Mostrando postagens com marcador Camilo Pessanha. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Camilo Pessanha. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Um soneto de Pessanha - "o mais perfeito da sua Obra"

 Estou preparando uma nova edição da poesia de Camilo Pessanha, a sair pela Dilúvio Editora, em Portugal.

Revisitar os documentos que utilizei para fazer a edição crítica e as subsequentes é sempre uma aventura. Por exemplo, estive consultando as decisões que tomei quanto ao texto do soneto que começa “Foi um dia de inúteis agonias”. Não é um soneto qualquer. Pessanha o considerava “o mais perfeito” dos seus poemas, segundo anota seu melhor amigo em Portugal, Carlos Amaro.
Ora, quando esteve em Portugal, em 1916, na sua última visita à terra natal, Pessanha anotou “de memória” alguns poemas, que depois foram utilizados para sua amiga Ana de Castro Osório compor a “Clepsydra”, de 1920. Esse soneto não está na caligrafia de Pessanha, mas de João de Castro Osório. Pessanha apenas corrigiu a palavra “impressível”, que João entendeu e anotou como “imperecível” e alguns pormenores.
Esse autógrafo deve ter servido para Luís de Montalvor publicar esse soneto na revista “Centauro”, em 1916. Publicação essa que foi revista por Pessanha, pois Pessanha teve de novo de corrigir “imperecível” para “impressível”.
Até aqui, tudo bem. Sucede que no autógrafo de Carlos Amaro há algo que torna o poema melhor, do meu ponto de vista. Algo que não há nem no apógrafo corrigido do seu espólio, nem na revista “Centauro”.
Nunca pude reproduzir essa versão, porque os critérios que escolhi exigiam que eu reproduzisse apenas a última versão, a última vontade do poeta.
Mas aqui, que é o Facebook e o meu blog, posso reproduzir o soneto da forma que me parece melhor, mesmo que seja contra a vontade do poeta – por assim dizer.
A diferença mais significativa está nos versos 6 e 8. No autógrafo que reproduzo aqui, lê-se “teu mole sorriso”. Nas outras versões “seu mole sorriso”.
Não creio que o autógrafo que pertenceu a Carlos Amaro tenha sido algum dia reproduzido. Aqui está ele, juntamente com a página corrigida da revista “Centauro”. A anotação diz: "Disse-me o Camilo Pessanha que era *Isto* o mais perfeito da sua Obra".

Para maior facilidade de leitura, eis o texto do manuscrito, já me ortografia brasileira.


Foi um dia de inúteis agonias,
-- Dia de sol, inundado de sol.
Fulgiam, nuas, as espadas frias. 
-- Dia de sol, inundado de sol. 
Foi um dia de falsas alegrias. 
-- Dália a esfolhar se, o teu mole sorriso. 
Passavam, das feiras e romarias. 
-- Dália a esfolhar se, o teu mole sorriso. 
Dia impressível, mais que os outros dias.
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido! 
Difuso de teoremas, de teorias... 
O dia fútil, mais que os outros dias! 
Minuete de discretas ironias... 
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido!






quinta-feira, 18 de maio de 2023

Um manuscrito

Isto estava em um caderno muito antigo. Manuscrito, em péssima letra, de leitura tão árdua que não garanto a fidelidade nem a autoria.

Trazia ainda uma palavra feia, que tratei logo de ocultar para menor ofensa ao leitor.


O verso 12 foi o mais obscuro, de decifração mais difícil, dada a condição do material. 


A lição deste texto é a do Alcir, a quem pedi socorro. 

A minha dizia: Que coragem te dê no que restou.

 

 

Ó bárbara criatura, ó desprovida: 

“Se em cada verso meu onde c*g*ste

Uma rosa se erguesse numa haste

Seria esta clepsidra bem florida!”

 

- De nada valem reis ou marafonas

Em teu socorro virem com asnices:

Não há como ocultar tuas sandices,

Não há como esconder um Amazonas. 

 

E se vires que possas afogar

Alguma inveja no bestunto teu,

Roga ao Deus que teu cérebro encurtou

 

Que fé te dê no pouco que sobrou

Pra confessar que no trabalho meu

Cuspindo disfarçaste o chupitar.

 

 

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Uma aluna de Camilo Pessanha

 Quando recortava, para publicar, o texto sobre Danilo Barreiros, lembrei-me da conversa que tive com D. Henriqueta, sua mulher, que fora aluna de Camilo Pessanha em Macau. 

Eu queria confirmar uma percepção. 

É que, por obra dos vários inimigos que o poeta granjeou naquele mundinho abafado, que era o da comunidade portuguesa de Macau, difundiu-se a legenda do poeta maltrapilho, sujo, opiômano, incapaz de qualquer esforço, mau professor etc. 

Até hoje muita gente engole isso tudo como verdade, mesmo com os dados disponíveis – alguns dos quais eu mesmo trouxe a público tanto no livrinho sobre Pessanha publicado pela Imprensa Nacional de Portugal, quanto na edição brasileira da Clepsydra, pela Ateliê. 

Sem dizer nada, pedi a D. Henriqueta que me descrevesse o poeta no dia a dia, pois eu sabia que ele almoçava uma vez por semana em casa de seu pai. 

O que ela me descreveu confirmou minha hipótese e desacreditou de vez o que eu já adivinhava ser exagero, e mais que exagero, falsidade. Sempre elegante, me disse ela. Excelente professor, que encantava os alunos. (Que era competente e dedicado eu já sabia, pois tinha visto as extensas e anotadas folhas em que escrevia a matéria das aulas.) 

Perguntei-lhe, então, de repente, se era verdade que ele não era asseado. Ao que ela me respondeu com certa dose de indignação. De forma alguma, era um home elegante – repetiu – e trazia sempre um lencinho no bolso do paletó. Mencionou cabelo e barba cuidados. E acrescentou que se sentava sempre na primeira fila, na classe (o que, entendi, garantia o que dizia). Por fim, disse  que gostava do sentir o perfume usado por ele. Sempre perfumado, repetiu. Da mesma forma que na escola, à mesa de almoço em sua casa era o mesmo homem bem vestido e elegante – repito a palavra porque era recorrente na conversa.

Dois anos depois, quando voltei a Portugal, conheci Daniel Pires. Dele ganhei um conjunto notável de fotografias de Pessanha. E ainda, em seguida, a fantástica fotobiografia do poeta. Ali se veem muitas coisas. Inclusive as fotografias em que Pessanha posa de mendigo, acompanhado de dois cãezinhos e de uma bengala de castão de prata, sobre um rochedo. Ele ri, contidamente. Faz ali o papel de um eremita ou poeta vagante. Anos depois, propositadamente se ignorou que naquele tempo não havia ainda kodaks portáteis. Para o registro, o poeta teve de fazer ir até lá um fotógrafo com seu equipamento. Depois, mandou fazer várias cóppias, emoldurou-as, autografou-as e enviou para amigos. Durante muitos anos, passaram por provas do seu desleixo e achinesamento (essa palavra que valia um insulto). Como se ele inadvertidamente tivesse sido fotografado, surpreendido em decadência. Para dizer como ele disse num verso célebre, em que desvios a razão se perde!

Memórias: Danilo Barreiros


O que vem a seguir, em três partes, é um extrato de um texto mais longo e nunca publicado.

Enviei-o a Pedro Barreiros, quando ele começou a redigir a biografia do pai. Enviei junto as cartas nas quais Danilo terminou a narrativa, pois ficou interrompida pela minha volta ao Brasil.

O encontro com ambos, a que se acrescentou depois o conhecimento da mulher de Pedro, Graça, foi uma das grandes alegrias que tive em Portugal.

 

 

I

 

            Em 1989, de passagem por Lisboa, perguntei a vários conhecidos se ainda vivia e se morava em Lisboa o Dr. Danilo Barreiros. Ninguém sabia responder. A única pessoa que com ele estivera ultimamente, disseram-me, andava agora por Macau, em busca dos rastos de Camilo Pessanha para compor uma fotobiografia.

