terça-feira, 19 de junho de 2012

Entrevista - Comunità Italiana

Entrevista  
[a Marco Lucchesi, publicada com o título "Campos de algodão sob o sol da tarde", na revista Comunità Italiana, em dezembro de 2004]
-          Caro Franchetti: Gostaria de saber de sua origem italiana, de alguma influência, nostalgia e paixão, desde o quotidiano às leituras e o mundo. 
Minha tia Ana, cujos olhos azuis eram tão intensos quanto o seu sotaque, pode sintetizar a parte mais sensível do lado italiano da minha vida: emoção à flor da pele, nostalgia da pátria que deixou ainda criança e que, por isso, se apresentava mais como conceito e forma interna de sentir, do que como realidade perdida ou a reconquistar. Depois, o orgulho familiar da origem e do sobrenome, o apego à tradição e à cultura. Outra imagem recorrente: meu avô, colono, reunindo os camponeses iletrados para ler-lhes, junto aos filhos, romances de cordel.
Depois, em minha casa, a bela edição da Comédia, ilustrada por Doré, que dividia a estima paterna com os grandes poetas românticos brasileiros elegantemente encadernados; o hábito da disciplina intelectual, do amor ao trabalho e da observância da mais estrita frugalidade, compensada pelo derramamento sentimental e culinário dos domingos e dias santos. Até a minha adolescência, esse foi o sabor da vida. Um sabor muito italiano, mas tão entranhado, na pequena cidade de Matão, no ambiente da família, que só quando de lá saí para começar a vida adulta pude perceber que era uma particular herança e um jeito muito especial de estar no mundo.
-          Sendo você um dos grandes ensaístas brasileiros, com uma vasta erudição e uma fina sensibilidade, como se processou a sua formação e a sede de conhecer as coisas com essa intensidade e descortínio?
Minha primeira juventude, para o bem e para o mal, foi pautada pelo anseio de completude renascentista, que sempre foi o de meu pai. O gosto pela literatura, a valorização extrema do conhecimento prático, o gosto da especulação filosófica, o fascínio pelo método científico, o estudo da história religiosa, o valor da educação matemática, o amor da correção lingüística: foram esses os valores e ideais que, dentro das possibilidades, pautaram a minha formação familiar. Nas condições precárias de uma vida passada quase toda em pequenas cidades do interior do Brasil, as muitas enciclopédias, os vários livros de divulgação científica, as obras completas de escritores brasileiros e portugueses vendidos de porta em porta, bem como a velha Coleção Saraiva e toda a coleção do Clube do Livro foram as peças do mosaico que foi a minha formação. O solo sobre o qual fui construindo como pude, até o período da faculdade, a imagem do mundo e de mim mesmo. Na faculdade, a descoberta de uma imensa biblioteca, na qual podia passar dias e dias, sem qualquer limite, foi experiência de puro deslumbramento. A partir daí, com todo o risco da dispersão, nunca mais deixei de seguir o impulso de leitura do momento.
-          Por outro lado, a poesia parece ter aberto em você um sem-número de portas e janelas, e de modo especialíssimo no campo do haicai, de que você se tornou, além de crítico e historiador, um fino poeta e tradutor. Como se deu esse percurso?
Também o gosto pela poesia tem origens familiares. Meu pai escrevia sonetos e crônicas em jornais. E muitos outros seus colegas também. Matão era uma cidade quase inteiramente italiana, na qual a habilidade poética, a oratória, a demonstração de cultura letrada de modo geral era algo muito valorizado.
