segunda-feira, 1 de julho de 2013

Febre de Eça

Febre de Eça


[Publicado na Folha de São Paulo, em 13/8/2000. Em formato original em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1308200008.htm]


Há um século, no dia 16 de agosto de 1900, Eça de Queirós morria em Paris, com 55 anos. A notícia repercutiu fortemente no Brasil. É que Eça não era aqui apenas um romancista de sucesso. Era já havia tempos a figura idealizada que o jovem Alberto de Oliveira, quando o viu certa vez no Porto, ficou contemplando como se fosse "um pequeno deus". De fato, desde pelo menos a publicação de "Os Maias", em 1888, a intelectualidade brasileira parece ter sido acometida, para usar o termo criado por Monteiro Lobato, por uma "ecite": uma febre ou paixão intensa por Eça de Queirós, que vai atravessar, sem perder a força, pelo menos as duas primeiras décadas deste século.
A especial afeição brasileira por Eça de Queirós, porém, parece ser ainda anterior aos anos 80 e deve-se a um conjunto amplo de motivos. Por um lado, o romancista não aparecia ao público apenas como o autor de umas tantas obras-primas. Era uma presença muito mais próxima: um jornalista que escrevia regularmente nos periódicos brasileiros, opinando sobre os mais diversos assuntos.
De fato, só na "Gazeta de Notícias", Eça escreveu durante 16 anos seguidos, a partir de 1880. Além disso, tinha sido um dos jovens rebeldes que, ao lado de Antero de Quental e Teófilo Braga, se empenharam na denúncia do atraso político, moral e científico das nações ibéricas: era um dos representantes da já mítica Geração de 70, iconoclasta e modernizadora. Era também o autor das "Farpas" (1871-72), em que não só satirizara a sociedade portuguesa do seu tempo, mas também ironizara cruelmente o imperador do Brasil, d. Pedro 2º, no momento mesmo em que começava a fortalecer-se o republicanismo no país.
Por tudo isso, no ambiente encharcado de propaganda republicana dos últimos anos do Império e de propaganda antilusitana nos primeiros anos da República, Eça podia ser visto como um aliado progressista: um equivalente, para a vida portuguesa sua contemporânea, do que era o seu amigo Oliveira Martins para o passado dessa mesma sociedade. Quanto a esse ponto, vale ainda observar não apenas que o naturalismo foi geralmente assimilado ao positivismo e à ideologia republicana, mas também que o pensamento de Oliveira Martins ainda em 1902 forneceria a base de um livro tão importante quanto o "América Latina -Males de Origem", de Manuel Bonfim. Por outro lado, é certo que Eça de Queirós era, sob muitos aspectos, o oposto do outro grande romancista português havia pouco desaparecido, Camilo Castelo Branco. Camilo representava, para a maioria dos escritores brasileiros do tempo, o censor caturra, o ciumento corretor da linguagem utilizada deste lado do Atlântico. Era, além disso, o romancista da predileção da grande colônia portuguesa, que nele via o seu escritor por excelência: o que dispunha suas histórias em linguagem e paisagens legitimamente lusitanas. Eça, por sua vez, exibia uma linguagem muito diferente, de sintaxe mais direta e de vocabulário menos exuberante, cheia de neologismos e estrangeirismos, principalmente galicismos. Tão incorreta talvez, pelos parâmetros de Camilo ou de Castilho, quanto a de Alencar ou de Varela, essa linguagem simples e ágil não recuava tampouco ante o bom-senso ou as conveniências e descrevia de modo muito "realista" os vícios que os primeiros romances do autor visavam a denunciar. "Sórdido como uma página de Eça de Queirós!" -era assim que um moralista do tempo insultava um poema que julgava pernicioso. E foi graças a "O Primo Basílio" que "realista" e "naturalista" durante um bom tempo foram sinônimos, para o leitor comum, de repulsivo, indecente ou obsceno. Por tudo isso, Eça de Queirós era, de modo convincente, muito moderno e muito cosmopolita. Mas a substância mais ativa na promoção da "ecite" não foi nenhuma dessas, e sim a célebre ironia queirosiana, que, depois de "O Primo Basílio", vai marcar cada vez mais inconfundivelmente os seus romances, tanto na construção da frase, quanto na composição das personagens. Diferente da ironia romântica que, tal como aparece em Camilo e mesmo em Garrett, tem sempre um travo de amargura, a de Eça supõe uma atitude de espírito de luminosidade constante, um jeito de olhar que ao mesmo tempo promove a crítica dos costumes e reafirma o afastamento do analista em relação ao objeto da sua análise. Reconhecemos logo o estilo de Eça em frases simples como, por exemplo, "encalhado contra o piano, esfregava lentamente as mãos, esmagando o meu embaraço" ou "a figura de Napoleão sobre rochedos enfáticos". É a essa ironia, a esse sistemático olhar analítico, tingido de humor e de ceticismo, que se deve o fato de não haver heróis positivos no elenco dos protagonistas queirosianos. São sempre ou francamente negativos, como a Luísa, de "O Primo Basílio", ou o Raposão, de "A Relíquia", ou ambíguos e esbatidos, como o Gonçalo, de "A Ilustre Casa de Ramires", ou o Carlos, de "Os Maias". As personagens secundárias, por sua vez, são usualmente desenhadas com traço mais forte, ou para rebaixar, por contraste, as principais, ou para proporcionar uma síntese caricatural, reveladora do ambiente da época retratada no romance.
