sábado, 28 de abril de 2012

Hemingway é uma festa

Jornal (3)


Hemingway é uma festa


Relançamento de obras do escritor americano traz de volta ao leitor brasileiro, num dos seus livros mais belos, a evocação da vida em Paris nos anos 20.



            Quando terminei a leitura de Paris é uma festa senti-me em estado de graça. Não há talvez quem não tenha lido (ou visto, em filme) alguma coisa de Hemingway. O sol também se levanta circula muito entre nós e em toda parte também se podem encontrar, novos ou usados, O Velho e o Mar, Por quem os sinos dobram e Adeus às armas. Esses todos eu já conhecia, mas este livro póstumo tão famoso, que estava desaparecido das prateleiras há muito tempo, ainda não.
Hemingway disse certa vez que trocaria uma renda de um milhão de dólares por ano pelo prazer de ler pela primeira vez alguns dos livros de que mais gostava. Lembrei-me dessa frase porque, embora me lamentasse por não ter lido Paris é uma festa até esta semana, senti-me, por outro lado, estranhamente feliz por me haver escapado a edição anterior, pois foi com emoção maior ainda do que quando li pela primeira vez O sol também se levanta que fechei o livro, já decidido a escrever esta resenha e anunciar a boa nova do seu relançamento, em tradução de Ênio Silveira (Bertrand Brasil, R$ 30).
Paris é uma festa (A moveable feast), publicado originalmente em 1964, é a narrativa autobiográfica dos primeiros anos da vida literária de Hemingway. Ele estava casado com Hadley, sua primeira mulher; tinha um filho, muito pouco dinheiro e vários amigos. Alguns dos que são retratados no livro são nomes célebres: Gertrud Stein, James Joyce, Ezra Pound e Scott Fitzgerald. Outros são menos conhecidos entre nós e há também grande número de pessoas cuja memória se perdeu.

Biografia e ficção

Hemingway (1899-1961) parece ter sido uma pessoa intratável. A ponto de suas biografias serem quase sempre um julgamento em que ele acaba condenado. Um bom exemplo é o livro de Anthony Burgess (Ernest Hemingway, 1978) que não procura disfarçar a sua aversão (que em alguns momentos mais se aproxima do nojo) à suposta personalidade do seu assunto. E nesta época de ecologia, feminismo e comportamento politicamente correto, Hemingway não tem grandes chances de ser muito desculpado.
As apreciações usuais de Paris é uma festa, por isso mesmo, mais do que as de outros livros do autor, acabam mediadas fortemente por esse tipo de preocupação. A pergunta recorrente é quase sempre a mesma: é pertinente, é justo, é honesto o retrato que Hemingway traça de si mesmo e dos intelectuais com que conviveu nos anos 20 em Paris?
A questão só desvia o olhar do que realmente importa no livro: o que o torna uma obra-prima e faz que seja hoje tão impressivo quanto em 1964, ano em que foi publicado. O autor, aliás, já apontara o caminho, no Prefácio: "se o leitor preferir, considere este volume como um trabalho de ficção". Resta acrescentar que o que poderia, nos anos 60, ser apenas uma preferência, é hoje a única opção do leitor que não queira ser mais uma vítima da velha falácia biográfica.
É que uma autobiografia (como também uma biografia ou qualquer outra forma narrativa, incluindo aí a História) é sempre um texto de ficção. O que é diferente não é tanto o trabalho de linguagem, mas as balizas que cada tipo de autor escolhe para limitar os seus movimentos e a sua capacidade de não contraditar, com a sua narração, os dados que se consideram objetivos ou passíveis de comprovação objetiva. Mas não creio que faça muito sentido acreditar que a memória possa ser exposta fora dos padrões usuais da narrativa ficcional. No caso do discurso biográfico, a própria seleção dos "fatos" é de ordem prioritariamente estética. Os "eventos" são selecionados e hierarquizados segundo a sua relevância simbólica, a sua coerência com o tom geral da narrativa, a forma como se encaixa no fio causal, temporal ou simplesmente cronológico que permite passar de um para outro e, por fim, segundo a sua conformação à imagem pessoal, à coerência psicológica da personagem que resulta da história que é contada. Ou seja, submetida aos princípios amplos da verossimilhança e da coerência interna da narrativa, a vida contada é uma imagem e, nesse sentido, uma ficção da vida vivida, seja lá o que isso tenha sido.
O que distingue um texto declaradamente autobiográfico de um texto declaradamente ficcional é, portanto, que um se propõe a ser avaliado por parâmetros externos de coerência e de acordo geral e aceita, no limite, ser contraposto a outros testemunhos sobre o mesmo "fato"; e o outro, não.

