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quinta-feira, 5 de julho de 2012

Macau


Macau



[texto publicado no jornal Hoje Macau, Macau, v. 1099, 01 mar. 2006 –
Depoimento sobre os dias em que lá estive em busca de papéis de Camilo Pessanha]




Era uma pequena cidade em algum lugar do mundo imaginado. Não sei de onde ganhou as casas amarelas, mas as telhas brilhantes lhe foram emprestadas por poemas lidos numa tradução francesa. Uma baía saíra de algum mapa apenas entrevisto, para enfiar mais do que era viável pela terra adentro. Esta era, a princípio, a única concreta geografia desse lugar que se localizava (devo confessar) um pouco mais a leste e muito mais ignorantemente ao norte.

Que fan­tasmático recorte de terra e mar tinha eu construído, afinal, para abrigar por momentos o espírito de um andarilho que findou por se internar no Japão e para sempre o de um seu amigo, poeta, dono de um cãozinho malhado e um tanto feiote!

De nada tinham adiantado as fotografias mais recentes. Nada podiam contra a imaginação dos primeiros tempos, disposta a projetar sobre todas as imagens o calor abafado das cartas antigas. Mas eis que numa tarde de dezembro andava eu mesmo por aquelas ruas, ao acaso da desorien­tação e da falta de método turístico. E no ritmo dos tropeços e dos sustos, começou aos poucos a surgir uma cidade ligei­ramente mais real. Eram pedras, pessoas, cheiros — cascatas de chei­ros e de cores e ruídos de uma língua misteriosa. Sob a aluvião do novo, por momentos não houve quase lugar para os dois mor­tos, embora um deles lá estivesse, a dois passos da minha rota quotidiana, quietinho, embaixo da terra recal­cada, sorrindo por não mais lhe doer nada.

A três dias da data da partida, e a outro tanto da chegada, pouco restava de espaço onde pudesse florescer um sonho: ou o antigo, agora incapaz de projetar-se nas faces da ci­dade real  —  ou um outro e novo, embalado no ritmo dos passos que não teria tempo de acumular ao longo dos bazares, do jardim ou da linha convulsa dos cassinos.

Muitos dias depois, já de volta ao meu quarto em Portugal, em meio aos manuscritos e às anotações, como o assunto fosse difícil e o sono fugisse, conheci melhor Macau. Era a sua Revis­ta de Cultura, eram os livros do Boxer, eram as traduções do Pe. Guerra. Tudo eram amigos, ou pelo menos conhecidos de outras viagens notur­nas e insones. E vários novos, trazidos na bagagem, ou extraídos de uma estante de alfarrabista. Um, inclusive, que comecei a ler ainda quando hóspede da casa que tem o nome de jardim, durante as longas noites brancas de jetlag, enquanto esperava os chineses trazerem os pássaros ao Pa Kap Chow, às seis horas da manhã: o livro de crônicas de João Manuel Amorim, O Vento e as Estátuas.

Pude então reviver, em várias épocas e vários planos, a distante e sufocante Macau, já agora filtrada pelas palavras dos que melhor a conheceram e alimentada pela memória, que é sempre generosa e pródiga: uma cidade mais intensa e mais colorida do que a que percorri, me perdendo pelas ruas até deparar, de repente, com uma igreja sem nave, tragicamente erguida no centro de uma praça; ou descobrir, por uma fresta numa janela, um quarto que podia ter sido avistado também por Pessanha, nos bricabraques, em busca de mais uma obra de arte para ficar depois encaixotada no porão de um museu de Coimbra.

Faz agora quinze anos que visitei Macau pela primeira e única vez. Com os papéis que pude ou não pude ler — interrogando contra a luz quantas palavras indecifráveis! —, com o meu próprio desespero da leitura de uns poucos papéis espalhados nas duas pontas do velho mundo, tentei depois reconstruir os gestos todos deixados pela mão do morto; tentei ressuscitar o que fora uma vez escrito e rasurado e depois outra vez anotado, numa seqüência cujo fim não parece possível decidir.

Cumpria, nesse trabalho, um voto obscuro, feito no cemitério de São Miguel, junto com uma oferenda: o ter tentado, com base em testemunhos vários, recompor o que fora aquela vida, os horizontes que mirava e os que lhe fugiam a cada ano de desgosto com a pátria distante, que insistiria sempre no último insulto de não expor nem valorizar o resultado de uma vida de buscas: a coleção chinesa, só com custo aceita pelo Estado português, para dormir sepulta, em Coimbra, como o poeta dormiria, até hoje, em Macau.

Uma dupla oferenda, na verdade, pois era também ao outro, ali enterrado com o pai: o gesto necessário de lhe tirar das costas a acusação infame de ter sido o responsável pela dispersão do que tinha guardado ao longo de anos de pobreza e isolamento. Ainda hoje corre a lenda. Tanto é mais fácil jogar a culpa para os ombros do filho, ainda mais que mestiço e ilegítimo, do que reconhecê-la nos amigos portugueses, executores omissos de um testamento que se conservou, mas não se cumpriu.

Como pude, cumpri o voto, com a edição, em 1995, de todos os versos e versões assinados por Pessanha ou por outros atribuídos a ele.

Muitos anos depois, o único documento que em vão busquei em Macau veio finalmente à luz. E há poucos meses pude ver que a parte do trabalho que eu não pude fazer agora está feita, numa edição de Macau: A poesia de Camilo Pessanha, de Carlos Morais José e Rui Cascais — volume que permite que agora contemplemos os que talvez sejam os últimos gestos textuais de Camilo Pessanha que poderemos recobrar: as correções que ele fez aos seus versos publicados na revista Centauro.

Com base nesse trabalho, o meu próprio terá de ser, com a alegria imaginável de poder levar a cabo uma empreitada de tantos anos, refeito, emendado, acrescido. É a tarefa a que, em breve, me dedicarei.

Quando me debruçar sobre as páginas da Centauro, generosamente reproduzida pelos pesquisadores, por certo visitarei outra vez na memória, agora com a nostalgia que o longo intervalo permite, a sala bem iluminada do Arquivo Histórico; as ruelas do bazar que talvez já não exista na sua confusão de comidas, roupas e bicicletas; a água barrenta do grande rio que contemplei nos longos passeios entre as leituras; a silhueta inesquecível da ponte; o ruído, ao meio-dia, das pedras do mahjong; a balbúrdia dos pássaros e dos cantores, no raiar do dia, junto à gruta de Camões.



março, 2006