O interesse pelo haicai provém de um segundo momento. Daquela cidade, depois de alguns anos, fomos para Guaíra, na fronteira com Minas Gerais. De uma cidade italiana para uma cidade de intensa colonização japonesa. Quase todos os meus amigos e amigas eram japoneses. As festas de colheita e casamento, o contato com os pais das namoradas, que mal falavam português (ou não falavam), os bailes no clube da colônia, tudo isso gerou, eu creio, uma simpatia que pôde, muitos anos depois, quando me dediquei seriamente ao estudo do japonês, abrir-me algumas portas para a compreensão dessa forma de poesia tão delicada e tradicional, à qual dediquei bons anos de vida. O haicai foi, para mim, mais ou menos como uma busca nostálgica de um período no qual a vida tinha o dourado das espigas maduras de arroz e o brilho dos campos de algodão sob o sol da tarde.
-          Camilo Pessanha. Antonio Nobre. Eça de Queiroz. Três nomes, dentre outros, de sua predileção, sobre os quais você vem dedicando boa parte de sua vida. Em que medida a literatura portuguesa também é uma de suas capitais afetivas...
Eça de Queirós era um dos autores da infância. Numa edição em três volumes, da Lello, a sua obra completa acompanhou a minha vida, na estante paterna, e ainda acompanha, agora na minha própria estante.
Camilo Pessanha, cujos versos difíceis e belos foram uma obsessão desde os primeiros anos de faculdade, atraiu-me também pela vida no Oriente, pelos escritos sobre a China e pelas especulações sobre a escrita ideográfica.
Se a porta de entrada na literatura portuguesa foi Eça de Queirós, Camilo Pessanha foi a torre desde a qual fui descobrindo outros pontos de interesse, com ele relacionados de alguma forma: Wenceslau de Moraes, o cronista do Japão, Antonio Nobre, Antonio Patrício, Eugênio de Castro e tantos outros.
Eça de Queirós também me conduziu ao encontro de outra paixão portuguesa, à qual dediquei vários anos de estudo: a imensa e magnífica obra do historiador Oliveira Martins.
-           Mas vejo, em sua obra, a recuperação de monumentos e documentos. Por exemplo, um nome pouco lembrado, o de B. Lopes, a quem você dedica um belo artigo, e o evoca na condição de dândi mulato...
Quando, no começo da minha carreira na Unicamp, retomei sistematicamente a leitura da infância, a dos poetas românticos brasileiros, deparei-me com um veio novo, ainda não descrito nem analisado: a poesia pornográfica, satírica e de nonsense da segunda geração romântica. Descrevi, num artigo que prezo muito, o maravilhamento pela pujança criativa de autores que, não fosse essa produção, seriam apenas medíocres: Bernardo Guimarães, Getulino e José Bonifácio, o Moço. Desse ponto de partida decorreu o meu interesse por todos os poetas de gosto irônico ou satírico, esquecidos nas histórias literárias mais conhecidas. Prosseguindo na pesquisa, deparei com B. Lopes, que é um gênio, um poeta de grande interesse, mal lido e pior avaliado. E como ele há outros, fora dos enredos principais das histórias nacionalistas, que aguardam um olhar aberto e desarmado.
-          É inevitável ouvir – ainda que  em breves palavras  - o que você definiu como sendo compaixão e nostalgia em certa prosa lusitana...
Quando me dediquei a estudar a obra de Camilo Pessanha, eu o fiz orientado pela leitura dos textos de Oliveira Martins, que pertenceu à geração anterior à sua e cuja visão da história de Portugal marcou profundamente os autores dos anos de 1890. Pessanha é já o nostálgico de lugar nenhum. A pátria, o espaço sagrado da origem lhe aparece como um grande bem perdido. Ao mesmo tempo, esse lugar perdido é um lugar idealmente construído a partir da distância, da percepção do deslocamento físico, temporal e afetivo. Não há retorno possível. Há idealização de retorno e há, constatada a sua impossibilidade, o exercício do furor frio e desagregador da melancolia. No livro que dediquei à obra do poeta, tentei verificar como essas duas atitudes líricas, a que chamei “poéticas” – a nostalgia e a melancolia – organizam os temas e as palavras do eu que nos fala nos poemas.