            O homem era para mim uma referência bibliográfica. Tomei certa vez um avião em São Paulo e voei ao Rio de Janeiro para consultar, na Biblioteca Nacional, A paixão chinesa de W. de Moraes. Tinha dele algumas outras notícias, que me levavam a procurá‑lo. Uma, que morara longos anos em Macau, onde convivera com o grande sinólogo José Vicente Jorge, companheiro e professor de Pessanha. Outra, que se casara com uma filha de Jorge, aluna de Pessanha no Liceu de Macau, herdeira de muitas recordações do mestre e de uma bela coleção de arte chinesa do pai.

            Sobre um móvel de canto, na sala de televisão do hotelzinho, estava a lista telefônica. Na letra B, o nome de minha principal bibliografia sobre Wenceslau de Moraes. Telefonei‑lhe, apresentei‑me e desliguei, surpreso, com uma entrevista marcada para segunda‑feira às duas horas da tarde. Era sexta‑feira, e o programa do final de semana era uma festa de touros Tejo acima, em Alcochete.

            Quando voltei dos touros, fui à casa de Danilo Barreiros. Dona Henriqueta, bem-disposta e elegante, abriu‑me a porta do apartamento da rua Coelho da Rocha e entrei em uma sala grande, que tinha ao fundo um retrato de Vicente Jorge e uma infinidade de outros objetos que só aos poucos pude observar com atenção. Enquanto aguardava, entretive‑me com as peças mais impressionantes e que eram, nesta exata ordem, um biombo de madeira escura coberto de baixos-relevos, um console chinês esculpido e um buda sorridente, que segurava um colar de contas. Todo em bronze, Sakhiamuni vinha ladeado por dois leõezinhos simpáticos, gorduchos, de boca escancarada.

            Não terminara ainda com o sino que ficava mais à esquerda e já Danilo Barreiros chegava, maldizendo a ciática que o castigava muito nos últimos dias. Embrulhado em uma espécie de robe‑de‑chambre arroxeado, que mal se acomodava sobre os pijamas largos, pediu logo ao menino ‑‑ que era eu ‑‑ que o ajudasse a se sentar junto à janela, numa cadeira de braços. Ficamos ali por alguns minutos. O motivo de minha visita, sua disposição em me ajudar, a falta de memória de sua mulher... Nisso sobe as escadas um rapaz magricela e miúdo, que vem consultar o advogado Dr. Barreiros sobre um ponto obscuro na interpretação de uma lei. De minha cadeira, agora à vontade para olhar detidamente o sino, a floreira e os pormenores do console, acompanho a exposição do artigo do Código Civil. É uma explanação clara e enxuta e o pequenino advogado ou estudante de Direito em breve se atira pela escadaria abaixo. Como o calor aumentasse muito, deslocamo‑nos para uma outra pequena sala, de mobília mais chinesa e luz mais escassa. Dizendo‑lhe eu que queria saber a sua vida, o porquê de ter ido a Macau e o que vira por lá pouco depois da morte de Pessanha, propôs‑me Danilo Barreiros o seguinte procedimento: ele iria dizendo o que lhe lembrava; eu anotaria o que me interessasse. Acrescentou, enigmaticamente, que nada ocorria por acaso e que, por isso, podia eu ter certeza de que algo me havia levado até ele naquela tarde quente de segunda‑feira; tínhamos uma missão por cumprir.

            Colocado junto à janela, onde havia mais luz, concordei com a primeira ideia. O calor externo estava realmente insuportável. Passaria ali a tarde, ouvindo as lembranças de Danilo Barreiros e logo mais, à noite, iria vagabundear na Baixa.

            Comecei a tomar notas. Disse‑me ele que nascera em 11 de outubro de 1910, em Lisboa, seis dias depois de proclamada a República. O local era a Rua Arco Marquês de Alegrete, na Mouraria, junto à capela. Era filho de Gregório da Costa Barreiros, originário de Trás‑os Montes. Esse Gregório viera muito cedo a Lisboa e ingressara ainda criança na vida artística, com o nome de Eduardo Barreiros. A respeito do pai, disse‑me que nenhum dos dois nomes era correto, porque o segundo era falso e o primeiro deveria ter sido Gregório Barreiro da Costa.

            Não sabia exatamente por que anotava tudo isso, nem por que ele me contava sua história ab‑ovo. Se devíamos chegar a Macau, o caminho seria muito longo, pensei, e não se vai nesse passo horas a fio com uma ciática tão cruel.

            Fui interrompido, quando divagava nessas questões, por uma observação completamente esdrúxula. Danilo Barreiros, olhando‑me fixamente, disse quase gritando: ‑‑ "O senhor é judeu!" Eu me espantei, é claro. Árabe, sem dúvida, por parte de avô. Judeu era novidade. Disse que não, bati a ponta da caneta no caderno, mostrei que estava a postos para anotar. Só faltava dizer: ora, deixe de brincadeiras, Dr. Danilo, tomemos logo o vapor para Macau! Mas ele me lembrou de que nada sucedia por acaso. Disse que meu perfil jamais o enganaria. A linha da testa, o queixo ‑‑ ou era o traçado do nariz? ‑‑ lhe indicavam claramente o sangue judeu em minhas veias. Falava com tal convicção, que me dispus a encarar o assunto. Pus o caderno sobre a mesinha e esperei. Perguntou‑me se tinha ascendência portuguesa. Disse que sim, que minha avó paterna era uma Teresa Barreira, de Trás‑os‑Montes. Apoiado em boa erudição e maior entusiasmo, o Dr. Danilo explicou‑me de chofre nosso obscuro parentesco, pois não havia dúvidas de que éramos marranos fugidos para Trás‑os‑Montes. Explicou‑me, de entremeio, que os enchidos sem carne, de que eu gostava tanto, eram criação dessa gente que para ocultar a origem matava também o seu capado nos dias previstos e pendurava bem à vista os enchidos ‑‑ sem carne, só aparência, para fugir à perseguição. Mostrou‑me a seguir, apoiado em altas especulações genealógicas e etimológicas, que éramos da mesma família e que, mesmo passados tantos anos e muitas gerações, nem por isso deixávamos de ser primos. Primo! Eu que chegara a ele pela lista telefônica era agora gente da casa! Nessa nova condição, fui novamente apresentado à aluna de Camilo Pessanha, que acorrera ao chamado emocionado de meu parente, trazendo com ela uma mulher que também era da família, além de minha colega. Era judia da gema e professora de uma universidade em Tel‑Aviv. Quase em seguida, chegou um neto do Dr. Danilo que era também, consequentemente, meu primo. Depois outro primo, pai deste, médico e pintor, filho de Danilo. Nessa altura, já tínhamos interrompido as lembranças e as anotações. Voltando à sala grande fizemos alguma festa, com uísque e cerveja. Afinal, desde o tempo de D. Manuel I que a família não se reunia! Cheio de emoção e de bebida, saí de casa de meu primo completamente trôpego, sem qualquer outra utilidade por aquele resto de dia que não fosse dormir despachadamente. Nem mesmo pude ir passear na Baixa e beber a brisa do Tejo. Devo ter descido sem acidentes as escadas, porque acordei ainda eufórico e inteiro, na terça‑feira de manhã.

 

 

II

 

            À tarde fui, na mesma hora, visitar os parentes. D. Henriqueta me recebeu com a cara um pouco mais fechada. Desejava por certo que não se repetisse a pândega do dia anterior, temerosa pela saúde e pelos setenta e nove anos do marido. Este já me esperava na saleta. Mal consegui instalar‑me, começou a contar que sua mãe, que se chamava Carolina Alice Nunes, era atriz e tinha dezoito anos quando ele nasceu. Fui anotando os dados e de novo me veio o pensamento de que aquilo não acabaria mais. Estávamos na segunda tarde de trabalho e meu primo mal acabara de nascer. Nesse ritmo, pensei, mal chegaríamos à primeira adolescência antes do prazo previsto para minha volta, que era dali a uns dez dias. Contou‑me a seguir o seu batizado na Igreja da Mouraria, e nomeou os padrinhos: meu compatriota Leopoldo Fróis, de Niterói, fundador da Casa dos Artistas, solteiro, e uma cantora lírica espanhola chamada Dolores Rentine. A respeito desta, disse‑me ainda que era de origem italiana e de família circense. Declarou ainda que a própria rainha de Espanha a mandara para o Conservatório de Madri, onde deveria apurar a voz maravilhosa. Ora, essa Dolores foi certa feita ao Brasil, numa companhia organizada por um grande empresário português que era também seu marido. No Rio de Janeiro, conhecera Dolores o Dr. Leopoldo Fróis, delegado de polícia. Viram‑se, apaixonaram‑se e ele deixou tudo para segui‑la a Portugal. De modo ‑‑ disse‑me o primo ‑‑ que na sua Certidão de Batismo a única pessoa casada era a madrinha, mas com outro homem. Fróis não era marido dela, nem de ninguém, e o meu tio não se havia casado ainda com a minha tia.