Magreza nostálgica

Como texto, Paris é uma festa é um livro enxuto, que narra episódios esparsos da vida de um jovem escritor na capital francesa, nos anos 20. O fato de que quase todas as personagens são também figuras intelectuais bem conhecidas acentua a economia narrativa, pois não é sequer preciso construir a personagem Gertrud Stein ou a personagem Fitzgerald. Todos já temos uma idéia de quem sejam e a simples menção dos nomes dispara determinadas associações. O narrador, assim, as põe diretamente em interação com a sua personagem principal, sem sequer precisar traçar-lhes um breve perfil ou caracterizá-las quanto à compleição física.
Com isso, vêm para primeiro plano da atenção dois temas que, combinados, respondem pelo alto poder de sedução do livro. O primeiro é a narração do período formativo do escritor, suas leituras, suas ambições e, principalmente, sua concepção de escrita e seus ideais estéticos. O segundo é a apresentação da solidariedade de uma vida amorosa marcada pela pobreza, na qual se destacam, como pontos luminosos, pequenos momentos de exceção e de esplendor.
Do primeiro decorre o lado exaltante do livro: o escritor/personagem persegue, naqueles primeiros tempos, a forma e o estilo econômico e verídico que o leitor constata no presente volume a cada página e a cada parágrafo. Na p. 89 da edição brasileira, por exemplo, Hemingway está contando como escreveu um conto chamado Fora da Temporada e escreve: "eu omitira seu final lógico, que seria o suicídio do velho, por enforcamento. Fizera isso com base na minha nova teoria de que sempre se pode omitir qualquer coisa de um conto, desde que se saiba por que se omitiu e a parte omitida reforce a narrativa, fazendo com que os leitores sintam alguma coisa além daquilo que entenderam". Bem antes, na p. 26, já anotara que dizia sempre para si mesmo, quando ia escrever e tinha alguma dificuldade: "Tudo o que tem a fazer é escrever uma frase verdadeira. Escreva a frase mais verdadeira que puder". Logo depois, registra: "Se começasse a escrever rebuscadamente, ou como se estivesse defendendo ou apresentando alguma coisa, percebia logo que podia cortar esses floreados ou ornamentos, jogá-los fora, e começar com a primeira proposição afirmativa verdadeira e simples que tivesse escrito." E pouco mais adiante: "Foi lá naquele quarto que decidi escrever um conto a respeito de cada coisa que conhecesse realmente bem. Era o que me esforçava por fazer, sempre, e esse método constituía uma boa e severa disciplina".
O segundo tema responde pelo tom melancólico do livro, que progressivamente se apresenta como evocação de um tempo feliz que o narrador/personagem, por inépcia ou por irresponsabilidade, vai arruinar e tornar para sempre perdido. De fato, se o livro começa centrado na apresentação do escritor e das suas relações intelectuais, esse centro rapidamente se muda para a narração da vida afetiva, que progride num registro cada vez mais intimista e pessoal, até terminar na pura exibição da culpa: "Quando voltei a ver minha mulher, ela me esperava na estação de Schruns, depois da pilha de madeira. Preferia ter morrido antes de me interessar por alguém mais além dela. Hadley estava sorridente, o sol batia-lhe no rosto moreno e bem-proporcionado, e seus cabelos dourados, que haviam crescido de maneira estranha, mas bela, durante o inverno, brilhavam na luz viva." Essa é a imagem para a qual converge toda a narrativa de evocação amorosa, e dela decorrem as frases finais, que sobrepõem Hadley e Paris, com tudo que este último nome contém: "Amei-a profundamente naquele instante, seguro de que não poderia gostar de ninguém mais"; "Paris nunca mais seria a mesma para mim"; e, finalmente: "neste livro, quis retratar a Paris dos meus primeiros tempos, quando éramos muito pobres e muito felizes".

Veracidade

No Prefácio, Hemingway já escrevera que "por motivos suficientemente fortes para o autor, muitos lugares, pessoas, observações e impressões foram deixados de lado neste livro". Por outro lado, no imaginário comum não há nada que alguém possa conhecer melhor do que a própria vida e as experiências pessoais. A conjunção dessas premissas com a forma especial de articulação dos capítulos desse livro, em que se vão justapondo, sem claras marcações temporais ou de causalidade afetiva, uma série de episódios, produz um efeito de verdade e de presentificação da experiência como raramente se encontra em letra de forma. E assim, qualquer lacuna, qualquer recorte mais violento na frase, qualquer falta de explicitação acaba (como proposto no texto da p. 89) fazendo com que nós, leitores, sintamos muito intensamente algo muito além do que entendemos, ou mesmo além do que nem sequer chegamos a compreender direito.
Essa é a magia do livro. Nada do que Hemingway pudesse ter colocado nele de inverdade ou de vingança contra as pessoas com que conviveu poderia ofuscar o brilho intenso dessa evocação muito comovente, que transmite uma impressão tão forte de veracidade como a dos seus melhores romances. É justamente por isso, porque essas duzentas e poucas páginas se aproximam tão econômica e convincentemente do que há de mais característico nos seus romances (e não pelo contrário, como poderiam querer os biógrafos e outros crentes da essencialidade), que elas conservam enorme interesse e têm a  vitalidade que as marca como um momento privilegiado – um dos maiores – na escrita do autor.

[publicado na página Livros, do jornal Correio Popular, em 18 de novembro de 2000)