-          O que mais impressiona em seu trabalho é a multiplicidade dos saberes. Uma visão que se entende, ou que se busca, leonardiana, aberta, curiosa, inquieta. Como você explicaria essa espécie de sentimento-idéia que o anima?
A explicação, eu creio, está na formação familiar. Mas o que me alegra é poder ter me dedicado a tantas coisas importantes para mim e para as pessoas que me rodeavam. Nesse sentido, não sou, Marco, um acadêmico típico. Não passei a vida aprofundando o conhecimento sobre um tema ou um autor, como fazem tantos colegas eruditos que admiro muito. Fui mudando de objeto de estudo ao sabor da curiosidade, da paixão, do gosto ou da obsessão por resolver um problema cultural ou pessoal. O que não quer dizer que não me tenha dedicado intensamente a cada um desses objetos. Respondida, porém, a questão que me moveu ou esboçada de modo consistente a resposta que buscava, já me atraía um tema ou problema correlato ou remotamente ligado ao que me havia absorvido até ali. Se, do ponto de vista da academia, construí uma carreira que pode ser vista como algo diletante, do ponto de vista do prazer do estudo e da descoberta, que é o único que me importa, pude construir um percurso que esteve sempre colado à minha própria vida e à pulsação dos meus interesses intelectuais. É um privilégio, e creio que ter trabalhado esses anos todos numa universidade tão flexível e desburocratizada quanto a Unicamp foi uma grande sorte.
-          Acha que a Universidade está mudando, ou buscando mais intensamente e acolhendo esse caminho leonardiano, ou será preciso ter cuidado  com as tenazes do específico e do ultraespecializado. Ou as coisas devem e merecem coincidir?
Penso que a universidade tem deixado de ser universidade. O que se vê hoje é um processo perverso, que consiste em submeter todos os campos do saber às regras do campo dos saberes tecnológicos. Exigir, por exemplo, que um aluno de 21 anos faça uma tese de mestrado em literatura em 24 meses é um disparate. E fazer que um aluno de qualquer ciência humana se torne doutor em 36 meses é uma insanidade. Isso já produziu um rebaixamento notável da produção acadêmica em ciências humanas. Da mesma forma, a avaliação dos professores se faz hoje numericamente: quantos trabalhos publicados, quantos congressos, quantos estudantes. O resultado imediato é a perda de consistência dos trabalhos em ciências humanas. O resultado de médio prazo, que já é muito sensível, é a perda de poder das disciplinas humanísticas no interior da universidade. Sem um papel e um lugar predominante das ciências humanas não há universidades, há escolas de tecnologia, centros de formação de técnicos. É isso que a universidade está virando no Brasil. Para um professor que inicia hoje a vida universitária, um caminho como o meu, de amadurecimento lento e de múltiplos interesses, é a cada dia menos possível.
- Finalmente, no campo editorial, onde você milita há alguns anos,  gostaria de conhecer  sua atual, à frente Editora da Universidade de Campinas...
            Há dois anos fui designado para dirigir a Editora da Unicamp, que, depois de um período bastante notável, passara por quatro anos de rápida decadência. Durante esses anos dediquei todo o meu tempo à obra de reconstrução. Isso significou ter de aprender princípios de administração, contabilidade e comércio, bem como implicou um olhar por dentro do mercado editorial brasileiro. Se é verdade que pude aprender muito, nesse período, também é verdade que jamais tinha pensado em aprender tais coisas ou gerenciar os problemas que tive de gerenciar. Neste momento, felizmente, a Editora começa a caminhar pelas próprias pernas e posso gozar do que há de bom na atividade, que é o contato com os autores, a análise das obras e o planejamento de ações culturais.

