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domingo, 24 de junho de 2012

Carta a Ricardo Lima




[O texto desta carta foi publicado no site Germina, em 2007.
Refere-se ao quinto livro de poemas de Ricardo Lima, Pétala de lamparina
que foi publicado pela Ateliê Editorial em 2010.]



Campinas, 26 de dezembro de 2006

Ricardo, caro,

Li e reli o Pétala de lamparina. Creio que é um belo livro, que faz uma espécie de balanço da obra anterior e anuncia o que talvez seja uma maneira ou caminho novo. Na primeira parte, deparei com o título do seu último livro, inserido no poema VII. Na página final, deparo com o título dos dois outros. Não encontrei o do primeiro. Se estiver em algum lugar, perdi-o.
Mas não é só isso que me dá idéia de balanço, ponto de mutação. Alguma coisa se move aqui que não me parecia mover-se nos livros anteriores. Ou melhor, não parecia ao menos mover-se com essa pressão que localizo agora sob as palavras, entre uma e outra, ao longo da sucessão dos poemas. Não sei bem o que é. Talvez seja um ultrapassar do laconismo dos livros anteriores que, mesmo sendo inerente ao projeto, acabava por ser muito de época, por solidarizar-se ostensivamente com a poética contemporânea brasileira dos círculos que buscam no Cabral lido pelos concretos o marco zero da poesia moderna.
Temos problemas, no Brasil, com o discursivo. E uma legião de poetas se formou e vicejou apenas por conta dessa recusa do discursivo, eu creio. Ficou fácil, em certo sentido, fazer poesia: dizer nada ou quase nada numa sintaxe indecisa, valorizando a paranomásia e alguma referência erudita ou meramente culta. Um oráculo de coisa alguma. Normalmente, um oráculo meio gago.
Nos seus livros anteriores, eu creio que é clara a força construtiva de um discurso próprio. Ao mesmo tempo, o resultado final precisava do livro – da ordenação do conjunto e da leitura conjunta dos poemas – para ser apreensível como projeto. Quero dizer, isolado, cada poema sofria mais com o peso da linguagem comum do tempo. Juntos, os poemas mostravam o projeto, que redimensionava os traços comuns, dando-lhes uma justificativa e um peso novo (de autenticidade, se a palavra ainda puder ser usada hoje em dia), por conta do desenho geral.
Neste livro, o que mais me chamou a atenção é que o discurso se individualiza. Muitos dos poemas podem ser lidos isolados, sem perder a marca que, nos anteriores, só advinha do conjunto. Foi o que tentei descrever com a imagem de uma pressão constante sob a superfície conhecida.
Quanto ao livro em si, tenho poucos comentários, neste momento. Li-o duas vezes de uma ponta a outra e reli trechos várias vezes. Ainda não tenho uma visão muito articulada, porém.
O que pensei foi que a estrutura do livro parece materialização de um desejo de ordem. Vinte poemas seguidos de outros vinte. O acordar e o final do dia. O preparar-se e o recolher-se.[1] O que ocorre entre um e outro momento apenas comparece como possibilidade, recolha ou sinal indecifrado.
A voz lírica apresenta momentos de preparação, alude a memórias que surgem tão fragmentárias que não se tornam presentes, celebra às vezes algum momento breve de epifania ameaçada, contempla os restos da luta quotidiana pela ordem.
É uma voz crepuscular a que me surgiu na leitura do livro. Uma voz que fala nos crepúsculos, nos intervalos entre o dia pleno e o sono, com um olhar atento às ameaças que não aparecem senão por meio da metonímia da roupa, do escritório, das cartas do banco, da rua que é espaço de crime. Índices da cidade que aparece pouco e quase sempre como lugar hostil, de lixo, perigo e compromissos. Mas não há espaço para o sono ou o sonho. Esse me parece um ponto alto. Não há anseio escapista. Somente uma espécie de prolongamento da vigília, mais ou menos inútil, com o perpetuar das ameaças lembradas ou pressentidas, no correr da noite.
Há algo de defensivo nessa estrutura e nessa voz. Mas da mesma forma que as ameaças são reduzidas a índices comuns, muitos deles até banais, do ponto de vista imagético (o que não quer dizer que não sejam próprios e funcionem), o espaço a preservar também o é. Daí que também não fique claro o que há para preservar, o que seria a epifania rala das manhãs e noites e do intervalo entre umas e outras.
O livro assim caminha na corda-bamba. Navega entre Cila-lugar-comum-da-felicidade da reclusão doméstica e Caribdes-lugar-comum-da-inabitabilidade do universo público. Ao mesmo tempo, a natureza não é idílica no livro. E a cidade não é totalmente demonizada.
O recolhimento possível é um lugar de vigília e as duas sombras que o perpassam são uma louca e uma suicida, duas mulheres, uma delas aludida apenas por meio da casa e dos afetos deixados para trás. A tarefa da observação e da escrita não tem atalho, nem simpatia, como se lê logo depois de uma dessas alusões. E o desamparo físico não é redimido pela sobrevivência do escrito ao escritor, como sugere a outra.
O título do livro, nesse quadro, é uma nota estranha e nostálgica. Talvez a única nesse conjunto ordenado de poemas meio descarnados, que flertam com a desordem, mas se contêm todos a tempo.
Pensando bem, há talvez uma vítima explícita no livro. Preciso refletir mais um pouco sobre isso, mas agora penso que talvez o tom de réquiem se deva à morte da nostalgia. Isso poderia explicar um pouco o que me pareceu o toque novo do livro. Mas não estou seguro.
Na nota final, de apresentação, o poeta não repetiu que vive em um lugar e sobrevive em outro. Talvez não tenha dito assim para não repetir o achado. Ou talvez por outra razão. Vive entre um lugar e outro. Mesmo para quem não conhece nem um nem outro, a afirmação é curiosa. Ainda mais num livro que se estrutura para apresentar uma voz intervalar e com a estrutura e os temas que este tem. Vive entre, vive em ambos, ou de um para outro.
É uma observação banal, mas pode fazer pender a interpretação para o lado da perda da ilusão da vida plena, da idealização de um espaço de vida verdadeira, contra um fundo de degradação. Seria talvez esse o sentido do balanço da obra pregressa.
A lamparina continua a brilhar, solitária, no título. Mas já é uma pista enganosa. O rural e o pré-industrial aparecem aqui corroídos. E de alguma forma desgastados, exauridos no seu potencial imagético ou redentor. E o efeito é interessante, quanto a mim. É novo.
Haveria algumas observações ainda mais miúdas a fazer. Há versos que penso que poderiam ser objeto de alguma intervenção. Há um ou outro poema também.
Mas queria logo lhe mandar estas impressões desordenadas, escritas para começar a conversa.


[1] A primeira parte se chama Caro Acordar; a segunda, Tarde Noite.