, está na base de uma vertigem que guarda alguma semelhança com a da impotência frente às ervas daninhas: “Deito-me no tapete para ver melhor”. A frase final, porém, é quase um arrependimento do que parece um falhado impulso de transcendência: “Talvez algumas se levantassem, tendo força de presente, e invertessem por curto instante a direção daquilo que, em nosso olhar, divertido, observa.” Por que “divertido”? O sentido mais arcaico é “desviado” ou “dissimulado”.  Mas o uso contemporâneo produz um ricto de ironia, de sabor defensivo. Sem a ambiguidade entre o sentido presente e o arcaico – que de fato é preciosa –, o poema perderia um pouco da sua força, que é grande, num fecho acomodatício.
Um exercício final de definições encerra a parte das “flores do mal”, fronteira deste comentário. Intitula-se, alusivamente a Perec, “Modo de usar”. A bula, não a arte poética – é o que diz o título irônico sobre esse breve capítulo de poética assertiva.
O texto abre com outra frase de feição lapidar: “Sinceridade não vai bem em prosa”. Logo, sendo em prosa o livro, ou ele destoa do esperado, porque é sincero; ou atende ao esperado, negaceando ou sendo moeda de troca. Qual o terceiro excluído? Se a oposição fosse entre a poesia e a prosa, a decisão seria mais difícil. É, porém, entre duas formas – digamos – de disposição: verso e prosa. Por isso a poesia pode entrar como o terceiro elemento, a separar ou a unir os contendores: “o verso se torna a prosa da poesia quando se nutre da fidelidade à experiência ou da impessoalidade programada”. É um jogo com três elementos, portanto. E a forma da frase nos permite supor a possibilidade de uma operação inversa, que teria por expressão a pergunta: de que modo se poderia obter a poesia da prosa? Ou não existe uma poesia da prosa, mas apenas uma prosa da poesia? Qual é o tipo e qual é a variação por carência ou acrescentamento: a prosa ou a poesia? A frase final poderia fazer a aposta pender para a primeira: “não há verso simples, apenas prosa subvertida”. Mas haveria um verso complexo, que não guardasse com a prosa nenhuma relação? Ou é apenas o desejo de simplicidade que torna o verso uma modalidade da prosa?
As perguntas que esse discurso desperta ou mesmo exige evidenciam outro aspecto, outra inflexão temporal, senão mesmo formal: ensaia-se aqui o ensaio. O gosto do paradoxo, porém, e o pendor para o lapidar paralisam o movimento próprio da forma, que é o desenvolvimento e a clarificação de uma percepção, de uma intuição.
 O que há de ensaio nesse livro, assim, além de evocar os mitos, as origens e os adversários que busca exorcizar, é uma reivindicação de genealogia e um conjunto de recusas, que mapeia as atualizações contemporâneas da forma. Mas o faz não a modo de discurso sobre, mas de discurso ao lado, que almeja presentificar a questão que examina ou convoca. Ou seja, como arte. Como se lê em outra parte, “o que pode haver em comum entre um poema e um ofício [...] é relevante para a poesia? Digamos que só um poema pode dizê-lo.” Mas, no quadro traçado pelo livro, talvez o leitor devesse completar, levando ao limite o paradoxo: ...em prosa. Ou em quase-prosa, como mostra ostensivamente “Poesia a caminho”, único do livro que vem despido dos apetrechos mais ostensivos da pontuação e das maiúsculas, funcionando o polissindetismo e a dificuldade da delimitação sintática, paradoxalmente, como o corte recusado dos versos.
Mais do que um conjunto de ensaios sobre a poesia, tem-se aqui um conjunto de quase-ensaios ou para-ensaios variados à volta da e de poesia. Em “Prosa”, as drummondianas “palavras [que] rolam num rio difícil e se transformam em desprezo” aparecem metamorfoseadas em “minhas escamas se descolam, rolam num rio difícil e se transformam em história.” Essa nova procura da poesia não se faz em versos, mas em compensação a metáfora pode ocupar o lugar na ponta da mesa do banquete. Não se trata agora de palavras rolando autônomas ou em estado de dicionário, mas de partes que se desprendem de um corpo metafórico. E como tal esses fragmentos deixam um rastro, que é  história. Ou seja, registro, matéria memorável, narrável. O quase-ensaio dessa prosa que aspira à poesia é, portanto, num tempo que transborda a modernidade que lhe dá estofo, uma ambição de registro do “sentido”, do vivido, protegido pelo artifício da górgona que o paralisaria.
Noutro trecho, que aponta para o mesmo poeta, lê-se “Vou lhe contar um segredo. Hoje em dia, é preciso coragem para escrever um verso sincero.” Frase que o livro permite desdobrar: é preciso coragem para escrever um verso; é preciso coragem para escrever sinceramente. É a “alegria da negação”, que também se convoca naquele texto central, chamado “Prosa”, que começa afirmando a indeterminação: “Na superfície deste pântano, quando uma cabeça assoma fora d’água, não se sabe se é pato ou serpente”. Em outro nível, se é ensaio ou poesia.
O que permite ler o seu livro como uma resposta a pragas da literatura brasileira atual, em domínios que se mantêm à margem do romance estribado na história e na memória, no relato policial ou no turismo dos lixões e das favelas. De fato, não há aqui o tatibitate minimalista da poesia de herança concreto-cabralina, nem parentesco com a prosa sua irmã, prisioneira da paronomásia, nem concessões à gaiolinha pintada dos novos parnasianos – escravos da medida automática, acadêmicos no sentido curto –, e muito menos comunga este livro o caldo indigesto de preciosismo tardo-simbolista, auto-intitulado neo-barroco, amante do bestialógico.
Com esse gesto, o poeta terá respondido melhor ao desafio do que o crítico. De fato, Marcos Siscar crítico talvez não concorde com este panorama da poesia brasileira contemporânea. Pelo menos, não concordava quando, um ano antes do Roubo, assinou um texto sobre “A cisma da poesia brasileira”, no qual se revelava otimista, capaz de apostar em que a profusão de má poesia e os muitos reparos críticos ao que boiava nessa grande maré de coisas ruins fossem, em si mesmos, um índice da importância da mesma poesia má ou, quem sabe, um sinal de que a questão da qualidade merecesse ficar em segundo ou terceiro plano perante a vitalidade que a agitação lhe sugeria.[2] O que é estranho, pois um homem atento ao quintal não deveria confundir agitação com vida, desde que tivesse visto como o rabo cortado de uma lagartixa se debate sozinho, enquanto o corpo a que pertencia passa ao largo, em grande carreira.
O roubo do silêncio é um livro importante não só pelos seus momentos altos de realização, mas porque não é solidário ao geral, porque ensaia um produtivo discurso de fronteira e porque o seu caráter claramente defensivo pode ser lido como uma afirmação arrevezada da centralidade da poesia no contemporâneo. Pato ou serpente, está muito acima do nível viscoso da água.


