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terça-feira, 16 de abril de 2013

Flaubert: Novembro - resenha



Flaubert - Devaneio e turismo sexual



[Jornal 14]


Novembro (Ed. Iluminuras, R$ 28) acaba de chegar às livrarias. São dois textos de Gustave Flaubert pouco conhecidos no Brasil: a novela que dá nome ao volume (Novembro -- fragmentos num estilo qualquer) e treze cartas, em que o romancista francês escreve a um amigo sobre as paisagens, os costumes e as aventuras eróticas experimentadas numa longa viagem que fez ao Oriente próximo e à Itália.
A novela, que foi escrita em 1842, quando Flaubert tinha 21 anos,  ocupa um total de 73 páginas do volume. As cartas, datadas de fins de 1849 a meados de 51, somam 93 páginas. A novela é interessante. As cartas são deliciosas.
O melhor das cartas não é o que elas possam conter de confissão ou dados documentais sobre o autor e os lugares visitados por ele, ou ainda sobre o turismo sexual europeu há 150 anos. Tudo isso vem junto. Mas o que as torna excepcionais é serem um excelente texto, um brilhante exercício de estilo contra o estilo. O assunto e a linguagem oscilam rápida e brutalmente. Passa-se diretamente da apreciação literária e da reflexão histórica ou estética à celebração de um priapismo orgulhoso, voraz e desprovido de culpa; da análise de cambiantes sentimentais ao registro mais cru das sensações eróticas; do desenho de um estado complexo de espírito ao puro gosto do palavrão ou à recolha de histórias e cenas exóticas que são bizarras, repulsivas ou simplesmente miseráveis.
O resultado da leitura é uma imagem convincente do artista enquanto jovem explorador, em busca de assuntos, formas e experiências.
A novela é também um exercício de estilo. Melhor: de estilos, pois se trata de um texto bipartido. Na primeira parte, tem-se uma autobiografia sentimental, cujo tom está dado logo na frase inicial: "Amo o outono, essa triste estação combina com as recordações". Segue-se uma série meditações, confissões, estremecimentos de espírito, vazadas numa linguagem romântica que lembra Chateaubriand. Tudo tão anacrônico que o leitor não poderá deixar de se perguntar, junto com o narrador: "por que escrever isso? Por que continuar, com a mesma voz lastimosa, o mesmo relato fúnebre? Quando o iniciei, eu o considerava belo, mas à medida que prossigo, minhas lágrimas caem sobre o coração e me extinguem a voz".
Não é verdade, porém. Essa voz não se extingue em lágrimas. Pelo contrário, prosseguem ambas, voz e lágrimas, por mais 50 páginas. Quando cessa, assume a narração um narrador em terceira pessoa. A primeira parte se revela, então, uma transcrição de manuscrito, e as dez páginas em terceira pessoa respondem pelo interesse maior do texto, pois esse narrador segundo funciona como um crítico do primeiro: "Era um homem que se comprazia no quimérico, no incompreensível, e fazia grande abuso dos epítetos". É esse registro metalingüístico e irônico que torna o texto legível, porque de resto, tudo é já sentido como falso. Inclusive a própria morte do herói/narrador, desencadeada apenas pelo seu pensamento, e que o segundo comenta assim: "o que parecerá incrível às pessoas que sofreram muito, mas que convém tolerar num romance, pelo amor ao maravilhoso".