Três livros de poesia - 2001


[Jornal 8]

Três livros de poesia - 2001


[texto publicado em 2001, no Suplemento Literário de Minas Gerais][1]



Três livros de poemas recém-lançados – Trívio, de Ricardo Aleixo, Zona Branca, de Ademir Assunção, e A Sombra do Leopardo, de Cláudio Daniel – permitem verificar o bom nível da produção poética brasileira atual. Ao menos, na vertente radicada na Poesia Concreta e no paideuma por ela construído no Brasil. São livros bastante diferentes entre si, mas que compartilham algumas características importantes.
Penso que as qualidades principais do primeiro deles, A Sombra do Leopardo (de Cláudio Daniel), são a unidade de dicção, o nível geral dos poemas e a estrutura em que se arrumam. Agrupados em oito seções, os 33 poemas do livro se organizam segundo um desenho sugestivo que inicia com a invocação de figuras tutelares, que são também caminhos, possibilidades de fazer frente ao desejo e à dor (Dante, Nagarjuna, Chuang-Tzu, Schopenhauer e outros), prossegue pela evocação de lugares exóticos, distantes no tempo e no espaço (Tibet, Grécia, Egito...), que parecem funcionar como espaços de plenitude sensória e de iluminação, e deságuam no desfecho nomeado com o título do livro dos mortos tibetano, o Bardo-Thödol.
Se tivesse de apontar apenas um poema que sintetizasse a poesia deste livro, o escolhido seria aquele que contém a expressão que dá nome ao conjunto. Trata-se de “Dante”, poema central para o entendimento do desenho do volume, pois, com muita distância, é uma glosa da passagem da Divina Comédia em que as três feras (a onça, entre elas) impedem o prosseguimento do caminho pela selva e obrigam à descida ao Inferno.
Trívio, de Ricardo Aleixo, é de todos o mais imune à “angústia da influência”, que Bloom vê como o motor do novo em poesia. Pelo contrário, o seu livro não só deixa evidente a filiação concretista, mas também a celebra. Por esse lado, os momentos mais fortes são aqueles em que adota, com competência emulativa, procedimentos que caracterizam a poesia de Augusto de Campos. É o caso do encarte “Brancos”, e é também o caso de “Canção noturna do fim dos peixes” e “Totem para Smetak”. Por isso mesmo, dispensaria o posfácio, que apenas declara, sem brilho nem acrescentamento, aquilo mesmo que o volume inteiro evidencia.
            Entremeada a essa parte ostensivamente concretista, em que a repetição dos processos e até da tipologia do mestre incomoda e acaba criando um clima retrô, temos os poemas que constituem o melhor do livro: aqueles em que a espacialização discreta se choca com as cadências regulares do verso português ou não é obstáculo à emergência de uma linguagem muito coloquial. “Loa da menina deusa”, “Numa festa”, “Mesmo esta, agora, é” e “Ela aquela” têm um ritmo cantante e visual, que cristaliza um momento de fala, uma cena, ou uma sensação. Neles brilha alguma coisa nova, distante da ecolalia que dá o tom de vasta parcela da produção atual, filiada na mesma vertente concreto-cabralina. São esses poemas, em minha opinião, que destacam o livro e singularizam a dicção do seu autor.
Zona Branca, de Ademir Assunção, parece-me o mais eclético dos três, tanto no que diz respeito ao leque de recursos compositivos, quanto ao elenco de referências culturais. Também me parece o mais irregular, no nível da realização individual dos textos, pois o livro oscila entre poemas de alta tensão poética e outros apenas sofríveis.
Herdeiro programático da antropofagia oswaldiana, o poeta declarou numa entrevista recente à revista eletrônica Balacobaco: “Minha dentição é boa: mastigo tudo  o  que  me interessa:  e  isto  vai de Dante Alighieri  a  histórias  em quadrinhos.” E os poemas também vão desde o tom (irônico?) de auto-ajuda de “Zensider”, até a estilização do velho poema de protesto, em “Anti-ode aos publicitários (de um guerrilheiro morto em combate)”, passando pelo poema concreto e pelo gosto kitsch de versos como estes, que encerram o poema “A lágrima de Van Gogh”: “& uma única lágrima / guardada / na caixinha de jóias”.
Dentre os resultados vários dessa mastigação generalizada, os poemas descritivos, compostos por montagens à maneira de haicai, me parecem o que há de melhor: “Assombro em branco e preto”, “A queda em preto e branco”, “Desocupado”, “try to see again...” e “vento da madrugada...”. Do mesmo alto nível me parecem “Peixes de luz” e “In a silent way” e, especialmente, “Espelho d’Água”, momento singular de concentração poética, no qual a composição justapositiva se faz por aglutinação em torno de uma imagem forte.
A capacidade de criar imagens impressivas e justapô-las em rápida sucessão responde, aliás, por alguns dos melhores momentos de Zona Branca. E também pelo fato de ser raro o poema do livro que não acabe redimido, ao menos parcialmente, pelo saldo final da construção imagética. É o caso, por exemplo, de “Olhos elétricos”, que consegue se manter em pé, mesmo contendo este dístico: “pássaros tristes entre cães aprisionados / enfim vivemos num cenário”.

