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quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

O Convite à Viagem - Notas sobre o exótico nas Flores do Mal




[Breve especulação sobre a estrutura 
da primeira edição das Flores do Mal
julho de 2012 - publicado na revista Texto Poético, 13]


I

            A primeira edição das Flores do Mal, de Baudelaire, datada de 1857, era composta por 101 poemas. 
            100 deles eram numerados. O primeiro vinha separado do conjunto principal, sem número, e era denominado “Ao leitor”[1]. Já os 100 poemas numerados distribuíam-se por 5 partes. 
            A primeira, denominada “Spleen e ideal”[2] continha 77; a segunda, que levava o mesmo título do livro, 12[3]; a terceira seção, “Revolta”[4], trazia 3 poemas; a quarta, intitulada “O vinho”[5], continha 5; e a última, denominada “A morte”[6], era composta por 3 peças.
            O número redondo dos poemas numerados, a presença de um prólogo em versos, bem como a divisão clara das partes sob nomes fortes, terminando pela morte, demandam um percurso de leitura, estimulam o leitor a perseguir o que, segundo Barbey d’Aurevilly seria a “arquitetura secreta”, o “plano calculado pelo poeta, meditativo e voluntário” de um livro que seria menos uma coletânea de “poesias do que uma obra poética da mais forte unidade”, que demandava leitura na ordem em que os poemas aparecem no seu interior, sem o que muito perderia o livro, inclusive “do ponto de vista do efeito moral”.[7]
            Quando a obra é condenada pela censura, que exige a retirada de 6 poemas, Baudelaire recorre afirmando o “perfeito conjunto”, que desde logo ficaria comprometido pela supressão dos poemas censurados. Assim também na carta à imperatriz, de 6 de novembro de 1857, afirma que tinha sido condenado a “refazer o livro” – ou seja, a retirada dos 6 poemas não lhe parecia possível sem que o desenho todo do volume fosse refeito, alterado.[8]
            E de fato é o que faz, na segunda edição, de 1861: retira os poemas condenados e acrescenta 35 outros. Tal inclusão (o acrescentamento foi da ordem de 1/3 do número anterior) se acompanha não apenas da criação de uma nova seção (“Quadros parisienses”[9]), mas ainda da alteração na ordem das que existiam em 57 – agora, “O vinho” – que antes estava entre “Revolta” e “A morte” – recua para antes de “Flores do Mal”, vindo logo após os “Quadros parisienses”.
            A nova seção – que, a partir de Benjamin, concentraria boa parte da atenção crítica, como se fosse a epítome do livro – se organiza, por sua vez, por meio do remanejamento de 8 poemas anteriormente integrados a “Spleen e ideal” e do acréscimo de 10 outros, que estavam ausentes da edição de 1857.
             Muito haveria que comentar sobre as diferenças entre ambas as edições, se este fosse o objetivo desta comunicação. Não sendo, queria apenas registrar uma das principais intervenções na seção “Spleen e ideal”: a substituição do poema “O sol”[10]  – deslocado para os “Quadros Parisienses”  – pelo soneto “O Albatroz”[11]. Aqui está um dos sentidos da reformulação do livro: após a intervenção da censura, o lugar anunciado para o poeta deixa de ser o do sol, que ilumina igualmente as coisas belas e as imundas, e passa a ser o da ave hostilizada e metida em ridículo, quando em terra. Em ambos, o símile mostra que o lugar do poeta são as alturas. Mas enquanto na primeira edição a ênfase estava no brilho e na altaneria, na segunda o que vem para primeiro plano é a humilhação e a vingança do inferior.
            Por fim, queria observar que, até 1966, todas as edições disponíveis parecem ter se originado da edição de 1861. Algumas tentando reintroduzir nela os seis poemas condenados, outras deixando-os fora do corpo do livro.
            Pessoalmente, prefiro ler as Flores do Mal na ordem da edição – muito criticada, do ponto de vista filológico, mas inovadora – que Yves Florenne publicou em 1966: primeiro As Flores do Mal, tal como publicadas antes da censura; e, em seguida, os conjuntos acrescentados nas edições posteriores.
            Nesta comunicação, por meio da leitura do motivo exótico nas Flores do Mal, o que vou tentar fazer é uma demonstração, no que diz respeito aos poemas em que esse tema tem lugar central, da cerrada estrutura do livro de 1857. 
II


