terça-feira, 24 de março de 2015

Notas soltas

24 de março de 2015

Leitura literária: leitura da competência técnica, leitura da intertextualidade. Ambas pressupõem o repertório. Porque a competência técnica, a não ser que seja uma demonstração de princípios gerais, não se demonstra sem o sentido do procedimento num dado quadro cultural. A menos que se acredite num vetor evolutivo, num caminhar para o melhor ou mais puro ou mais econômico. Como não é sequer preciso demonstrar a falta de razão nessa crença, o procedimento é sempre um gesto desenhado contra um pano de fundo de expectativas de satisfação e de recusa, que lhe dá o sentido no momento em que é lançado. E esse pano de fundo “gruda” o objeto de tal modo que a tentativa da sua reconstituição se chama ensino, crítica e história da literatura. Mas a leitura propriamente literária é a do texto num dado registro, isto é: a compreensão de como ele se apropria do passado (incorporar ou recusar, nomeando, é o mesmo, nesse caso) e assim se insere no que há algum tempo chamávamos tradição. Há vários modos de um texto reivindicar o nome “literatura”. Inclusive reivindicando a denominação negativa, que poderia ser antiliteratura, por exemplo. Porque a reivindicação de pertencimento à literatura é uma demanda por uma atitude de leitura, por uma atitude do leitor. Os modos mais simples são a ocupação de um lugar: uma revista literária, um livro. Reivindicar por metonímia, diria. Ou por contágio. Também se reivindica pela ostentação do procedimento associado ao registro, como no caso das linhas interrompidas, que proclamam a poesia. E, por fim, nas formas mais complexas, pelo diálogo com outras obras, pela paráfrase, alusão, paródia, citação: uma reivindicação por metáfora, talvez pudesse dizer. Essas, porém, exigem mais do leitor: exigem a identificação do texto glosado, emulado, recusado ou indiciado – às vezes por uma palavra apenas, ou simples torneio sintático. Exigem um repertório de leituras propriamente literárias. E talvez por isso mesmo tenham sido as formas de produção e recepção que mais prontamente subsumiram o propriamente literário.
Para quem escreve literatura – e mais especificamente para quem escreve poesia – uma questão grave é que não há mais amplo repertório comum; pelo contrário, apesar da disponibilidade da informação e do acesso universal aos textos propiciado pela tecnologia, é cada vez mais estreita a base comum sobre a qual fazer funcionar a intertextualidade. Vê-se isso com mais clareza na dificuldade de fazer paródias. Sem um repertório “clássico”, no sentido de repertório comum, a paródia seca. Na modernidade, a intertextualidade corre sempre o risco de se tornar críptica (o que, diga-se, pode ser um efeito almejado e um poderoso elemento de produção sentido, como se vê, por exemplo, em The waste land). E mesmo a alta paródia e exige a mediação de um leitor especializado ou hiperespecializado – como se vê nesse mesmo poema. Por isso mesmo, em muitos casos contemporâneos a ostensiva intertextualidade tem valor indicial apenas, trazendo para dentro referências tão evidentes que já não têm poder algum de significação, além do de conclamar o literário ou reivindicar o pertencimento a um clã – o clã da pedra, por exemplo, se fosse para referir o mais simples e banal hoje na poesia brasileira. Por outro lado, a incorporação discreta corre o risco de não produzir nenhum sentido no leitor, ficando a esperança em que um remanescente especialista um dia a revele, explicitando a referência para que ela possa finalmente atuar como elemento de sentido pleno. Ou então, o que é o pior, a incorporação discreta não se decifra como apropriação legítima, que busca, com a redução da revelação da co-autoria, que o apropriado funcione plenamente e apenas ganhe mais densidade de sentido com a decifração – decifra-se como plágio, essa denominação tão grata à ignorância.
Em algum lugar está escrito que o uso de aspas ao incorporar um texto clássico era considerado, na China antiga, um insulto à inteligência e à cultura do leitor. Pode não ser verdade, mas sobre essa afirmação se poderia reconstruir a utopia da leitura preferencialmente literária.
Não gostaria que estas reflexões matinais, soltas e esparsas antes sequer do café da manhã, fossem apenas uma distopia simplificadora. É certo que o sentido se dá a ler e se produz sobre as ruínas dos antigos modos de leitura. E é provável que isso seja exatamente o ponto sobre o qual se equilibra a nossa modernidade agônica. Mas isso não me faz duvidar do fato de que todo um modo de escrever e de ler passa por um momento singular de transformação, sobre cujas causas e consequências valeria a pena especular, em vez de buscar refúgio nas boas intenções e na reafirmação da crença na perenidade da “literatura”.