            Por parte de pais, os avós de Danilo Barreiros eram jornaleiros de Peso‑da‑Régua e Mesão‑Frio, nomes sugestivos, mas dos quais minha ignorância geográfica nunca tivera menção.

            Dizia‑lhe a sua mãe que o pai quisera que ele nascesse na Mouraria para que, se fosse homem, viesse a ser fadista. Pessoalmente, confidenciou, não acreditava nela e jogava a frase à conta de sua megalomania. A mãe fora filha de um operário que morreu tuberculoso no Hospital São José e de uma lindíssima senhora, de cujos olhos azuis e cabelos louros jamais conseguiu saber a origem exata. Chamava‑se essa sua avó Virgínia.

            O pai de Danilo Barreiros, que era considerado o melhor tenor português do tempo, conheceu Dolores Rentini e Leopoldo Fróis e com eles foi para o Porto, pois Dolores organizara uma companhia teatral dedicada a operetas e montara naquela cidade do norte a Viúva Alegre. Na peça, Leopoldo era Danilo Danilovitch e Eduardo Barreiros era a personagem secundária, o tenor. Dessa atuação e dessa amizade, veio o nome de meu primo, Leopoldo Danilo. Pouco depois do nascimento, foi a companhia para o Brasil, onde atuaria no célebre Teatro do Pará. No Brasil, a Companhia Dolores Rentini foi dizimada pela febre amarela. O pai de Danilo morreu, ficando sepultado no Pará. Faleceu também Dolores, pouco depois, e foi enterrada no Recife. A mãe de Danilo, que era muito bonita, continuou no Brasil como atriz secundária e lá faleceu, muitos anos depois, como viúva do General Hilton Fontoura, que era apenas um ano mais novo do que meu primo.

            Quando este se levantou para ir até a estante de livros, notei que estava exausto. Trouxe‑me de lá um volume: As mil e uma vidas de Leopoldo Fróis, de Raimundo de Magalhães Jr. A história desses tristes acontecimentos está toda aí, disse‑me. Aproveitando a pausa, disse‑lhe que seria melhor interrompermos nesse ponto a narração e continuarmos no dia seguinte, se não houvesse problema.

 

III

 

            No caminho do hotel, pensei que aquela era uma situação muito estranha. Fora a casa do Dr. Danilo para obter informações sobre Pessanha e Wenceslau e estava agora biografando o biógrafo. E num ritmo tal, que na melhor das hipóteses, viajaria para o Brasil deixando meu primo ainda a poucos anos da adolescência. Macau ficava cada vez mais longe. No entanto, a viagem pelo passado estava agradável. O Dr. Danilo tinha muito estilo e muito humor. Era bom estar naquele terceiro andar cheio de lembranças da China. Resolvi continuar.

            Quando voltei, feitos os cumprimentos de praxe, recomeçou o primo seu relato como se entre a última frase e esta não houvesse um dia inteiro, mas apenas alguns minutos. E como visse que me dispunha a tomar muitas notas, começou ele a falar bem pausadamente, num quase ditado, que fui taquigrafando como pude:

            [...]

            Nesse ponto, provavelmente lembrado dos motivos que me haviam trazido até sua casa, Danilo Barreiros deu por encerrada a sessão da tarde, prometendo cenas picantes para o dia seguinte. Apanhou então, da estante, um vasto arquivo sobre Wenceslau de Moraes, onde colecionara tudo o que pôde sobre o eremita de Tokushima. De uma gaveta, sacou uns papéis velhos que também me deu. Eram três cartas inéditas de Moraes ao seu amigo João Vasco. Passou‑me ainda uma terceira pasta, amarrada com barbantes de armazém, em que havia uma infinidade de recortes de notícias variadas sobre o Japão, publicadas na imprensa portuguesa ao longo dos últimos trinta anos. Disse‑me que poderia fotocopiar os arquivos e publicar as cartas de Moraes ‑‑ por conta, é certo, de nosso parentesco. Como também me disse que podia publicar suas memórias, tudo o que disse e também o que não disse e eu julgasse que deveria ter dito. Passamos o resto da tarde a falar de Moraes e de Pessanha e saí dobrado sobre uma sacola de feira cheia daqueles papéis. Como fosse a Sintra no dia seguinte, marcamos para segunda‑feira a continuação dos trabalhos. Ele me prometeu que chegaríamos, em uma tarde, a Macau. Não acreditei. Não fazia mais, também, questão alguma.

            Na segunda‑feira, meu primo estava mal. Aumentara a dor da ciática e uma complicação do estômago o deixara muito debilitado no final de semana. Queria, porém, continuar ditando. Insistiu, por isso, que me acomodasse em uma cadeira de balanço ao pé de sua cama, pediu um abajur a D. Henriqueta e, lembrado de que paramos quando de suas furtivas excursões para fora do Colégio, recomeçou a história.

            [...]

 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Uma carta de Mecia de Sena

    Em 1993 conheci, em Los Angeles, Emmanoel Santos. Sua simpatia me causou profunda impressão e nos estendemos em longa conversa, como se não fosse o primeiro encontro. Quando nos despedíamos, disse-me ele que eu precisava conhecer sua mulher, Gilda, porque ela era como eu. Usou a seguir uma palavra do campo semântico da palavra “dínamo”, que depois pude constatar ser muito apropriada para descrevê-la, mas não a mim, muito mais lento, e acomodado.
    Gilda estava em Santa Barbara e para lá segui, no final de semana, para encontrá-los na casa de Mecia de Sena.
    A partir daquele momento estava selada uma das amizades mais gratificantes, que foi a do casal Santos, e estava criada a condição para uma longa troca de correspondência com Mecia, com quem, apesar de ter regressado várias vezes aos EUA e de ela ter vindo algumas ao Brasil, não tive a oportunidade de ter outro encontro pessoal.
    Nesse diálogo epistolar, que se estendeu até o começo dos anos 2000, tratamos um pouco de tudo: da obra de Jorge de Sena, que me entusiasmara, dos percalços editoriais, dos seus esforços para editar e divulgar a obra e de um projeto, que não consegui levar a cabo, que era ajudar na publicação da correspondência de Sena com Alexandre Eulálio.
    Várias vezes pensei que valeria a pena publicar as cartas que me mandou, mas alguma confusão nos meus papeis fez com que desaparecessem. Em vão as procurei, porque em duas delas havia informações sobre Camilo Pessanha que teriam sido úteis quando escrevi o livrinho da coleção O Essencial. Lembrava-me, aliás, perfeitamente do que tinha lido, mas sem as cartas não me atrevi a incluir nenhuma informação.
    Também sentia muito não encontrar essas cartas, por conta de ela ter feito, num comentário justamente a um artigo que escrevi sobre a biografia de Pessanha, observações muito interessantes quanto a fantasias biográficas sobre Fernando Pessoa.
    Numa dessas noites de insônia, quando a gente termina por fazer algo apenas para passar o tempo e aguardar o começo do dia, finalmente encontrei-as num lugar improvável, onde jaziam há anos fora do alcance. Tive vontade de reuni-las, transcrevê-las e publicá-las numa revista, para preservar a sua memória. E talvez ainda o faça. Mas como não é certo, pensei que valeria logo a pena, sem nenhum aparato nem transcrição, dar a conhecer a mais interessante delas, datada de 24 de março de 1994.
    
    E é isso que faço a seguir.





quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Depoimento - Camilo Pessanha

  

MEMÓRIA

            

 

Quando me convidaram para participar deste volume, confessei com sinceridade que não tinha, no momento, nada mais a dizer sobre Camilo Pessanha. Ou melhor, que não tinha nada encaminhado, nem energia alguma, neste difícil momento em que se acha mergulhado meu país, para organizar o que ainda restasse de intuição de leitura ou de desejo de reparação.