            Do ponto de vista da cronologia, a evolução do tema do lugar exótico se desdobra entre 1841 e 1855: o primeiro momento está representado por “A uma dama creoula”,[12] e o segundo pelo núcleo de poemas compostos em 1855, entre os quais se inclui “Moesta et errabunda” e “O convite à viagem”[13]
            Em ambas as edições de As flores do Mal, “A uma dama creoula” vem imediatamente antes de “Moesta et errabunda”. Mas apenas na de 1857 estão esses dois poemas colocados imediatamente antes de "Os gatos"[14] e "Os mochos”[15], compondo com eles um conjunto que dá conta não apenas da evolução e resolução da temática exotista nas Flores do Mal, mas ainda do fracasso da evasão exótica, com a confissão da impotência do apelo à viagem para combater o spleen vitorioso. 
            De fato, "Os gatos" e "Os mochos" são elogios à vida sedentária, impassível. Este último termina, inclusive, por um terceto irônico: "o homem ... carrega sempre o castigo de ter pretendido mudar de lugar" – no qual ecoam lugubremente os versos de “Moesta et errabunda”.  E, no fecho desse desenvolvimento, a “Os mochos” se segue "O sino rachado"[16], no qual a imobilidade fornece um dos símiles mais fortes da angústia, quando a alma do poeta é comparada a um soldado ferido que agoniza, sem poder fazer qualquer movimento, sob um grande monte de companheiros mortos.
            Vejamos agora a estrutura do livro [de 1857], no que diz respeito ao tratamento do exótico. A primeira constatação da leitura sequencial é que o espaço exótico, isto é, o espaço do outro, o espaço-outro, aparece nas Flores do mal sob duas rubricas: o jadis e o là-bas. Num, temos o sonho exotista que se faz por meio do deslocamento no tempo; noutro, por meio do deslocamento no espaço. Um é o domínio da reminiscência ou da reconstrução "arqueológica". Outro, o da viagem. Em ambos os casos, temos mundos que se contrapõem com vantagem àquele a que o poeta está confinado.
            Na sequência das Flores do Mal (1857), a primeira aparição do exótico se dá em estreita associação com o tema platônico do mundo superior, tal como descrito no Fédon. De fato, logo depois da apresentação do poeta e de uma alegoria sobre a sua missão no mundo (“O sol”[17]), o terceiro poema do livro, “Elevação”[18], põe subitamente em cena o tema da terra degradada em que habitamos, a que se opõem as regiões puras a que o espírito se pode elevar. A forma de aceder a esse lugar de unidade é o exercício das “Correspondências”[19] (poema IV), que, na sequência do livro, surge como a forma de recuperar a "obscura e profunda unidade" do mundo a partir da "analogia recíproca" entre os dados dos sentidos.[20]
            É nesse momento, anunciado o propósito de recuperar a unidade, que surge o primeiro poema exotista das Flores do Mal, o que começa "Amo a recordação..."(V)[21], em que se evoca um mundo paradisíaco explicitamente contraposto aos horrores do mundo moderno, concretizados na deformidade dos corpos contemporâneos moldados pela imbecilidade, pelo erro, pelo pecado e pela mesquinhez. 
            O mundo anterior ao pecado, idealizado nessas épocas nuas, é o mundo em que a carne é magnífica e o homem reina pela beleza física – o mundo pagão, a que o espírito, transcendendo os limites do presente, consegue erguer-se em contemplação. 
            Logo no início do livro, o exótico comparece, então, sob a forma do deslocamento temporal, como tentativa de remontar, pela evocação e pelo exercício das correspondências, à Idade de Ouro, na qual o homem teria conhecido a plenitude física e sensória – agora perdida. 
            Não temos, porém, aqui, uma solução pacífica, mas sim uma tensão ambígua. Por um lado, trata-se de um desejo e uma proposta de elevação espiritual: na medida em que o poeta se valeria dos sentidos para recompor a unidade básica do mundo, os dados sensuais deixariam de importar em si mesmos, passariam a valer como índices de algo que os transcende e que lhes dá significado. Por outro lado, fica patente já neste quinto poema do livro que o ideal é a fruição da sensualidade em um espaço outro, que permita a suspensão da culpa e do remorso – ou seja, que o sensual é objetivo em si, pois, como os frutos, a carne do homem da idade de ouro não só é saudável e elástica, mas também convida à mordida erótica.
            Veem-se bem, portanto, os suportes desse exotismo: o horror ao ambiente mesquinho que cerceia o poeta e o desejo de livre exercício dos sentidos e dos instintos. 
             
