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terça-feira, 1 de julho de 2014

Sphera - resenha

Sphera, de Marco Lucchesi

(resenha originalmente publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 2003)



Escrever, para Marco Lucchesi, tem algo de conjura. Num dos poemas de Sphera (Record, 2003), lê-se: “a cada folha / em branco a cada / verso / inexistente / a baba do dragão / e o fero basilisco”. O disforme, o caráter desordenado e monstruoso do mundo sem a escrita é o que primeiro avulta neste pequeno poema em que se resume um dos principais movimentos do livro. O mítico basilisco, que envenena os lugares por onde passa, sendo morte física e emblema do diabo, é também dotado de um poder supremo: o de matar com o olhar. “Fero basilisco”, por isso, é a expressão com que é qualificada, no D. Quixote, uma pastora que, pela beleza, leva à morte um apaixonado não correspondido. O envenenamento pelo disforme e a sedução insuportável do muito belo são, portanto, os riscos, quando a poesia não ordena ao menos a superfície do mundo.
Ao longo do livro, esse é o movimento principal: “invoco / uma palavra / que me salve / dos extremos”. Mas tão eficaz é essa convocação das palavras (não uma palavra especial, um mantra ou fórmula de encantamento, mas a palavra em situação de poesia), que é em vão perguntar em que consistem esses extremos: onde é o céu, onde o inferno desta poesia? Onde o macho e a fêmea, o sol e a lua, a carne e o espírito, a dormência da morte e a vontade de viver? Onde o aqui e o além? Em nenhum momento do livro se apresentam imagens dos pólos em tensão. O transcendente não é um objeto de desejo. É antes um desejo de transcendência sem objeto. A conjura do verso é, por isso, desejo de apagamento e constatação de incomunicabilidade: “escrevo sem / deixar vestígios / enquanto busco teus / sinais / ambíguos”.
Perto do final, retornam o dragão e o basilisco, vestidos de nome moderno. Entre um evento de dimensões cósmicas e um ato quotidiano, a desordem é outra vez conjurada pelo rapto da palavra que os equaciona e, assim, reconhece e ordena por instantes: “a supernova / que brilha pouco acima // do horizonte e o café / que se resfria sobre / a mesa: assim // opera em todos / os quadrantes / a lei terrível da entropia”.
Esse equacionamento, essa reordenação se constata na forma de arranjo das palavras, no corte dos versos e estrofes, nas quais o vocabulário e as imagens equilibram o coloquial de hoje, o verbo imantado pela lírica camoniana e os rastros da simbologia alquímica.
Os poemas breves, de aparente ritmo sincopado, quando lidos em voz alta deixam sentir o alento da versificação tradicional, firmando a cadência antiga que os organiza. Este, por exemplo: “abeira-se / do abismo // com seus olhos / líquidos para saber / onde repousa // o nada // e sempre esse desvão / essa caçada // que o aprisiona em / quedas imortais”. Graficamente entrecortado, resolve-se em um alexandrino seguido de três decassílabos: “abeira-se do abismo com seus olhos líquidos, / para saber onde repousa o nada; / e sempre esse desvão, essa caçada / que o aprisiona em quedas imortais”.
Lucchesi compõe, assim, com fios minimalistas da tradição poética do ocidente, uma rede por onde escoa o fugidio, o inconstante, em busca das constelações possíveis de sentido. Como uma aranha, pronta a recompor a teia esgarçada, o poeta se apresenta como consciência expectante, no centro do livro, medindo e ponderando os abalos repetidos do desenho, enquanto contempla o vazio sobre o qual se sustenta a sua leve geometria.
Da sua maneira, é uma busca pelo Éden. Mas o que resulta é um “gélido jardim”. A fuga do disforme, do olhar paralisante do basilisco, dos pequenos poderes torturantes que habitam o presente, será apenas um entregar-se mais rápido ao deserto iluminado, cheio de olhos e de vozes que apenas assopram, por pouco tempo, a poeira informe.
A impressão final é a de que se trata de um livro no qual a totalidade se exibe aos pedaços. Melhor dizendo, é um livro em que o desejo de totalidade se apresenta como pedaços, como uma série de pequenos triunfos transitórios, cristalizados nos poemas. O voluntário aspecto de fragmento é, assim, antes um efeito, um recuo estratégico da voz que, melancólica, conforma o impossível nos ritmos antigos, do que uma confissão de incapacidade de apreender uma totalidade percebida como inapreensível.
Nesse sentido, a fisionomia resultante é clássica. O tom do livro é um estoicismo mitigado. E a erudição que o anima é o conforto possível: o da conversação inteligente, agradável, à margem do abismo, cuja presença ao mesmo tempo exige e rarefaz as palavras que são ditas.
A ossatura do livro não é dada tanto pelo arranjo dos poemas, quanto pela ocorrência, em intervalos bastante regulares, de cinco sonetos de rigoroso corte clássico que, em média a cada nove poemas, erguem-se, como colunas de apoio ou suma dos momentos que os precedem. Assinalam, em registro alto, a coleta das experiências e descrevem a progressão de uma obra alquímica que, aparentemente, não se realiza. Ou então se cumpre apenas como intenção e falência, pois, como se lê no último soneto do volume, a “palavra despojada e cristalina”, resultado da grande obra, se perde na corrente das águas que se afastam da fonte. Que a sua ausência seja tomada como testemunho da existência de um deus impossível de ser identificado ou compreendido diz muito sobre a teologia, ou sobre o anseio por sentido teológico, que anima este volume.
Lidos isoladamente, os sonetos não responderão talvez pelo há de melhor no livro. Marcando o ritmo das páginas, rodeados pelos textos breves, que fluem de uma página para a outra, eles funcionam como lugares de chegada. E, como pontos de chegada, são mais temáticos do que formais, menos simbólicos do que rítmicos. Mas com o seu ostensivo andamento tradicional e com o seu vocabulário em que há algo de cediço, retirando dos demais poemas a sua própria força, são eles, no final das contas, os pontos luminosos que definem o contorno possível dessa Sphera. Vista de fora, ela não espelha a vertigem frente à máquina do mundo, nem o pavor face ao desmedido das vastas esferas estreladas. Apenas revolve, sem muito alarde, fugazes constelações, nas quais operam e se refletem o acaso e a nostalgia da totalidade num mundo desabitado pelos deuses.