Ante a resposta negativa, acompanhada de todas as desculpas que a amizade exigia, ofereceram-me a possibilidade de redigir uma memória, um depoimento sobre o trabalho que em tempos realizei à volta do poeta e sua obra.

É provável que não devesse abusar do oferecimento gentil, que devesse continuar firme na negativa, mas ocorreu-me que talvez valesse a pena registar não só as contingências do que pude fazer, mas principalmente a generosidade de tantas pessoas que encontrei ao longo dos anos. Generosidade tão notável quanto inesperada, e da qual me vali numa medida tão grande que posso dizer que nada do que pude fazer teria sido feito em outra circunstância, dada a premência do tempo e as contingências da vida.

Assim, porque a retribuição é, do meu ponto de vista, obrigação sagrada, resolvi escrever esta memória, que regista também, em certos aspectos, um mundo que já desapareceu.

Então, que seja.

 

 

            1. QUE QUER DIZER ISTO?

 

Foi o que me perguntei sempre, ao ler Camilo Pessanha. Pela primeira vez no começo dos anos de 1970 e sempre que voltava e ainda volto aos versos, mesmo sabendo-os de cor, e tendo com eles longamente convivido em aulas, palestras, artigos e livros.

Quando iniciei os estudos de pós-graduação, dediquei-me à poesia concreta brasileira. E na sequência, querendo entender como funcionava o ideograma numa língua em que ele era moeda corrente, dediquei-me ao estudo do japonês. Daí passei ao haicai e às leituras sobre assuntos orientais. E ali voltei a encontrar, por outro caminho, o poeta.

No Brasil, a formação universitária naquela época tinha um ritmo lento. Foram 5 anos para obter um mestrado. E era comum que as pessoas demorassem outros 10 para terminar um doutoramento. Por isso mesmo, não tive pressa. Ao sabor dos interesses, deparei-me com Oliveira Martins, e nele e na Geração de 1970 permaneci um bom tempo. Tempo no qual Camilo Pessanha era apenas um dos poetas que integravam o programa da disciplina que ministrava na Unicamp e sobre o qual me dedicava, de tempos em tempos, a pensar de modo mais sistemático.

Na segunda metade dos anos de 1980, decidi escrever um ensaio sobre o poeta. Poderia ser um artigo, um livro avulso (como o que tinha feito sobre haicai), ou talvez mesmo uma tese de doutoramento. E como a carreira exigisse em algum momento o título, resolvi que, sim, faria uma tese sobre o poeta. Finalmente levaria a cabo um esforço consequente de leitura.

Entretanto, após a consulta ao que havia disponível no Brasil, um problema logo se apresentou: o cotejo das várias edições da Clepsydra trazia problemas de todo o tipo quanto ao “livro”, isto é, o desenho geral de um conjunto que o organizador afirmava ser projecto do autor. Mas qual seria esse livro? O de 1920, o de 1945 ou o de 1969? Além disso, no começo de 1985, a publicação de um número especial da revista Persona trouxe estudos, manuscritos, depoimentos e versões de poemas depois incluídos na Clepsydra, que me fizeram desistir de usar as edições “canónicas" como base do futuro ensaio interpretativo. Na sequência imediata, a publicação do “Caderno poético” numa versão pouco legível, em 1986, fez-me suspeitar ainda mais das edições correntes, tanto no que diz respeito à lição dos poemas, quanto à organização deles em conjunto significativo.

Por isso mesmo, decidi, antes de tentar saber o que queriam dizer aqueles poemas, saber o que eles eram, do ponto de vista da confiabilidade textual. Pensava que seria uma etapa difícil, mas breve, e por isso fui a Portugal pela primeira vez, por um mês, em Julho de 1989.

 

 

2. A SORTE

 

Em Portugal conhecia apenas uma pessoa, Teresa Sobral Cunha, com quem me encontrei no Brasil, por ocasião do centenário pessoano. E creio que o facto de ela ter sido o meu primeiro e mais duradouro ponto de referência em Portugal tem grande importância para a definição dos rumos da minha investigação. 

Além da Teresa, tinha tido contacto por carta, por conta de uma publicação sobre Wenceslau de Moraes e o haicai, com Joana Varela, editora da Colóquio-Letras. E foi por intermédio da primeira que marquei uma entrevista com a segunda, a quem expus o que me trazia a Lisboa.

Joana Varela foi a primeira pessoa que me falou de outro estudioso da obra de Camilo Pessanha: Gustavo Rubim. Disse-me ela que eu precisava de conhecê-lo, falou-me com entusiasmo do seu trabalho sobre Pessanha. Mas daquela vez não foi possível encontrá-lo. 

Foi também Joana que me pôs em contacto com meu primeiro benfeitor no caminho do poeta: Luís Amaro. Telefonou-lhe, disse que estava por ali um brasileiro interessado em escrever uma tese sobre Pessanha, pediu-lhe ajuda e marcou o encontro para o dia seguinte, porque o tempo era curto.

“Estou trabalhando para si. Aguarde só um momento”. Foi assim que o encontrei, debruçado sobre a máquina de escrever, terminando de dactilografar. E na sequência entregou-me, em várias páginas, uma longa lista de artigos em jornal e em revista, além de capítulos de livros sobre Camilo Pessanha, bem como de material iconográfico. Era o que ele conhecia e tinha catalogado, disse, apontando vagamente para um grande ficheiro. E acrescentou, com a modéstia bem conhecida, que talvez não ajudasse, pois eu provavelmente já conheceria os textos principais. Mas ia permitir talvez alguma economia de tempo de pesquisa.

Evidentemente, eu pouco conhecia daquilo tudo. Principalmente o que tinha vindo em jornais e revistas portuguesas. E a listagem de facto economizava-me, de modo quase mágico, uma semana (ou talvez mais) de trabalho na Biblioteca Nacional. Creio que não tornei a vê-lo depois desse dia. Mas por mais que tenha agradecido, não creio que o tenha feito de modo suficiente.

Luís Amaro disse-me ainda que eu devia procurar um estudioso da obra de Pessanha, que vivera em Macau e estava a organizar uma edição crítica. Chamava-se Daniel Pires, mas aparentemente tinha voltado a Macau. Que eu não me esquecesse de tentar contactá-lo, pois o que eu buscava, em termos de obter textos fidedignos sobre os quais escrever, ele certamente teria, ou estaria prestes a ter. 

Como o outro, este também foi uma presença fantasmática ao longo dos dias daquele mês no qual eu começava ao mesmo tempo a perceber que a tarefa que me propusera seria mais difícil e ampla do que pensava, e alimentava a esperança de que o trabalho essencial já estivesse feito e eu dele pudesse valer-me.

 

Das leituras que tinha feito no Brasil e em Portugal, dois nomes me pareciam centrais para o que eu queria: Carlos Amaro, que inclusive teria projectado publicar os poemas de Pessanha numa plaquete, e Danilo Barreiros, que descobrira o “Caderno” e conhecera o parceiro do poeta na tradução de textos chineses, José Vicente Jorge. O primeiro tinha falecido em 1946; o segundo, pelo que soube, vivia em Lisboa.

A minha impressão de Portugal, nesse primeiro contacto, era de que se tratava de um país muito tradicional, no qual as mudanças se processavam lentamente. Era talvez uma impressão errada, mas valeu-me de muito. É que, pensando assim, fui ao catálogo telefónico da pensão onde me hospedava e busquei Carlos Amaro. No Brasil, jamais faria isso: procurar o nome de uma pessoa falecida há mais de 40 anos. Mas em Lisboa tudo parecia possível e atendeu-me uma senhora, que se identificou como Henriqueta Rodrigo, filha de Carlos Amaro. Expus-lhe o que me trazia a Lisboa, ela disse-me que tinha, sim, algumas coisas de Pessanha com ela. E no dia seguinte visitei-a, pelo fim da tarde.