            Essa tensão entre o que o poeta denominou em outro texto o esforço de subir e a alegria de descer se cristaliza nos seis poemas seguintes, que têm marcada unidade temática, e tratam das artes (do ideal artístico e luciferino em seu desejo de totalidade [“Os faróis”[22]]), e dos obstáculos à concretização desse ideal.[23] Em outras palavras, nos termos baudelairianos, tratam da busca da unidade básica do mundo por meio da análise das correspondências e dos obstáculos que se apresentam ao indivíduo concreto que se dedica a esse objetivo: a doença, a venalidade, a preguiça, a velhice e o acaso [“A musa doente”, “A musa venal”, “O mau monge”, “O inimigo” e “O azar”[24]].
            E então, como que emoldurando esse núcleo coeso, eis que vem o poema “A vida anterior” [XII],[25] assinalando os limites do exotismo do jadis, pois aí o passado reconstruído pela imaginação ou pela reminiscência não é a plenitude da aurea aetas, mas um tempo espelho do presente, em que se equilibram a volúpia e a melancolia, sob a qual perpassa, numa mise-en-abîme, outra e saudosa lembrança de um tempo ainda anterior.
            Na sequência dessa espécie de confissão do malogro do exotismo temporal, surge o tema da viagem, do deslocamento espacial, com os poemas "Ciganos em viagem" [XIII][26] e "O homem e o mar" [XIV][27]. Em ambos, não são os limites temporais, mas os físicos, que aparecem como obstáculos a vencer para a conquista da liberdade e do futuro. Ambos referem a ação de forçar os limites espaciais como uma ação repetida desde o começo dos tempos. Em "O homem e o mar", explicitamente. Em "Ciganos em viagem”, de modo implícito, porque só percebemos que sob a roupagem antiga dos comediantes se figura o homem da idade de ouro quando novamente comparece Cibele, cuidando maternalmente deles com a mesma solicitude com que alimentara o homem e a mulher perfeitos do poema número V.
            No entanto, há poucos poemas em que a viagem, o deslocamento espacial surge como realidade. Nos mais importantes, trata-se de uma viagem mental, de transporte imaginário ou de vaga possibilidade de deslocamento. Em "Perfume exótico" [XXI][28], o primeiro a nomear a natureza exótica, o que temos é a construção de uma paisagem a partir de um dado sensual concreto: o odor do corpo da mulher amada. Trata-se, ainda, portanto, de exercício de descoberta da analogia entre os dados dos sentidos. Mas aqui não mais dirigido para a elevação do espírito à contemplação das regiões serenas acima das estrelas. Seduzido pelo prazer sensual, o poeta constrói outro lugar, acolhedor, tropical e paradisíaco, em que a promessa do prazer se realizaria sem o costumeiro séquito de culpa e de remorso. 
            De um ponto de vista religioso, o procedimento é condenável, pois o que se tenta é a recuperação do estado de inocência, a eliminação do pecado original, a recuperação do paraíso terrestre (“o verde paraíso dos amores infantis”, “o inocente paraíso, cheio de prazeres furtivos”[29] – dirá o poeta em “Moesta et errabunda”) pela via do comprazimento na carne. 
            Uma vez mais o movimento é, em si mesmo, ambíguo. Se, por um lado, é de fato comprazimento nos sentidos e, por isso, pecaminoso, por outro é uma forma de revestir o impulso sexual de uma abrangência sensual que o transcende e quase neutraliza. A ambiguidade do movimento de “Perfume exótico” se torna mais clara quando o lemos na ordem do livro de 57, pois ali ele sucede imediatamente "As joias"[30], este sim expressão direta e erótica do desejo sexual – e, por isso, um dos poemas censurados. 
            O que parece bastante fortalecido pela ordenação dos textos nas Flores do mal  é esse duplo movimento que podemos perceber na utilização do motivo do deslocamento (temporal ou espacial), em que a construção imaginária de um mundo favorável ao desfrute do sensual, do erótico, corresponde a um movimento de recusa momentânea, ou afetação de recusa, da pura sexualidade.
            Esse movimento duplo é perceptível também no poema mais famoso dedicado ao tema do deslocamento, "O convite à viagem", que ganha quando lido em relação com o que o precede e o que o segue imediatamente. O que o precede é "A bela nau"[31]. O que vem após ele é "O irreparável”. Em "A bela nau" temos uma mulher sedutora, comparada a um navio que deixa o porto "seguindo um ritmo doce, e preguiçoso, e lento". Toda ela é um símile da viagem e em partes de seu corpo se representam, inclusive, alguns dos perigos míticos da navegação –as pernas são feiticeiras que preparam negro filtro em um vaso profundo; os braços, grandes cobras das regiões tropicais. "O convite à viagem" é, assim, simultaneamente o convite ao embarque na "bela nau" e uma reação à carnalidade chocante daquele poema. 
            A construção mental e o convite à conquista do espaço adequado à vivência da plenitude sensual têm aqui também dupla função: por um lado, é um discurso sedutor dirigido a uma mulher; por outro lado, é um efetivo adiamento da vivência concreta da sexualidade. 
            Là-bas é, assim, também e sempre outro momento, e não só porque seria preciso ir até lá para que se pudesse viver plenamente a sexualidade, mas porque esse là-bas não é lugar algum, é mera intenção de não ser aqui, vaga possibilidade e sonho.
            Da mesma forma, o jadis das Flores não tem realidade histórica. Esfinges, tigres, montanhas de cristal, suas caravanas, oásis e tamarineiros são basicamente índices de outro lugar e de outro tempo e valem sempre como oposições ao presente parisiense, que é a única e determinante realidade dos poemas.
            É isso que mostra "O irreparável"[32], poema que se segue a "O convite à viagem", e localizado exatamente no meio das Flores do Mal (poema L): que é impossível transcender espacial ou temporalmente os limites do universo dos valores cristãos, em que o gozo dos sentidos acarreta culpa e perdição. Não é possível iludir o "velho Remorso". Contra ele não há filtros elaborados por feiticeiras, nem possibilidade de transpor os limites físicos da nossa própria situação histórica. Por isso, a estrofe mais dolorosa do poema é a que nega a transformação, pelo desejo e pela interpretação das correspondências, da paisagem hibernal européia em clara cena tropical.
            Temos aí um amargo contraponto ao gracioso quadro dos "Ciganos em viagem". Se lá uma divindade pagã se encarregava de proteger e alimentar os viajantes, aqui é o Diabo que preside à lúgubre cena noturna.
            Depois de "O irreparável” [L], o sonho exotista das Flores do Mal praticamente termina enquanto possibilidade ou esperança de transcendência. As paisagens idealizadas que se associavam à sublimação e ao encanto amoroso reduzem-se agora a uma simples "Conversa"[33] [LI]. Ou se transfiguram no horror de “Uma viagem a Citera”[34].