[1] João Adolfo Hansen, na orelha de O roubo do silêncio. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.
[2] Publicado em Sibila — Revista de Poesia e Cultura, ano 5, n. 8-9, 2005 e disponível em http://www.germinaliteratura.com.br/sibila2005_acismadapoesia.htm .

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Macau


Macau



[texto publicado no jornal Hoje Macau, Macau, v. 1099, 01 mar. 2006 –
Depoimento sobre os dias em que lá estive em busca de papéis de Camilo Pessanha]




Era uma pequena cidade em algum lugar do mundo imaginado. Não sei de onde ganhou as casas amarelas, mas as telhas brilhantes lhe foram emprestadas por poemas lidos numa tradução francesa. Uma baía saíra de algum mapa apenas entrevisto, para enfiar mais do que era viável pela terra adentro. Esta era, a princípio, a única concreta geografia desse lugar que se localizava (devo confessar) um pouco mais a leste e muito mais ignorantemente ao norte.

Que fan­tasmático recorte de terra e mar tinha eu construído, afinal, para abrigar por momentos o espírito de um andarilho que findou por se internar no Japão e para sempre o de um seu amigo, poeta, dono de um cãozinho malhado e um tanto feiote!

De nada tinham adiantado as fotografias mais recentes. Nada podiam contra a imaginação dos primeiros tempos, disposta a projetar sobre todas as imagens o calor abafado das cartas antigas. Mas eis que numa tarde de dezembro andava eu mesmo por aquelas ruas, ao acaso da desorien­tação e da falta de método turístico. E no ritmo dos tropeços e dos sustos, começou aos poucos a surgir uma cidade ligei­ramente mais real. Eram pedras, pessoas, cheiros — cascatas de chei­ros e de cores e ruídos de uma língua misteriosa. Sob a aluvião do novo, por momentos não houve quase lugar para os dois mor­tos, embora um deles lá estivesse, a dois passos da minha rota quotidiana, quietinho, embaixo da terra recal­cada, sorrindo por não mais lhe doer nada.