Não exagero ao dizer que a visita foi um choque. Tomámos chá, conversámos um pouco. Ela pareceu ter real interesse em conhecer os projectos e motivos do brasileiro que estudava Pessanha e que não tirava os olhos da parede. E então permitiu-me ver o que lá havia. Emoldurados como quadros, dois manuscritos. Um, do poema intitulado "Violoncelo"; outro de um poema sem título, que nas edições canónicas se chamou “Final" ou “Poema final”.

Ambos traziam revelações. ”Violoncelo”, porque estava escrito na nova ortografia, diferentemente dos demais que Pessanha deixara registados, o que indicava que era posterior; e também porque na última estrofe havia uma inversão de versos, pois o poema terminava com a palavra “despedaçadas”. O outro, que era na verdade uma versão anterior à que já tinha visto no conjunto de manuscritos de 1915, depositados na Biblioteca Nacional, trazia uma indicação preciosa: “(Última página de um livro em tempos delineado)”. 

O mais impactante naquele momento, porém, foi “Violoncelo”. Por isso comentei com D. Henriqueta a diferença da versão conhecida. E ela disse-me: “Meu pai sempre declamou assim, e dizia lentamente des-pe-da-ça-das, como se despedaçando a palavra”. Quando lhe disse que parecia uma versão mais nova do que a que conhecia, ela disse que devia ser, pois fora enviada da China para seu pai, depois do regresso de Pessanha. E acrescentou que, como eu podia ver, era papel “for post”. 

Na sequência, disse-me que havia ainda muita coisa, e trouxe uma caixa com cartas do poeta, que me deixou rapidamente espiar. Explicou que estava a transcrevê-las, que Pessanha era muito maledicente, nomeava pessoas, falava mal delas. Na sua transcrição, ela suprimia os nomes, pois o pai não gostaria que aquilo transpirasse, pois ter-se-ia sentido cúmplice.

E não foi muito mais. Perguntei-lhe sobre Daniel Pires, que ela conhecia bem. Estava ele em Macau, mas ele conhecia tudo aquilo e muitas outras coisas. E por fim aconselhou-me a saber como encontrar-me com Daniel, pois era a pessoa que mais parecia conhecer o poeta e a sua história.

 

Animado com a descoberta, no dia seguinte repeti o procedimento: busquei na lista Danilo Barreiros. E foi ele mesmo que atendeu.

No dia seguinte, pelo fim da tarde, quem me abriu a porta foi sua mulher, D. Henriqueta, ex-aluna de Camilo Pessanha e filha de José Vicente Jorge.

A casa de Danilo Barreiros era uma parte da China incrustada em Lisboa. Havia quadros, estatuetas, dúzias de objectos chineses e um grande Buda de bronze perto da porta de entrada. E sobretudo havia aquelas duas personagens das histórias lidas, uma mulher elegante, reservada, e um homem de energia esfuziante e de um entusiasmo que contagiava.

Perguntou-me o que eu tinha vindo fazer a Lisboa, qual o interesse específico. E quando, de passagem, lhe disse que também tinha estudado Wenceslau de Moraes, pareceu impressionado. Mais ainda quando lhe disse que tinha lido os livros dele. Por fim, não se conteve quando me perguntou se havia livros seus em São Paulo e eu disse que não, que tinha ido ao Rio de Janeiro, onde os encontrei na Biblioteca Nacional. “Henriqueta, – gritou – este senhor viajou 400 km para ler os meus livros!”. 

Não faria parte desta narrativa o que sucedeu a seguir, não fosse por um desdobramento, para além de afectivo, literário. E foi o seguinte: Danilo, no meio da conversa, pediu-me que me levantasse de onde estava, ao lado do Buda, e me sentasse numa cadeira de espaldar recto em frente a uma janela. Fiz o que pedia, mas não era suficiente: “de perfil para mim, por favor”. Sou um sujeito cordato, e assim me pus. E então ocorreu algo realmente inesperado. Disse-me ele: "o senhor é judeu!”. Que eu soubesse, não – respondi. Talvez árabe, por parte de avô. Não, insistiu ele: judeu, pela linha da testa ou do nariz ou do queixo - não me lembro bem. Eu queria voltar logo ao Pessanha, então me resignei com a análise e disse que talvez. Mas ele insistiu no questionamento: tem antepassados portugueses? Uma avó, respondi. Como se chamava? Teresa Barreira, eu disse. De onde? – ele perguntou, com muita animação. E eu disse o que sabia: de alguma aldeia em Trás-os-Montes.

Danilo exultou. Disse-me que éramos da mesma família: Barreira e Barreiros eram o mesmo, como se via em tal livro que apanhou na estante. E proclamou, afinal: “Somos primos!”.

Na sequência, chamou D. Henriqueta e apresentou-me como membro da família. Confesso que ela não pareceu nem muito animada, nem muito convencida. Mas não recusou o que ele lhe pediu a seguir: uísque, para celebrar, enquanto ligava para o filho, Pedro Barreiros, que tirou do trabalho para conhecer o primo brasileiro.

Pedro, com quem depois trabalharia e a quem devo tantas coisas, inclusive o convite para escrever o livro O Essencial sobre Camilo Pessanha na colecção da Imprensa Nacional, pareceu a princípio preocupado com o parente súbito, mas logo, por algum motivo, se tranquilizou e voltou ao que fazia.

E ali ficámos os dois, ainda a falar de Moraes e de Pessanha e de José Vicente Jorge e de Danilo Barreiros.

Danilo sofria de gota, mas a ocasião merecia o uísque. E junto com o uísque vieram lembranças, histórias de Macau e do Rio de Janeiro, e muitas outras coisas preciosas: um enorme álbum de recortes com tudo o que ele tinha coligido ao longo da vida sobre Moraes; o mesmo sobre Pessanha, e os seus próprios livros. Um deles, sobre Moraes, precisava de ser reeditado. Que eu o retomasse, ampliasse com a parte do haicai e outras que eu saberia melhor sobre o Japão, e que o publicasse no Brasil, com ambos os nossos nomes na capa! Por fim, o melhor: os manuscritos. O rascunho do “Vida” e outros, em originas e cópias. Tudo!

Ali conversámos longamente e bebemos longamente, até D. Henriqueta, preocupada com o excesso, delicadamente pôr fim à tertúlia. Antes que eu saísse, porém, Danilo ajuntou tudo aquilo em duas grandes sacolas – tudo, inclusive os manuscritos e os rascunhos de trabalhos seus. Agarrou nelas e quando me levou à porta, pediu-me que levasse aquele material, que o examinasse e usasse o que me conviesse. E depois devolvesse.

 

Voltei naquela semana uma vez à casa de Carlos Amaro, com uma garrafa e alguma esperança, porque o uísque era algo que a filha também apreciava e eu queria partilhar um final de tarde à sombra dos manuscritos. E também queria fazer uma fotografia do manuscrito do “Violoncelo”. Felizmente tivemos uma bela tarde de conversa, infelizmente não fui autorizado a fotografar o manuscrito. O que me valeu no futuro alguns dissabores, pois como registei sempre, como base, a última versão conhecida de cada poema, fiz o mesmo com o “Violoncelo”. Mas sem provas da sua existência, apanhei um pouco, sem poder retrucar e exibir o documento. Hoje o autógrafo está na Biblioteca Nacional, mas não permaneceu inédito: assim que D. Henriqueta faleceu, ele surgiu numa edição brasileira dos poemas de Pessanha, graças a Daniel Pires, que dele sacou, em certo momento de descuido da proprietária, para ma oferecer, uma fotografia sorrateira.

 

À casa de Danilo voltei várias vezes, porque ficámos amigos e eu lhe pedi algo que faria bem a nós dois: que me ditasse as suas memórias. 

Danilo tinha uma memória fabulosa e o dom da oratória. Dia após dia, por uma ou duas horas ditou-me a vida desde a infância, inclusive alertando para a necessidade de vírgulas, quando achava que não estava claro o ritmo da frase. Como piorasse da gota e eu tivesse de voltar, encerramos em 3/4 do tempo vivido. O restante 1/4 enviou-me depois ele, ainda com o vocativo de “querido primo”, para o Brasil. Mas do que me disse sobre Pessanha, como jurista e como sinólogo, disso tomei notas tanto quanto pude.

Do material que me deu, fiz fotografias. Do que me disse, também, mentais. Mas lamentei muito não ter um gravador. Não só para registar o que ele me disse, mas principalmente (porque ele escreveu, mas ela não), o que me disse D. Henriqueta sobre Pessanha, seu professor.