III

            Retornemos agora a "Moesta et errabunda" [LXII] e sua posição no livro. Neste último poema de tema exotista, estrategicamente colocado – como vimos – antes da série dos spleens, se dá a recolha da temática. Fica aí patente que o desejado movimento no espaço é apenas sucedâneo do único movimento desejado, mas impossível, o movimento no tempo, em direção a um passado em que não existia nem o crime, nem a dor; conseqüentemente, um passado sem culpa e sem remorso. 
            Esse tempo anterior, como vimos, comparece aqui com o seu próprio nome: "o verde paraíso dos amores infantis". 
            Mas não há caminho de volta, no tempo como na consciência, e a distância espacial é a mesma distância temporal, pois o almejado paraíso está "mais longe do que a Índia e que a China”. E, já agora, anunciando o spleen e a revolta, fica claro que, se por meio da decifração das correspondências, parecia possível recompor a unidade perdida do mundo, esse tempo quase isento de culpa é irrecuperável. A busca das correspondências – a desesperada tentativa de atribuir dignidade à fruição e livre exercício dos sentidos – fracassa como projeto de abolição da culpa e do remorso. Os poemas de número LVIII a LXIII[35] tratam do spleen, o estado de desagregação moral que decorre desse fracasso.
            E aqui deparamos o último desenvolvimento da temática exotista, já não como possibilidade de fuga e transcendência, mas, por assim dizer, em negativo, como fixidez e morte. O poema LX, que começa “Eu tenho mais recordações do que há em mil anos”, com a sua esfinge fixada no fundo do deserto, ecoa o que começa “Amo a recordação daqueles tempos nus”, assim como o LXI, “Spleen”, ecoa “A vida anterior”, e as “Brumas e chuvas” [LXIII] (título do soneto depois deslocado para os “Quadros parisienses”) se contrapõem aos céus amplos e abertos dos convites à viagem.
            Com o triunfo do spleen, afirma-se a situação irremediável: o confinamento ao presente e ao ambiente da cidade, isto é, à decadência. Por isso, encerrando a glosa do exotismo, o poema LXIV, "O irremediável"[36], põe em cena sucessivos símbolos do fracasso da viagem exploratória impossível e interrompida – a confirmação da queda, enfim: e eis o poeta refletido nesse "anjo, imprudente viajante" que se debate no fundo de um pesadelo, nesse condenado descendo às escuras um abismo cheio de répteis, e, por fim, na bela nau, agora aprisionada no gelo polar. 


