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quinta-feira, 25 de maio de 2023

Sobre ensino - maio 2023

 Devendo preparar uma conversa sobre ensino, fiquei refletindo como quem pensa em voz alta, só que por escrito.

 

Notas sobre ensino – 1

 

Numa aula de xadrez, pressupõe-se que o professor tenha grande conhecimento da arte. Numa dada posição, seu olhar pode divisar mais rápida e profundamente os pontos fortes e as fraquezas de cada lado e com base nisso escolher a estratégia ou a tática mais eficaz. Sei bem como é. No meu tempo, em Matão, os dois jogadores mais experientes podiam me demonstrar sua capacidade de jogo facilmente, porque numa configuração qualquer, de algum equilíbrio podiam me vencer assumindo qualquer dos lados do tabuleiro. A mim competia tentar igualá-los. Para isso ia aos livros. Além dos clássicos de abertura, em que disputavam minha atenção os livros do Panov e os do Ludek Pachman, meu preferido era “Estratégia moderna do xadrez”, desse último autor. O teste do rendimento da aprendizagem era invariavelmente o mesmo: comparar a minha capacidade de análise com a dos meus mestres e, quando fosse o caso, enfrentá-los no tabuleiro. Talvez tenha vindo daí a ideia persistente de que a um excelente professor, como eram os dois Biavas, não basta o conhecimento abstrato e a exposição dele. O momento de espanto, que provocava o estudo e estimulava a vontade de aprender, era sempre o da demonstração, em que se materializavam o conhecimento teórico e as lições da experiência. Penso que é assim que sucede nas artes tradicionais japonesas. Um professor tem de saber fazer o que ensina. De seu desempenho provém sua autoridade real. Da sua capacidade de mostrar pelo exemplo o que deve ser feito. Talvez por conta disso eu só tenha ousado conduzir oficinas de haicai quando percebi que meu conhecimento teórico e minha experiência prática permitiam que, na maior parte dos casos, eu pudesse sugerir (ouvindo o relato da pessoa que compôs o haicai apresentado a mim) uma forma mais eficaz ou mais justa de dar conta da intenção. 

 

 

Notas sobre ensino – 2

 

Talvez por conta do que contei no post anterior, sempre me debati (e ainda me debato) com uma questão prévia a toda a reflexão, mas bem difícil: o que ensina quem ensina literatura? E também, como uma derivação desta: como ensina, quem ensina literatura? É talvez mais fácil responder a outra questão, menos frequentemente formulada: o que aprendeu (ou teve de aprender ou deveria ter aprendido) quem ensina literatura? Digo que é talvez mais fácil porque a resposta pode ser mais imediata: quem ensina literatura deve, em primeiro lugar, ter construído um bom repertório de leituras. Mas de que leituras? Do meu ponto de vista, não só de leituras literárias, embora essas sejam o elemento mais importante, os alicerces do edifício. Dependendo do objeto, o repertório precisa ser ampliado. Filosofia, história, antropologia, psicologia, filologia, que mais? Também é preciso um repertório musical, sem dúvida. E por que não de pintura, escultura, arquitetura? E o cinema? E o que mais pudermos incluir no conceito vago de “cultura”. Mas a pergunta incômoda é mesmo a primeira: o que ensina quem ensina literatura. Não é filosofia, por certo; nem sociologia ou antropologia. Nem história, esse guarda-chuva tentador, que tantas vezes oferece abrigo ao se juntar ao restritivo “literária”.  Professores de literatura que se põem a ensinar psicanálise tendem a fazer um mau trabalho, no que diz respeito à psicanálise. Idem os que se metem com a filosofia ou sua história. E assim por diante. Aliás, ouvi já de algum malvado que os departamentos de literatura são lugares a partir dos quais pessoas podem ensinar o que não sabem ou conhecem pela rama, uma área onde alguém pode explicar o que mal conhece pelo que ignora ainda mais. Opinião que não posso dizer que endosse, embora dela não discorde inteiramente.

 

 

 Notas sobre ensino – 3

 