E o que ela me disse confirmava o que eu já tinha imaginado pelas fotografias que vira e pelo relato do seu enterro: era um homem da sociedade macaense, respeitado, elegante; almoçava pelo menos uma vez por semana em casa de seu pai, e estava sempre perfumado, com um lenço de seda no bolso. Disse-me que se sentava na primeira fileira, na classe, e que ali também o encontrava sempre bem vestido e perfumado. Por fim, que era um excelente professor. Em suma, desmentia com empenho a legenda miserabilista que se construíra sobre o homem. Era alguém importante na comunidade, repetiu-me. Poucos meses após falecer, uma rua ganhou o seu nome. E tudo estava de acordo com o que eu mesmo intuía ou ia descobrindo, e poderia constatar quando fosse a Macau, dois anos depois.

 

 

3. O ACASO

 

Tendo estudado no Brasil o que levara da primeira viagem e sistematizado o material disponível, ainda não sabia bem o que fazer. 

Já nessa altura estava matriculado no curso de doutoramento sob orientação de Maria Helena Garcez, e tinha cursado as disciplinas necessárias. Ainda queria fazer um ensaio. Mas processava os textos, em busca do que me parecia a versão mais fidedigna. 

Teresa Sobral Cunha insistira em Lisboa e continuava a insistir por cartas para que eu fizesse uma edição crítica da poesia de Pessanha – o que me parecia, naquele momento, um desvio. Além disso, não tive formação filológica. Agora, no Brasil, a minha orientadora sugeriu o mesmo. Viu que eu tinha uma tese, que era a de que as edições feitas pelos Osórios não se sustentavam, principalmente no que diz respeito à forma do livro, isto é, ao desenho temático ou formal que o volume pressupunha. E aconselhou-me a expor e defender essa tese, embasado no que eu tinha descoberto nos autógrafos.

A princípio a ideia desagradou-me. Indeciso, acabei por continuar, porém, mas ainda sem propósito de tese, o que vinha fazendo: anotar todas as variantes conhecidas de cada poema, tendo como referência a última versão conhecida. Para isso tinha criado um programa de computador, que processava os registos a partir de todos os textos que eu tinha digitado. Destacadas as variantes, submetia-as a um sistema de notação que tinha inventado e que me parecia deixar visíveis as etapas da composição. Tinha feito isso com os poemas que pretendia analisar, que eram poucos. Mas estava tudo a meio caminho com os demais, pois a obra era pequena.

Foi então que o acaso interveio: uma norma implantada de súbito na Unicamp determinou que em 3 anos todos os professores com título de mestre tinham de obter o título de doutor, caso contrário não poderiam manter o regime de tempo integral, nem o salário correspondente.

Em decorrência dessa ameaça, resolvi aceitar a ideia de apresentar o trabalho com os poemas, precedido de um longo debate e análise das edições canónicas, com vista à afirmação da tese de que nenhuma daquelas edições deveria, nem mesmo a primeira, ser considerada edição de autor – apesar da carta em que Pessanha agradecia a Ana de Castro Osório a publicação do livro.

E para poder avançar nesse trabalho, inclusive cotejando as minhas cópias manuscritas com os autógrafos disponíveis, regressei a Portugal, por mais 5 meses, em 1991.

 

 

4. A OUTRA PARTE

 

Quando cheguei a Lisboa, soube que havia uma exposição sobre Camilo Pessanha, em comemoração dos 70 anos de publicação da Clepsydra. A exposição tinha vindo de Macau, e fora organizada por Daniel Pires.

Fui imediatamente, no dia seguinte, à Casa de Macau, para a suprema decepção de saber que a exposição terminara há dois dias. Expus então a quem me atendeu, sem nada tentar ocultar, o desespero que me invadiu. Principalmente depois que vi o catálogo. Expliquei que chegara do Brasil na véspera, disse que já tinha estado em Portugal a estudar o Pessanha, que queria muito conhecer Daniel Pires, perguntei-lhe ainda se sabia se ele estava em Portugal, e talvez tenha dito mais coisas, porque a boa senhora me disse que Daniel Pires não morava em Lisboa, mas ia telefonar-lhe e, se ele permitisse, me deixaria dar uma espiada no material. “Qual é mesmo o seu nome?”, perguntou antes de fechar a porta.

Logo depois foi-me aberta essa mesma porta e a excepção – e eu pude então olhar aquilo tudo. Manusear tudo. Assim como no espólio de Pessanha. Não era ainda o tempo dos microfilmes, nem das cópias digitais. Na Biblioteca, as duas caixas com as coisas do poeta foram-me trazidas certo dia, na sala de leitura da secção. E ali ficaram, dias a fio, enquanto eu as utilizava. Ninguém a vigiar, ninguém a perguntar ou regular coisa alguma. Foi só quando terminei o trabalho que as recolheram e guardaram. Agora aquilo repetia-se, com o que acabava de ser exposto e ia em breve voltar para o lugar de origem.

No material da exposição, interessaram-me especialmente as fotografias. Com elas o curador fez cartões postais, de óptima qualidade. E a bibliografia do catálogo era realmente fantástica. Olhava para aquilo tudo e comovi-me a ponto de chorar, pois as fotos, os documentos, tudo aquilo transpirava um carinho com o poeta e um desejo de verdade que ecoavam fortemente em mim.

Quando percebi uma sombra ao lado, ergui os olhos. Vi um senhor com um ar de interesse misturado com espanto. Perguntou-me algo, com voz tímida. Algo como se estava a achar interessante. E apresentou-se: Daniel Pires. Deve ter sido um momento estranho para ele. Circunspecto e tímido, não deve encontrar todos os dias um brasileiro com os olhos embaçados, muito menos um que corre a abraçá-lo, agradecendo-lhe efusivamente a permissão de ver a exposição e, sobretudo, o trabalho magnífico com a memória do poeta.

 

Quando visitei Daniel em sua casa, em Setúbal, mostrou-me ele o muito que coligira em anos de dedicação. Pastas e mais pastas com fotocópias e anotações manuscritas. Tudo o que encontrara, em Portugal e em Macau e em outras partes, sobre e de Pessanha. Contei-lhe o que estava a fazer, ele disse-me que tinha tido notícias por Pedro, Danilo e Joana. Ofereceu-me o que eu precisasse.

Daniel planejava fazer uma edição crítica da poesia de Camilo Pessanha. Para isso tinha buscado tudo que encontrou. E ainda havia mais, e ainda parece que há mais – até hoje há mais, mas se ele não encontrou, provavelmente é porque alguém não quer que seja por enquanto encontrado.

Naqueles dias, ele aos poucos foi copiando tudo que achava que me podia interessar. E um dia por fim disse-me que eu deveria fazer a edição crítica, que ele pensara nisso, mas estava envolvido em muitos outros projetos, não tinha tido tempo, nem disposição. Achava que eu podia fazer um bom trabalho, então que fizesse. E contasse com ele. Como de facto contei, até o ponto de ter declarado várias vezes, por escrito ou de viva voz, que, não fosse a sua confiança e incrível generosidade, não teria feito o que fiz no prazo de que dispus.

 

O que me faltava naquele momento, dado o tipo de trabalho que fazia (registo verso a verso, palavra a palavra, das intervenções de Pessanha), era então, por conta da generosidade de Danilo e Daniel, pouca coisa: consultar os autógrafos do Caderno, em Macau. E outra vez pude valer-me da amizade de Joana Varela, a quem manifestei o desejo de ir à China. Ali mesmo, com a mesma agilidade e facilidade com que agendara a entrevista com Luís Amaro, marcou-me ela uma reunião com Alçada Baptista, na Fundação Oriente.

A reunião, no dia seguinte ou dois dias depois, foi rápida. Perguntou-me o que eu estava a fazer, o que queria fazer, por que queria. E quando lhe disse, perguntou: quando quer ir? E três dias depois embarcava eu para Macau.