[1] Para maior comodidade e fluidez da leitura, refiro os poemas pelos títulos traduzidos, conforme Charles Baudelaire. Poesia e prosa. Edição organizada por Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995, dispondo em nota de rodapé o título original. Neste caso: Au lecteur
[2] Spleen et idéal
[3] Fleurs du Mal
[4] Révolte
[5] Le vin
[6] La mort
[7] Cf. “Les fleurs du mal par M. Charles Baudelaire”. Repr. em Baudelaire, Charles. Oeuvres complètes.Texte établi, presente et annoté par Claude Pichois. Paris, Gallimar, 1975. As notas e variantes das Flores do Mal, nesse volume são de autoria de Jean Ziegler. É certo que sempre se pode argumentar, como Ziegler, que o artigo de Aurevilly não era inocente, no sentido que teria sido escrito para facilitar a defesa de Baudelaire perante a censura, conforme a carta que o acompanha: “l’article que vous m’avez demandé”.  
[8] Reproduzida em Baudelaire, Charles. Les fleurs du mal. Édition établie selon un ordre nouveau, présentée et annotée para Yves Florenne. Paris : Le Livre de Poche, 1972, p. 324.
[9] Tableaux parisiens
[10] Le soleil
[11] L’albatros
[12] À une dame créole
[13] L’invitation au voyage
[14] Les chats
[15] Les Hiboux
[16] La cloche fêlée
[17] Le soleil
[18] Élévation
[19] Correspondances
[20] « Richard Wagner e Tannhäuser em Paris ». Baudelaire. Poesia e Prosa, cit., p. 917.
[21] J’aime le souvenir de ces époques nues
[22] Les phares
[23] Na edição da Aguilar, há uma inversão na ordem, vindo “Os faróis” antes de “Amo a recordação...”.
[24] La muse malade; La muse vénale; Le mauvais moine; L’ennemi
[25] La vie antérieure
[26] Bohémiens en voyage
[27] L’homme et la mer
[28] Parfum éxotique
[29] V. 25 : “mais le vert paradis des amours enfantines”; v. 30 : “l’innocent paradis plein de plaisirs furtifs”
[30] Les bijoux
[31] Le beau navire
[32] L’irréparable
[33] Causerie
[34] Un voyage à Cythère
[35] La cloche fêlée, Spleen (Pluviose irrité), Spleen (J’ai plus de souvenirs), Spleen (Je suis como le roi), Spleen (Quand le ciel bas et lourd), Brumes et pluies.
[36] L’irremédiable

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Arguição: regionalismo e outras fronteiras

No dia 07 de agosto de 2019, teve lugar a arguição dos trabalhos apresentados em concurso de livre-docência pelo Prof. Luiz Gonzaga Marchezan, na Unesp de Araraquara.
Tratava-se de um conjunto notável de trabalhos publicados após o seu doutoramento. Uma seleção dos textos que ele julgou mais representativos. Um material que demonstrava, na produção escrita, as mesmas notáveis qualidades das outras áreas de atuação do docente.
Foi um bom momento, celebrando uma carreira plena.
Na ocasião, para arguir o vasto material apresentado, escolhi uma questão pequena, mas que me interessou desde o início da leitura.
Como as considerações pareceram interessantes a algumas pessoas presentes, prometi colocar o texto neste blog. E é o que faço agora.