Sendo os textos do volume tão diferentes em gênero, a questão é: por que nesta edição eles vêm publicados conjuntamente e sob o mesmo título? O organizador do volume e tradutor dos textos, Sérgio Medeiros, afirma que os dispôs assim porque "se completam um ao outro". Ambos seriam autobiográficos e o nexo principal seria, além da temática amorosa e erótica comum, o fato de o defunto narrador de Novembro imaginar uma viagem ao Oriente, que o autor Flaubert realiza alguns anos depois. Essa é a sua tese. O livro é, como diz, "uma espécie de ensaio crítico que usa a tradução e o rearranjo como meios e não a argumentação acadêmica".
Essa questão esgota o texto introdutório. Do meu ponto de vista, a montagem crítica de Medeiros padece de uma crença pouco razoável na substancialidade da sua construção. Em última análise, parece que ele acredita que todos (Maxime du Camp, o narrador de Novembro, o remetente das cartas da viagem, os autores citados na bibliografia e ele mesmo, Medeiros) -- todos estão falando e querendo descrever a mesma e unívoca "pessoa". Seu objetivo, com a montagem, parece ser propiciar um retrato fiel do jovem Flaubert e das contradições que caracterizariam a sua personalidade.
Aceita a clave, é até possível ler os textos como um conjunto de testemunhos. Mas é pouco interessante e pouco produtiva a perspectiva estritamente biográfica. Ela só se torna eficaz quando dá origem a um texto de natureza ficcional. Sartre, por exemplo, que era um bom romancista, biografou Flaubert e Baudelaire. Mais modernamente, Marguerite Youcenar fez sucesso com as Memórias de Adriano. Mas quem, hoje, leria qualquer desses livros em busca da personalidade, das motivações e da "verdade" do seu assunto e não do seu autor?
Novembro, reunindo dois conjuntos textuais muito diversos em gênero, vigor e interesse, propõe uma leitura seqüencial que os prejudica. Faz deles um conjunto inverossímil, sem unidade ou graça, senão para os amantes convictos de especulações biografizantes.
Como conjunto, o volume não se sustenta. Mas pelas suas partes, vale muito a pena. O leitor que quiser duas horas de leitura animada pode comprá-lo. Para garantir-se de não perder tempo, deve tratar de ler logo os textos de Flaubert, na ordem que melhor couber ao momento ou à disposição do seu espírito.



·         Publicado no jornal Correio Popular, em 02 de dezembro de 2000.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Errâncias de Décio Pignatari



ERRÂNCIAS de Décio Pignatari

 [Jornal 11]