Duas semanas mais tarde, voltei à Fundação Oriente, com um longo relatório dos trabalhos realizados. Alçada Baptista recebeu-me, curioso para saber o que eu tinha conseguido. Contei-lhe tudo, ele perguntou-me disso ou daquilo, falámos um pouco de Pessanha e dos seus leitores. Por fim, disse-lhe que trouxera o relatório. No relatório eu tinha escrito o que lhe tinha contado, não era verdade? Foi o que me perguntou. Eu disse que sim, talvez com mais detalhes. Então já não era preciso relatório algum: ele tinha ouvido o que eu tinha feito, tinha ficado satisfeito com o resultado e só lhe restava desejar que eu fizesse um bom trabalho e que a obra do Pessanha tivesse finalmente o cuidado que merecia. E não nos tornámos a ver.

 

 

5. O TRABALHO

 

A tese que resultou não era uma edição crítica. Era um arrazoado sobre a história editorial, que trazia em apêndice os poemas conhecidos, com todas as suas variantes, tendo por texto-base a última versão autoral conhecida. Intitulou-se justamente “Clepsidra de Camilo Pessanha - uma proposta de edição”. E foi isso que apresentei, algum tempo depois, à Editora da Unicamp: um livro com esse exacto título.

Na verdade, o título não era muito correcto, porque a proposta de edição consistia, naquele momento, em recusar as edições correntes. O que quer dizer que consistia em recusar uma edição definitiva de minha parte, bastando-me a satisfação de oferecer a futuros editores um grande e organizado banco de dados, do qual cada um poderia extrair o que melhor lhe parecesse, tendo sempre à mão a informação do que era autoral e do que não era, em cada poema, bem como as várias versões que cada um teve ao longo do tempo. Ou seja, a minha tese não trazia, no final das contas, uma proposta de edição. Só um desmonte das que havia.

A edição campineira foi um desastre. Gralhas, interferências absurdas do revisor, ausência de revisão de provas pelo autor. E foi também um erro no que diz respeito ao título. Ainda tentei uma solução intermediária, “Poemas de Camilo Pessanha - uma proposta de edição” – que tampouco era um bom título, pelo motivo acima. Acabei por aceitar o argumento editorial – do qual depois já não me livraria – de que deveria intitular o conjunto com o nome tradicional do livro de 1920 e seguintes.

A edição portuguesa foi a brasileira totalmente expurgada dos erros grosseiros devidos à composição e revisão selvagem, e acrescida de alguns poucos dados novos, recentemente revelados. E manteve o título.

Dezasseis anos depois, quando penso no livro publicado não tenho a certeza se fiz bem em publicá-lo. Quanto ao trabalho que ele traz com os poemas, não conseguiria fazê-lo melhor hoje, porque os dados continuam os mesmos e estão ali anotados com clareza e com tanta correcção quanto me permitiram as minhas capacidades. Nem creio que, com o mesmo objectivo, alguém poderia fazer melhor essa tarefa, afinal de contas simples, a que me dediquei: registar todas as variantes autorais, em sequência temporal. 

No que toca ao debate sobre a pertinência das edições dos Osórios, continuo disposto a defender os argumentos ali apresentados, pois até hoje não vi refutação racional e convincente de nenhum deles. Mas a junção do banco de dados com a apresentação, e a necessidade de dar a versão autoral mais recente como texto de leitura, para sobre ela marcar em apêndice as variantes, talvez tenha produzido alguma confusão. O ponto era que eu precisava de dar uma disposição sequencial dos poemas, já que seriam apresentados em folhas encadernadas. Fosse um livro em folhas soltas, esse problema poderia ser amenizado, pois eu poderia simplesmente dispor um poema no anverso e a anotação das variantes no verso. Mas mesmo assim um problema persistiria: em folha solta ou não, a última versão autoral é a que se apresenta à leitura – e desse critério, não abri mão, pelos motivos que expus no arrazoado crítico. Ora, o problema é que, se essa era uma opção de apresentação do trabalho editorial, nem por isso era uma escolha de versão preferencial a oferecer ou impor ao leitor. 

Por exemplo, vejamos o caso de “Violoncelo”. Li, ouvi e decorei o poema na versão em que se mantém invariável a estrutura estrófica, o esquema de rimas. A versão mais nova – que é a que Carlos Amaro declamava – além de trazer variantes de pontuação e troca de uma palavra no verso 16, subverte o esquema das rimas na última estrofe. É possível atribuir sentido a isso: o despedaçamento dá-se inclusive na forma. Provavelmente por efeito do costume, talvez eu prefira a versão anterior. E certamente, a julgar pelas reacções de um amplo espectro de leitores, é a preferida da maioria. Mas independentemente do que fosse o meu gosto ou do que é o gosto geral, essa versão mais antiga e publicada na Clepsydra, é aquela que, por conta do princípio norteador do trabalho, não é a que eu me poderia permitir apresentar como texto de base – e, portanto, como texto oferecido à leitura imediata.

Quanto à apresentação dos poemas no livro físico, a minha opção foi eliminar radicalmente qualquer princípio interpretativo na disposição sequencial. Isso está explícito no texto de apresentação, mas nem sempre parece ter sido compreendido. Porque um leitor distraído – e são muitos – pode acreditar que eu propus uma ordenação cronológica dos poemas de Camilo Pessanha. E nada mais longe do meu propósito. O que de facto fiz foi organizar os poemas pela data do seu primeiro conhecimento. Da sua primeira datação possível. Assim, se de um poema como “Ó Magdalena, ó cabellos de rastos…” só nos chegou a notícia e o texto da sua publicação em jornal, é na data correspondente a essa publicação (13/12/1890) que ele vai comparecer no livro. Já um poema como “Violoncelo”, cuja primeira versão vem datada de 1900, fica, no livro, junto com outros dessa data, mesmo que entre a primeira versão e a última, posterior a 1916, haja diferenças enormes.           

A conjugação desses dois critérios (forma de anotação de variantes e apresentação dos poemas por data de conhecimento) entende-se e justifica-se quando se considera que a publicação não visava estabelecer um texto definitivo, muito menos um desenho de livro significativo. Pelo contrário, como lá explicitava, “a partir deste trabalho poder-se-á proceder, na leitura ou em publicações de diferente natureza, a novas ordenações e seleções, temática ou formalmente mais significativas, que pessoalmente não me julgo capaz de fazer, nem me sinto tentado a experimentar”.

Essa observação só não era por inteiro verdadeira porque houve um momento em que me senti tentado a experimentar uma nova ordenação.

É que descobri, no verso de um recorte colado à contracapa da primeira edição da Clepsydra, a lista dos poemas a recolher. Uma lista numerada, que em nada batia com a ordem da primeira edição, a começar pelo facto de que não dividia os poemas em sonetos e não-sonetos. Mas havia dois problemas com a lista: o primeiro é que ela era muito breve, dava conta de poucos poemas. É certo que esse problema eu poderia tentar resolver, adivinhando ou propondo, a partir do desenho da parte, o desenho do todo. Mas o segundo problema eu não consegui imaginar como resolver na época: os autógrafos traziam dípticos de sonetos. Alguns dos mais belos sonetos de Pessanha formavam dípticos, claramente indicados nos autógrafos e em outras publicações. Mas, na lista dos poemas a incluir, sonetos que formavam dípticos apareciam isolados! Isso pareceu-me um obstáculo intransponível, e desisti de sequer tentar uma reconstrução arqueológica do livro perdido!

E foi bom talvez que eu assim pensasse na época e não soubesse mais. Porque, caso contrário, eu poderia nunca ter terminado o trabalho de doutoramento a tempo, envolvido com a tarefa (impossível de justificar, num trabalho destinado à arguição) de imaginar o desenho do livro perdido.

Hoje talvez fosse diferente. É que, como disse, na época em que o descobri, o papel estava colado na contracapa do livro. E eu limitei-me a ler contra a luz o que pude, sem violentar o documento. Com o tempo e o manuseio do livro, porém, pessoas menos cuidadosas podem ter propiciado a revelação: na frente de cada um dos sonetos que deviam formar dípticos havia um sinal de +. Sinal que eu não pude ver, quando adivinhava as letras pelo reverso do papel. De modo que a lista passou a fazer mais sentido, e eu talvez não pudesse – se a tivesse descolado e lido – fugir à tentação que tive, mas disse que não tive, por ela ser fraca e desprovida de esperança, no momento.