=+=+=+

Arguição de Sobre a prosa de ficção brasileira: coletânea comentada, de Luiz Gonzaga Marchezan

Foi com muito prazer que li os ensaios recolhidos e apresentados a esta banca. E foi com maior prazer que percorri as páginas iniciais, nas quais você descreve os critérios de escolha e ordenação deles, bem como faz uma apresentação de cada um e da ligação entre eles.
Creio que esse formato de livre-docência é francamente superior ao antigo. Há algum tempo, de fato, o material apresentado era uma tese. Eu mesmo, quando me preparava para o meu exame, dediquei-me a fazer uma tese. Entretanto, quando resolvi inscrever-me, a legislação tinha mudado e permitia-se, na Unicamp, apresentar, em vez da tese, um conjunto significativo de trabalhos produzidos após o doutoramento.
Como já tinha escrito a tese, apresentei-a. Mas não deixei de apresentar a exame outro material: um conjunto de artigos, como você faz, porque me parecia muito mais importante, para definir o perfil do livre-docente, considerar a sua produção ao longo do tempo, bem como a vinculação daquela produção com as atividades de ensino.
Foi, portanto, com grande satisfação que fui percorrendo o texto de apresentação e saltando dele para cada um dos ensaios que ele resumia ou comentava, porque assim pude acompanhar o desenvolvimento das suas inquietações e os resultados do seu trabalho em várias frentes.
E vi que estamos frente a um perfil notável de pesquisador e professor, que se apresenta a nós de corpo inteiro. Digo isso porque não temos aqui um conjunto de artigos amarrados à volta de um tema. Pelo contrário, o volume é dividido em duas partes bem distintas, a segunda das quais refletindo as inflexões contemporâneas do seu interesse e pensamento, que já vão longe das que deram origem à parte maior do trabalho.

Ao preparar esta fala, pensei em começar pelo assunto que melhor conheço. No caso, o artigo sobre Dom Casmurro, no qual você faz algo notável, que foi praticamente ignorar a leitura de Roberto Schwarz, o “paradigma do pé atrás”. De fato, ao ler o texto percebo que você faz um esforço de analisar o romance fora desse paradigma e fora dos esquemas e propostas de leitura que a ele se contrapõem. Haveria várias considerações a fazer sobre a sua aproximação a esse romance e creio que eu me sentiria mais seguro do que vou me sentir, seguindo o rumo que escolhi.
Mas a verdade é que um exame como este não é em nada parecido com um exame de doutoramento. Aqui não se trata de arguir topicamente uma tese ou um conjunto de trabalhos, mas de compreender e avaliar um percurso intelectual, pesar os frutos de uma carreira extensa, tanto no aspecto didático quanto no aspecto da produção de reflexões por escrito.
Por isso, para aproveitar o momento com um colega que seguramente sabe mais do que eu num campo no qual sou insipiente, resolvi conversar sobre aquilo que menos conheço. 
Portanto, vamos falar de regionalismo. E as notas soltas que vou apresentar a seguir pretendem ser apenas isso mesmo: notas soltas que têm como expectativa maior propiciar aqui uma conversa sobre um tema importante para você, na qual eu possa aprender um pouco.

Dito isso, vamos lá.

Logo no início da sua apresentação, na página 12, você traz esta consideração: “a consolidação da literatura brasileira, a partir do Romantismo, apresenta-nos duas tendências, duas temáticas, situadas em espaços regional e urbano”. É um ponto de partida, um traçado que acompanhará as reflexões posteriores, porque você vai pensar o regionalismo como tendência e como temática, ao longo de um eixo temporal. Ou seja, como uma tradição.

            E creio que um ponto importante da sua visada é a asserção de Antonio Candido de que “um estágio fundamental na superação da dependência é a capacidade de produzir obras de primeira ordem, influenciada, não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores”, p. 11

Uma parte muito interessante do seu trabalho – e em volume creio que é a mais extensa no conjunto de textos apresentado a exame – é aquela na qual você trabalha “a memória que a literatura tem de si mesma”, ou seja, na definição de Samoyaut, a intertextualidade. (P. 10)

E considerando a perspectiva adotada a partir da referência a Candido, seu trabalho sobre o tema se desenvolve de modo a demonstrar, naquilo que poderia ser visto como uma linha por assim dizer mais nacional (a literatura em espaço regional), a dinâmica da superação da dependência.

Na delimitação do corpus para o estudo dessa questão, assim, você delimita um terreno que denomina de regionalismo. Não vou agora tratar do modo intertextual que você identifica como predominante, que é a paródia. Interessa-me conversar um pouco sobre o conceito de “regionalismo” e sobre a sua operacionalidade e aproveitamento na sua reflexão.