              
             Décio Pignatari publicou há pouco tempo um livro chamado Errâncias (Editora Senac, R$ 32). Como todos os títulos do autor, este também não admite a indiferença como resposta. Composto com um senso agudo de provocação, visa a polêmica. Não é exatamente um livro de memórias, nem de ensaios filosóficos, semióticos ou políticos, nem de narrativas de viagem; tampouco é um conjunto de crônicas de celebração dos totens concretistas, ou uma série de estudos sobre eles. É tudo isso alternada ou misturadamente.
                Errâncias se inscreve preferencialmente, entretanto, no gênero memorialístico, já que se assume como "biobalanço" e em várias partes é francamente evocativo de eventos biográficos de alcance estritamente pessoal. Mas esse lugar genérico não é imune à corrosão, pois o livro tem, como objetivo confesso, montar-se como uma "colagem autobiográfica de pedaços de biografias alheias". A descrição parece muito adequada para descrever o que aqui se encontra. Quando todos os fatos, pessoas, registros fotográficos e ainda a história da semiótica, da poesia, da cultura e da política brasileira são assimilados ao registro autobiográfico e apenas em função dele valorados e interpretados, obtém-se um gênero novo. É essa a novidade do livro, e dela procedem simultaneamente a força provocativa e o estranho encantamento que o livro adquire, tão logo se vença a resistência originada pela egolatria que o percorre como um baixo-contínuo. Isto é, tão logo a perspectiva egocêntrica, autocelebratória, seja assimilada como recurso genérico, entendida como estratégia textual. Se não for assim, aliás, não há como prosseguir de boa vontade na leitura de um texto cujo autor pretende falar de um lugar inaugural, do pórtico de uma nova atualização do "pensamento experimental", que o seu senso de medida aproxima e compara, de alguma forma, ao que representou a adoção do alfabeto na história da humanidade.
                Bem desenhado, o volume é um belo objeto. Alternam-se as páginas brancas, de letras negras, com as páginas negras, com letras em azul claro, que delimitam os 'capítulos' ou 'seções'. Em todos, com exceção do último, o texto é um diálogo intenso com as imagens fotográficas que os abrem e fecham. Essas imagens -- muitas das quais têm interesse em si mesmas -- são de vária ordem. Há desde fotografias anódinas de paisagens agrestes ou urbanas, como as feitas por qualquer turista, até retratos posados, passando por instantâneos de figuras como Borges, João Cabral, Tarsila e Jakobson.
                A linguagem também oscila, variando o registro conforme a natureza da seção, da relação com o objeto visual, ou sem razão evidente. O que se mantém inalterado é o impulso reflexivo e de combate cultural, que mesmo na história infeliz do pugilista Paulo de Jesus descobre matéria não só para evocar e descrever em termos poéticos a "escritura do seu boxe", mas ainda para verberar "os fáceis clamores de louvor e entusiasmo por feitos e obras lambuzadas de ungüentos nacionalistas auto-satisfacientes" que se evolavam da "rota tenda-circo cultural do Brasilumpem" da década de 50, em que não havia lugar para o "rigor elegante de uma arte que não encontrava aplauso".
Na maior parte do tempo o texto corre solto, "a ponto de não se perceber estilo nenhum, o que inclui a busca ou a pretensão de um não estilo", como o autor mesmo se incumbe de avisar na "Apresentação". Em alguns momentos, vale-se do pastiche, da paródia ostensiva, como nesta abertura do texto "Levallois": "O tempo do olhar não é o tempo do ler, ouvir, cheirar, apalpar. É um tempo do passar e do ficar, nem sempre o do projetar, que é o tempo de pensar." Mas quase a cada momento, com maior ou menor extensão, encontram-se passagens como esta, em que rebrilham ligeiramente nomes e conceitos: "Traduzida para a superestrutura semiótica, o conflito apresenta fascinantes e intrigantes aspectos nas áreas-limite do verbal (simbólico) e do não verbal (icônico), aquele tentando monitorar, quando não subjugar este, pois o vértice do conceito hegeliano é a lei ('argumento' peirciano), que se esparrama para as bases sob a forma verbal" (p. 136).
                Multifacetado, o volume traz algumas seções belas (e, mesmo, comoventes), como o texto intitulado "Delfos", em que o relato autobiográfico domina, praticamente absoluto.  Seja por isso mesmo, seja pela posição que ocupa na seqüência, "Delfos" tem uma força de evocação, de presentificação, que o torna muito destacado dos demais. Também ficaram mais intensamente na minha memória de leitura, mas em segundo plano, os seguintes: "Jakobson", "Vidraria" e "Franklin Horylka". Não é muito, para um livro tão cuidado do ponto de vista gráfico e tão pleno de investidura intelectual, mas é suficiente para, junto com passagens isoladas de cada um dos outros textos, garantir o interesse da obra, que é composta com inteligência.
                Pignatari, falando de Jorge Luis Borges, escreve que este "passa a ser um contador de histórias das histórias, metalinguagem da ficção narrativa, despeitada, com alguma graça ou humor, para assegurar-se distância e superioridade". Parodiando a formulação, poderia dizer que Pignatari faz aqui uma espécie de metalinguagem da narrativa memorialista, com muita digressão reflexiva em que se mobilizam importantes referências culturais. E o faz para assegurar-se a mesma superioridade. No seu caso, porém, é quando a distância e o despeito diminuem que surge o melhor do livro: o discurso evocativo, que é de boa têmpera. Nesses momentos, tudo – evocação, reflexão e exposição de conceitos – se amalgama. Nos demais, em que o discurso evocativo tem menos peso, tudo parece reduzir-se a índices, emanações, produtos imediatos de uma personalidade que se proclama digna, por si mesma, de atenção e homenagem. Ou seja, a exposição egocêntrica cessa de ser artifício provocativo que se conhece, se apresenta e funciona como tal, e se deixa ler apenas como impostação.


Texto publicado no jornal Correio Popular, de Campinas, em  21 de outubro de 2000