 

 

6. O DEPOIS

 

Tendo feito o trabalho preliminar, passado algum tempo comecei a redigir, sobre os escombros da Clepsydradesmontada, uma leitura de alguns poemas. Num primeiro momento, fiz o que me parecia o mais lógico: ler um mesmo poema ao longo do tempo, observar as suas transformações, tentar discernir a poética implícita nas sucessivas alterações.

Desse trabalho nasceu o livro intitulado Nostalgia, exílio e melancolia - leituras de Camilo Pessanha. Tentando ver na melancolia e na nostalgia duas atitudes líricas, dois modos, percorro alguns poemas, alinhavando-os com o tema do exílio, recorrente na poesia e na prosa de Pessanha. O texto original era digressivo, um tanto parafrásico, talvez por conta ainda das leituras de juventude, no seu maravilhamento. Para apresentação em tese de agregação (livre-docência) e em livro, fui enxugando-o de tal modo, eliminando as conexões dispensáveis e tudo o mais que que me pareceu supérfluo, que resultou num conjunto de capítulos duramente elípticos, argumentativamente cerrados, pesadamente descritivos. Mas para o fim a que se destinavam, que era tentar verrumar aqueles textos que há tantos anos me obsidiavam, teve em mim um efeito terapêutico. Não imagino se o ensaio traz algo novo e proveitoso ao leitor que por acaso dele se aproxime, disposto a enfrentar a pedreira que ele acabou por ser. Mas sei o que ele representa, ao menos para mim: uma tentativa de leitura sem as muletas habituais, seja dos contextos sociais, seja dos famigerados estilos de época, seja – por fim – dos últimos gritos sempre efémeros da Teoria.

Na sequência, pouco fiz sobre o poeta a quem terminei por dedicar tantos anos. Algumas tentativas de explicar o sentido do trabalho de busca e consideração de variantes, algumas defesas a ataques tão mais virulentos quanto menos qualificados, algumas leituras isoladas de poemas e um estudo um pouco mais demorado da vida de Pessanha, destinado a desmontar as absurdas ficções biográficas que parecem tão resistentes quanto o mito do poeta sem escrita.

Ou seja, olhando desde este ponto de vista, o meu trabalho foi essencialmente um trabalho de desmontagem, de desbaste. Gostaria de poder estar convicto de que foi um trabalho de utilidade geral. Mas nesta altura da vida contento-me em pensar que foi um trabalho sério, sem outro objectivo que não fosse a fidelidade ao que se me apresentava como razoável ou como verdadeiro.

 

 

7. O AGORA

 

Mas a história da Clepsydra como desafio ainda não estava terminada. Como disse acima, só depois de findo o trabalho, alguém – no caso, Ilídio Vasco – me enviou a informação de que a lista dos poemas estava descolada do livro, e que agora se via um sinal + após os seguintes versos, que indicavam poemas: “Se andava no jardim”, “Passou o outono já, já torna o frio”, “Desce em folhedos tenros a colina”, “Singra o navio. Sob a água clara”, “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho”, “Imagens que passais pela retina”. 

Essa revelação foi importante, por dois motivos: primeiro, porque resolvia a conflito entre a listagem e os autógrafos, já que nos autógrafos havia claras indicações de sequência, indicações de que vários sonetos deviam vir agrupados dois a dois. Agora, com o sinal de +, era possível saber onde se inseriria, na distribuição ideal do livro, cada conjunto; segundo, porque confirmava a suspeita de que se perdera um soneto, que fazia par com “Quem poluiu”, e um poema, que fazia par com “Se andava no jardim”.

Quando organizei a edição da poesia de Pessanha para a Ateliê editorial, no Brasil, não ousei propor nada diferente do que fizera na edição que saiu pela Relógio d’Água. Apenas anotei a novidade do que havia no verso da folhinha colada no livro de 1920. Entretanto, alguns anos depois, mais exactamente em 2018, quando aceitei organizar o texto dos poemas para a editora Lisbon Poets, resolvi propor um novo arranjo. É que as edições anteriores, que sempre considerei edições de trabalho, repositórios de informações, começavam e terminavam a apresentação dos poemas, como dito acima, pela ordem do seu conhecimento. Ora, o objectivo da Lisbon Poets era apresentar o poeta ao público internacional. O texto que eu proporia, na ordem em que o propusesse, serviria de base para as edições bilíngues em inglês, espanhol, francês, chinês, italiano, etc. Considerando que não valia a pena começar pelos poemas mais juvenis, e sem aceitar a ideia de que poderia propor uma sequência estribada apenas no meu gosto pessoal, lembrei-me do desafio da lista fragmentária. E assim fiz: o livro resultante tem duas partes bem marcadas. Na primeira, recompõe-se (embora com as lacunas dos dois textos perdidos que fariam díptico com os que estão listados) aquela parte do livro que Pessanha indicou aos editores. Na segunda, vêm os demais poemas, na ordem do seu conhecimento, como nas edições anteriores.

Sei que qualquer proposta de ordenação dos poemas que não se escore na primeira edição de 1920 causa estranheza. Porque é do hábito. Mas não só a divisão do livro em “sonetos” e “poesias” parece absurda, tendo em vista a crítica que Pessanha fez a igual solução em livro de um contemporâneo, mas também fica claro, nos comentários de João de Castro Osório, que a publicação de 1920 fora feita com o que havia à mão. Tanto que ele não só alterou a ordem das peças, como ainda foi acrescentando ao núcleo original tudo o que encontrou posteriormente.

Ainda a respeito dessa questão, gostaria de apresentar um último argumento. Que é bem racional, embora tenha ocorrido num sonho, cuja narrativa não deve causar espanto neste texto de carácter tão pessoal... Um sonho que me ocorreu na véspera de uma conferência realizada na Sociedade de Geografia de Lisboa. Eu falaria, mais uma vez, sobre a edição dos poemas. E já previa a contestação em duas frentes: a dos tradicionalistas, que se aferram à edição de 1920, e a de quem pudesse acusar-me de não ter proposto uma ordenação ideal, não ter reconstruído de alguma forma o “livro”, excluindo as partes mais fracas da produção do poeta e destacando as mais fortes.

Talvez porque me visse obrigado a repetir os argumentos, sonhei que se me apresentavam, em desfile perante os olhos, capas de vários livros de poemas. Antero de Quental, Sonetos; Eugénio de Castro, Oaristos; Alberto Osório de Castro, Flores de coral; António Nobre, Só; Guerra Junqueiro, Os simples. E depois, só duas: O livro de Cesário Verde, e Clepsydra – poêmas de Camillo Pessanha. Depois de acordado, ainda me ocorreu, quando percebi o que eu tinha mostrado a mim mesmo no sonho, um outro exemplo: Os sonetos de Anthero de Quental publicados por J. P. Oliveira Martins. É que este último exemplo completa os anteriores e é explicativo do sonho inteiro: quando Antero publica seus sonetos ele mesmo, a assinatura vem no alto da capa; quando Oliveira Martins organiza a obra do amigo, o lugar da assinatura – o alto da capa – fica vazio. Assim também se dá com Cesário: o seu nome não ocupa a posição que responde pela autoria do livro. E com Camilo Pessanha. Ana de Castro Osório poderia ter inscrito o seu: Clepsydra – poêmas de Camillo Pessanha publicados por... Não o fez, certamente por modéstia. Mas indicou claramente o que o livro era: uma colecção de poemas que ela organizara – e organizara, como disse tantas vezes o seu filho, com o que tinha, uma vez que Pessanha nunca enviara de Macau os demais poemas que a ela prometera.

Hoje celebramos os 100 anos desse gesto amoroso, que foi a recolha e publicação em volume, por Ana de Castro Osório, dos versos de Camilo Pessanha. Sem ela, não sabemos o que hoje seria a memória do poeta. Devemos-lhe todos muito. Mas que esta homenagem não seja motivo, nesta data comemorativa, para atribuir à edição de 1920 outro estatuto além do que lhe cabe: recolha, ajuntamento, salvamento da memória. Já é suficiente glória. E merecida. Não precisamos de ir além.

 

 

*


 

 



* In: Catarina Nunes de Almeida (org.) Clepsydra 1920-2020 - estudos e revisões. Lisboa: Documenta, 2020.