Nesse sentido, em primeiro lugar eu queria observar que na sua descrição das temáticas predominantes na formação da literatura brasileira não comparece com força definidora a oposição urbano/rural, que talvez fosse a mais elementar. De fato, essa oposição clássica é substituída, desde a formulação inicial, pela dicotomia urbano/ regional. O que me fez começar a refletir sobre o alcance dessa palavra, regionalismo, na trama dos conceitos do seu trabalho.

Isso porque Os corumbas, assim como Moleque Ricardoe principalmente Capitães de Areia são, digamos, urbanos pelo espaço em que decorre a ação. Mas frequentemente se enquadram nas descrições críticas na categoria “regionalismo”.
O termo, portanto, me despertou a atenção. Exigiu reflexão. E foi o que me propus a fazer: pensar sobre ele, a partir do uso que vejo no seu trabalho, como forma de dialogar com você.


Lendo o que escreveu na página 17 sobre José Candido de Carvalho (“o regionalismo do escritor segue a modernidade da linhagem modernista, voltado para o tempo presente e para a tradição do regionalismo nacional”), percebo que um ponto realmente importante para a sua reflexão é a existência de uma tradição no regionalismo. 

Nesse primeiro texto, você afirma que, “o espaço típico, regional, nos dois romances (Fogo MortoO coronel e o lobisomem), constitui a base do discurso interpretativo da enunciação.” E que “há ... nos dois romances, uma relação íntima entre as ações das personagens e os espaços ocupados por elas”.

Enquanto lia esse trabalho, lembrei-me da discussão feita por Luis Costa Lima (em A literatura no Brasil) sobre o conceito de regionalismo. E lá fui conferir.
Em certo ponto, ele diz: “uma obra é regionalista enquanto a realidade literária se inspire e se ampare em um plano físico e social determinados, que aparece como a sua contraface” – p. 363. Essa definição não conduz a uma valoração exatamente positiva do termo regionalismo, para Costa Lima. Tanto assim que ele vai concluir que os defeitos da obra da Lins do Rego (que ele vê justamente na desarticulação entre a natureza e o homem, que termina por impossibilitar a unidade global da obra) vão fazer dele, de fato, um autor regionalista.

Não é essa, evidentemente, a sua percepção do que seja o regionalismo. Muito menos é esse caráter valorativo que a palavra tem nos seus ensaios. 

E é claro que há um uso do termo regional que está consagrado e se encontra, por exemplo, no trecho de carta de Graciliano que você transcreve na p. 216: “trabalho numa série de contos regionais”. 

Mas uma coisa que eu gostaria de entender melhor é o alcance de postulação referida: a de que o espaço típico constitui a base do discurso interpretativo da enunciação. Porque justamente um ponto interessante desse seu ensaio é a abordagem produtiva do “tema universal da loucura” nas personagens dos dois romances, do seu desajuste em relação à família tradicional e o que esse desajuste revela sobre a sua estrutura. E é só no final, por meio de duas citações, que aparecem duas questões que pareceriam centrais numa abordagem sobre o regionalismo: a de Antonio Olinto, que destaca o linguajar do brasileiro do Centro-Leste; e a de Carpeaux, que destaca em Fogo morto a problemática da decadência do patriarcalismo.

            Eu li com muito interesse a sua análise do espaço, da paisagem ficcional, dos topoiretomados de um romance a outro. E está claro na sua apresentação que esse é um ponto, em princípio, de grande interesse. Mas eu ainda gostaria de perseguir o conceito de regionalismo, antes de comentar alguma outra coisa.

            É que o mesmo Graciliano, que afirmava estar escrevendo contos regionais, na mesma carta diz: “quero ver se consigo fazer psicologia de bichos: cachorros, matutos, etc.” O que me fez perguntar a mim mesmo o que de regionalismo há na psicologia dos bichos. E porque os matutos aparecem aqui no mesmo nível dos cachorros. 
De fato, que regionalismo haveria na psicologia dos bichos? Quero dizer: a psicologia dos bichos, se houver alguma, deveria ser tudo menos regional. Por outro lado, quando diz “cachorros, matutos, etc”, há algo que se insinua nessa redução do humano ao nível do animal. E, principalmente, na distância que se estabelece entre o autor e o tema ou assunto. Nesse sentido, embora se possa fazer coincidir o “regional” com o determinado ou limitado, a ideia da “psicologia dos bichos” tenderia a situar o “regional” no âmbito realmente do externo, do ambiente. Ou seja, seria regional o bicho, ou o seu ambiente, não a sua psicologia.
            No entanto, em outra carta, que você transcreve na p. 217, lemos Graciliano definindo Vidas secascomo “um livrinho, sem paisagens, sem diálogos. E sem amor”. Portanto, se “Baleia” é um “conto regional” e integra um livro sem paisagens nem diálogos, então o regional não é nem a paisagem nem a linguagem. Da mesma forma, Paulo Honório nos diz (e você transcreve a frase na p 23), que escreveu São Bernardo omitindo a paisagem. No entanto, ambos os livros são regionalistas ou classificados como tal (e o próprio autor parecia aceitar a designação, a ponto de usá-la), o que me leva a pensar que “regional” ou “regionalista” são, em alguma medida, termos que estão acima da questão da paisagem ou da linguagem. Mas seria então a configuração num espaço determinado que responderia pela utilização dessas palavras?