Nascidos nos primeiros anos da década de 60, Aleixo, Assunção e Daniel publicaram pela primeira vez em volume no início dos anos 90. Não são, portanto, estreantes, mas sim poetas amadurecidos, em cujo texto já se podem avaliar as qualidades plenas e os eventuais limites da sua arte. O que é comum aos três diz respeito tanto a essas qualidades, quanto a esses limites. Em primeiro lugar, o caráter reflexivo e metapoético da sua prática literária; em segundo, a competência técnica, seja no domínio do corte do verso breve, seja na aplicação de recursos composicionais herdados da vanguarda concretista; por fim, é comum a todos a exibição de um eclético repertório de cultura.
Poetas-críticos, assinalam a procedência ou a inserção cultural de tópicos dos seus poemas em subtítulos ou notas de sabor acadêmico. Daniel, por exemplo, além de escrever frases como “a poesia diz tudo e não quer dizer nada e seu nome se escreve no vazio da página, sítio de possíveis reflexos”, também esclarece, em subtítulos a natureza, o gênero ou a fonte do seu texto: “Tse-yang, pintor de leopardos (retrato apócrifo), “Simão do deserto (alegoria), “Dante (Inferno, I, 31-42). Aleixo é igualmente didático, em notas de final de volume: Marcial entre os kuikúro é uma adaptação mais-que-livre de um mito dos índios Kuikúro recolhido pela antropóloga Bruna Franchetto”; “Ñamandu baseia-se vagamente em um mito dos índios guaranis, do Paraguai, recolhido pelo antropólogo Pierre Clastres”...  E também o é Ademir Assunção, que anota ter sido “inspirado no filme Paris, Texas, de Wim Wenders” um determinado poema, e que um trecho de um outro “faz alusão ao seqüestro de Baco narrado por Ezra Pound no Canto 2 do livro The Cantos, correspondente a um episódio das Metamorfoses, de Ovídio”.
Tais indicações configuram uma tensão entre os escritores e o público previsto, que se biparte entre os leitores que poderão reconhecer e julgar a pertinência do referencial “erudito” e os que ainda precisam ser nele instruídos. Isto é, estes escritores, por um lado, já não se apropriam dos textos centrais da tradição ocidental como matéria comum, de conhecimento generalizado. Por outro lado, tampouco parecem acreditar que mitos e lendas sejam matéria a ser incorporada sem registro, por conta da sua significação universal. Pelo contrário, em qualquer caso, inclusive nas referências à cultura pop, é sensível o cuidado de indicar explicitamente a fonte, e, se for o caso, o grau de desvio em relação a ela. Por fim, não parece que elejam, como destinatário do seu discurso poético, o leitor visado pela lírica de extração romântica: o homem comum dotado de sensibilidade e de boa vontade. Dizendo de outra forma: as notas explicativas, os títulos e os nomes eruditos incorporados no texto dos poemas e os vários procedimentos de citação e alusão podem ser lidos alternada ou combinadamente como atestado de cultura, gesto de intuito educativo e celebração totêmica.


No prefácio ao livro de Claúdio Daniel, Eduardo Milán o define de uma maneira precisa, que me parece válida também para os dois outros autores. Diz que se trata de um “lírico cultural”. Por essa expressão, que utiliza como elogio, Milán entende uma relação “dinâmica e evidente” com a “cultura”, a ponto de fazer equivaler “impressões de leitura” e “intuições líricas”.
Quando li o conjunto dos três livros acima referidos, e em especial o de Daniel, foi justamente o caráter “evidente” dessa relação, bem como a ostensiva apresentação das “impressões de leitura” o que me incomodou.
Ademir Assunção, por sua vez, na entrevista já referida, declarou que “estamos sendo bombardeados por milhares de informações o tempo todo e nossa mente funciona cada vez mais como uma ilha de edição”. Também declarou, claro, que não sofre “aquela  neurose  da ‘angústia da influência’, que tanto preocupa um crítico  como Harold  Bloom.”
Para repetir nestes termos a parte da minha impressão de leitura que foi desfavorável, diria que a “ilha de edição” tem um funcionamento às vezes pouco sutil e que a ausência da “angústia da influência”, que ela supõe, faz com que uma porção significativa de cada um desses três livros se aproxime perigosamente do pastiche estilístico. Talvez por isso, às vezes me assaltasse a impressão desagradável de que partes dos três volumes pareciam escritas por um mesmo supra ou protopoeta, misto de João Cabral, irmãos Campos e Leminski, constituído por combinações variáveis desses elementos. O mesmo suprapoeta que também teria escrito muita da poesia reunida na antologia Esses poetas e alguma da que compõe Outras praias.
Entretanto, passado esse primeiro momento e o travo dessa constatação, o que fica mesmo na memória da leitura é o que cada um dos livros tem de melhor, de mais característico e bem realizado. E que, embora não seja muito, também não é pouco.


[1] Onze anos depois, relendo esse texto, percebo que minha percepção da qualidade relativa dos volumes se alterou. Mas não se alterou o essencial do que vai no corpo do artigo. Por isso achei que valia a pena transcrevê-lo neste espaço. E também porque se trata de uma resenha referida aqui e ali, e de difícil acesso nas páginas do jornal onde foi originalmente publicada.