A três dias da data da partida, e a outro tanto da chegada, pouco restava de espaço onde pudesse florescer um sonho: ou o antigo, agora incapaz de projetar-se nas faces da ci­dade real  —  ou um outro e novo, embalado no ritmo dos passos que não teria tempo de acumular ao longo dos bazares, do jardim ou da linha convulsa dos cassinos.

Muitos dias depois, já de volta ao meu quarto em Portugal, em meio aos manuscritos e às anotações, como o assunto fosse difícil e o sono fugisse, conheci melhor Macau. Era a sua Revis­ta de Cultura, eram os livros do Boxer, eram as traduções do Pe. Guerra. Tudo eram amigos, ou pelo menos conhecidos de outras viagens notur­nas e insones. E vários novos, trazidos na bagagem, ou extraídos de uma estante de alfarrabista. Um, inclusive, que comecei a ler ainda quando hóspede da casa que tem o nome de jardim, durante as longas noites brancas de jetlag, enquanto esperava os chineses trazerem os pássaros ao Pa Kap Chow, às seis horas da manhã: o livro de crônicas de João Manuel Amorim, O Vento e as Estátuas.

Pude então reviver, em várias épocas e vários planos, a distante e sufocante Macau, já agora filtrada pelas palavras dos que melhor a conheceram e alimentada pela memória, que é sempre generosa e pródiga: uma cidade mais intensa e mais colorida do que a que percorri, me perdendo pelas ruas até deparar, de repente, com uma igreja sem nave, tragicamente erguida no centro de uma praça; ou descobrir, por uma fresta numa janela, um quarto que podia ter sido avistado também por Pessanha, nos bricabraques, em busca de mais uma obra de arte para ficar depois encaixotada no porão de um museu de Coimbra.

Faz agora quinze anos que visitei Macau pela primeira e única vez. Com os papéis que pude ou não pude ler — interrogando contra a luz quantas palavras indecifráveis! —, com o meu próprio desespero da leitura de uns poucos papéis espalhados nas duas pontas do velho mundo, tentei depois reconstruir os gestos todos deixados pela mão do morto; tentei ressuscitar o que fora uma vez escrito e rasurado e depois outra vez anotado, numa seqüência cujo fim não parece possível decidir.

Cumpria, nesse trabalho, um voto obscuro, feito no cemitério de São Miguel, junto com uma oferenda: o ter tentado, com base em testemunhos vários, recompor o que fora aquela vida, os horizontes que mirava e os que lhe fugiam a cada ano de desgosto com a pátria distante, que insistiria sempre no último insulto de não expor nem valorizar o resultado de uma vida de buscas: a coleção chinesa, só com custo aceita pelo Estado português, para dormir sepulta, em Coimbra, como o poeta dormiria, até hoje, em Macau.

Uma dupla oferenda, na verdade, pois era também ao outro, ali enterrado com o pai: o gesto necessário de lhe tirar das costas a acusação infame de ter sido o responsável pela dispersão do que tinha guardado ao longo de anos de pobreza e isolamento. Ainda hoje corre a lenda. Tanto é mais fácil jogar a culpa para os ombros do filho, ainda mais que mestiço e ilegítimo, do que reconhecê-la nos amigos portugueses, executores omissos de um testamento que se conservou, mas não se cumpriu.

Como pude, cumpri o voto, com a edição, em 1995, de todos os versos e versões assinados por Pessanha ou por outros atribuídos a ele.

Muitos anos depois, o único documento que em vão busquei em Macau veio finalmente à luz. E há poucos meses pude ver que a parte do trabalho que eu não pude fazer agora está feita, numa edição de Macau: A poesia de Camilo Pessanha, de Carlos Morais José e Rui Cascais — volume que permite que agora contemplemos os que talvez sejam os últimos gestos textuais de Camilo Pessanha que poderemos recobrar: as correções que ele fez aos seus versos publicados na revista Centauro.

Com base nesse trabalho, o meu próprio terá de ser, com a alegria imaginável de poder levar a cabo uma empreitada de tantos anos, refeito, emendado, acrescido. É a tarefa a que, em breve, me dedicarei.

Quando me debruçar sobre as páginas da Centauro, generosamente reproduzida pelos pesquisadores, por certo visitarei outra vez na memória, agora com a nostalgia que o longo intervalo permite, a sala bem iluminada do Arquivo Histórico; as ruelas do bazar que talvez já não exista na sua confusão de comidas, roupas e bicicletas; a água barrenta do grande rio que contemplei nos longos passeios entre as leituras; a silhueta inesquecível da ponte; o ruído, ao meio-dia, das pedras do mahjong; a balbúrdia dos pássaros e dos cantores, no raiar do dia, junto à gruta de Camões.



março, 2006