Esse procedimento produziu tipos inesquecíveis: o Conselheiro Acácio, o poeta romântico Alencar, a empregada Juliana, o revolucionário e inconsequente João da Ega, entre outros. Desses, a criação mais popular é, sem dúvida, o Conselheiro de "O Primo Basílio", que passou a integrar o patrimônio da mitologia e do vocabulário comum, pois desde os anos 80 do século passado pode-se dizer de qualquer figura pomposa e vazia que é um "acácio" ou que é uma figura "acaciana".
Estruturada a partir desse olhar distanciado e descrente, a narrativa queirosiana não vai firmar o desenvolvimento do enredo romanesco nas paixões, nem na coerência psicológica das personagens ou nas determinações fatais à sua liberdade. Pelo contrário, uma tendência forte do romance de Eça é a de se estruturar em painel mais ou menos alegórico, composto a partir da construção muito realista de situações particulares. Disso resulta uma narrativa cuja unidade não provém da verossimilhança realista do conjunto, mas é construída pelo recurso sistemático à intertextualidade e às simetrias e espelhamentos na construção dos episódios, das cenas e das personagens. Resulta também uma voz narrativa que nunca deixa de enfatizar os aspectos sensórios de cada um deles, destacando o que é mais ridículo, mais sedutor ou apenas mais plástico em cada momento da romance.
Esse conjunto de características da ficção queirosiana faz com que sua obra descreva uma curva que, se tem a sua origem num livro naturalista como "O Crime do Padre Amaro", rapidamente se afasta desse tipo de discurso e método compositivo, em direção ao que A.J. Saraiva denominou "impressionismo".
Esse afastamento já é bastante notável no segundo romance de Eça, "O Primo Basílio". O primeiro a dar conta da novidade desse texto foi o próprio escritor, que, assim que o livro saiu, escreveu a Teófilo Braga e fez um longo ato de contrição por não ter feito um romance ortodoxamente naturalista. Por outro lado, quando o livro foi publicado no Brasil, Machado de Assis logo notou que as suas personagens careciam de determinações fortes de qualquer tipo, fossem internas ou externas, e que o próprio enredo se montava a partir de uma série de acidentes, de casualidades. A autocrítica de Eça era claramente defensiva e por isso apresentava como defeito tudo o que fosse fuga ao receituário naturalista. Já a avaliação de Machado era moralista e se fazia de uma perspectiva marcadamente romântica. Mas ambas acusavam a existência nesse livro de uma nova forma de composição, que só ganhará força desse momento em diante na obra do autor.
Dois anos depois, em 1880, vem a público "O Mandarim", em que se completa o abandono da maneira naturalista. E após mais oito anos, em 1888, Eça publica "Os Maias". É o ponto alto da maturidade do romancista, no pleno domínio de uma maneira própria, e é, também, o ápice da "ecite" no Brasil.
Os dois grandes livros seguintes já serão póstumos: "A Ilustre Casa de Ramires" e "A Cidade e as Serras". Em ambos, acentua-se o traço alegórico e o distanciamento irônico da voz narrativa. Por isso, o primeiro vai ser objeto de graves reparos por parte dos críticos mais fiéis ao paradigma romântico/realista, calcado na verossimilhança psicológica e na construção orgânica da narrativa. A.J. Saraiva, por exemplo, vai escrever que dois defeitos principais de "A Ilustre Casa" são que a personagem central é um títere (é a mesma acusação de Machado a Luísa) e que o livro todo "é pensado, sobreposto e encaixado como as pedras de um edifício".
De fato, desde "O Primo Basílio", que José Régio considerava o mais bem construído romance de Eça, o escritor já pratica um tipo de literatura que, sem ser naturalista, continua a ser anti-romântica e se apresenta afinada com a evolução do romance europeu, principalmente com o esteticismo de um Huysmans, para não mencionar ainda outros escritores de grande voga na virada do século e pouco depois, como Oscar Wilde e Anatole France.
Assim, não é de estranhar que, para os brasileiros do final do século 19 e começo do 20, Eça tivesse encarnado adequadamente o ideal de modernidade; que tivesse representado para os leitores e escritores brasileiros um modelo, em língua portuguesa, do esforço para superar o velho mundo romântico (que no Brasil se confundia com o país monárquico, rural e escravocrata) e construir uma nova cultura: citadina, burguesa e republicana, fundada na instrução e no discernimento do cidadão médio. Um modelo, enfim, daquilo que era o título de um conto belíssimo, temperado de ironia e autocrítica, que Eça publicou originalmente em 1892 na "Gazeta de Notícias" do Rio de Janeiro: "Civilização".