Mas então o que ensina quem se propõe a ensinar literatura? Quando eu mesmo me pergunto isso, a resposta é sempre a mesma: um professor de literatura é sobretudo um professor de leitura. Creio de fato nisto: ensinar literatura é ensinar a ler textos literários; ou, se se preferir, é ensinar a ler literariamente. Nesta última formulação se podem abrigar todos os chamados “dados contextuais”. Porque ler “literariamente” é, em primeiro lugar, do meu ponto de vista, estar atento ao texto, mergulhar nele e na sua rede de sentidos; o que implica, em medida vária, retraçar as referências, as citações, os intertextos, as alusões e aquilo que poderia denominar “biografia pública” do autor. Vê-lo em diálogo com outros tempos do seu texto, para assim aquilatar o que nele há de novo ou de mais bem sistematizado, em relação à média. Ler textos literários é, quanto a mim, uma tarefa que implica uma boa dose de submissão ao objeto, um esforço para fazê-lo falar desde o seu tempo e lugar. Mas fazê-lo falar para nós. É certo que se pode usar os textos literários de outra forma: como exemplos de teoria ou campo de teste de hipóteses metodológicas; ou ainda, normalmente por meio de partes selecionadas, como elementos de prova de teorias ou ideias gerais sobre várias coisas. E também se pode fazer com que falem algo que não falaram ou que falem algo que hoje parece X e no tempo deles parecia Y. Tudo isso, nessa diversidade, faz sentido. E não duvido que em quase todos esses casos a prova da competência possa ser feita. Que um aluno possa trazer um texto ao professor e que este possa fazer como fazia o meu professor de xadrez. Mas também não duvido de que uma aproximação ao texto a partir de um amplo repertório cultural, uma leitura que não violente o texto para fazê-lo dizer apenas uma coisa ou impedi-lo de dizer outras, é capaz de dar conta de um leque muito mais amplo de textos e de gerar respostas mais duradouras nos estudantes, permitindo-lhes mais ampla formação. Quando eu cursava a faculdade de Letras, caiu sobre nós o Estruturalismo. Foi uma febre. Um sarampo, como depois se disse. A Linguística era tida como a chave das ciências humanas. As aproximações linguísticas ao texto literário proliferaram. A vertente mais ativa foi a que teve na palavra “estrutura” o seu esteio. Uma leitura como a que Jakobson fez de um poema de “Mensagem” foi imitada até a exaustão. A competência dos professores que aderiram era inegável: um texto ia para a lousa ou para a transparência e era impiedosamente desmembrado, em busca de todo tipo de estrutura: acoplamentos, paralelismos, quiasmos, classes de palavras, paronomásias, anagramas, oclusivas, dentais, sibilantes etc. Drummond compôs, sobre essa prática de vivissecção, um poema engraçado, “Exorcismo”, com um refrão que pedia a Deus para nos liberar de uma aluvião de termos técnicos – e das formas de leitura que deles se valiam ou neles se escoravam. Passou em certo momento o sarampo, mas deixou cicatrizes. Houve gerações que, no ensino médio ou no superior, foram expostas. Ler literariamente, naquele tempo, para muita gente, era esquartejar um texto e exibir a sua anatomia: os ossos, os músculos, os tendões. Fora disso, era tudo gordura. E melhores eram os textos quanto menos gordura tivessem. Quando a “teoria” saiu de moda e a forma de leitura idem, a competência de leitura específica de professores treinados no modelo, e só nele, se esvaiu. Os que ficaram aferrados àqueles mecanismos interpretativos passaram rapidamente do laboratório de vanguarda ao depósito do museu. 

 

Notas sobre ensino - 4

 

No último post terminei por desviar talvez o assunto e evocar os tempos em que estudar literatura pareceu, no Brasil, tratar de responder, de certo ângulo de visão, à pergunta: como funciona o texto literário? Como funciona a máquina do poema? No caso do romance, a perspectiva teve menos sucesso ou menos aplicação. Talvez porque o método seleciona o objeto? O pressuposto define o lugar do exercício do método? Seja como for, voltando ao ponto: para mim, ensinar literatura é ensinar a ler textos literários. Por isso mesmo, retomando, creio que tanto melhor é o resultado do trabalho da leitura quanto mais se permita que o texto force os limites do método ou dos pressupostos do leitor. Os melhores professores que tive foram os que não obrigavam o texto a dizer isto ou aquilo, nem tratavam de buscar a pedra filosofal da literariedade, muito menos os que moíam e peneiravam um texto em busca dos pedregulhos com que escorar ideias sobre a sociedade. Mas agora, nestas divagações preparatorianas, surgem de novo perguntas incômodas. Por que estudar literatura na escola? Por que estudar só literatura e não as demais artes, isto é: por que parece natural a muita gente que somente a literatura seja a única arte exigida como parte do currículo? Será por inércia curricular que as universidades pedem, no vestibular, apenas o conhecimento da história literária ou de obras literárias, e não de pintura, escultura ou música? Quando a questão da nacionalidade era central, a pergunta de por que estudar literatura, ou por que a literatura tinha proeminência sobre outras artes nem fazia muito sentido. Isso ainda era muito forte nos tempos de Antonio Candido, como se vê pela famosa proposição de que é a nossa pobre e fraca literatura que “nos” exprime. Daí o dever de amor que ele ali preconizava. Mas e hoje? Qual o futuro da literatura como disciplina escolar e como parte essencial da educação dos cidadãos? Por quanto tempo ainda haverá a obrigação de estudar literatura e, portanto, a necessidade de ensiná-la na escola regular? Como estas divagações nasceram de um convite para falar mais uma vez sobre ensino de literatura, creio que é daqui, deste lugar mais incômodo, que deva prosseguir. Mas termino estas anotações por confessar que ainda não sei bem como.