            Na página 30, ao descrever Ponciano, você diz que “é personagem de uma história que conta em primeira e terceira pessoa suas sagas, de forma livre, fantástica e com traços regionalistas”.
            Nesse ponto, creio que os traços regionalistas mais importantes – a julgar pela transcrição dos trechos de Rachel de Queiroz e Bosi, na p. 33 – residam no esforço de “compor as vozes da cultura popular em acordes próprios do escritor culto”, ou, mais exatamente, nesse caso, de inventar uma linguagem que provenha da linguagem falada num determinado recorte regional.
            Mas, pensei, em que a linguagem de um Lins do Rego ou, principalmente, a de Graciliano, denota um recorte regional – a não ser no vocabulário típico? O torneio da frase não é, de modo vago, modernista – sem o experimentalismo de 22, em busca de uma espécie de língua literária padrão próxima do coloquial? Uma “língua franca literária”, como a chamou Luís Bueno (p. 62)?

            É certo que em O coronel e o lobisomem, como você frisa, temos um registro de paródia. E por isso a linguagem é mais marcadamente “regionalista” do que em Lins do Rego ou em Graciliano. Mas isso apenas revela, quanto a mim, a dificuldade ou as dificuldades de definir traços comuns a todas as obras que comumente podemos designar como “regionais” ou “regionalistas”.

            No prosseguimento da leitura do seu texto, deparei com uma passagem de Bernardo Élis que me pareceu intrigante. Diz ele: “como não podia deixar de ser, há ao longo da velha história do regionalismo brasileiro uma tradição que permanece, embora o contexto cultural se modifique, permanência que se reflete nos temas ficcionais. Um deles é a maneira de considerar os bichos, os animais domésticos, na descrição abundante e minuciosa de paisagens, vegetais e plantas.” (47)

            Esse de fato me parece um traço interessante, que daria conta de algo que me parece importante, embora eu não tenha muitos elementos para pensar nisso. E este é o sentido último desta intervenção: sugerir pontos de diálogo com você, que tem muito mais leitura do corpus regionalista e refletiu mais longamente sobre isso; dar uma contribuição talvez ao seu pensamento, a partir da minha exterioridade ao campo.

            Esse ponto é a ligação entre “regionalismo” e exotismo, no sentido amplo. Quero dizer: regionalismo e notícia daquilo que não está dentro do universo de referência. No caso, do universo de referência do leitor previsto.

            E para isso queria voltar a uma formulação sua que achei do maior interesse, mas que não vi, nestes textos, desenvolvida como eu gostaria de ter visto. 
            Trata-se do que escreveu na página 13: “Um autor, quando escreve, prevê um leitor plural, variado, geral, e também um leitor singular, distinto, um observador. Tanto um quanto outro veem-se constituídos como sujeito, alguém que percebe, entende, sabe, avalia, interpreta um texto, aceitando ou rejeitando seus argumentos e, até, sua fabulação. É alguém que lê nas características discursivas do texto algo presente a partir da sua materialidade, entre suas escolhas enunciativas. Assim, um texto, nas suas coerções discursivas, expõe tanto as imagens de um autor, como as de um leitor”.

            Achei essa formulação muito interessante, e creio que, a partir dela, seria possível refinar o conceito de regional e regionalismo, transcendendo a restrição ao tema ou a determinação pelo típico.

            Quero dizer, ou melhor, sugerir: não seria possível estabelecer também o grau de “regionalismo” de um texto a partir das imagens de autor e de leitor nele previstas e operantes? 
            Penso nisso porque “regionalismo” é um termo que se utiliza por oposição. Embora se possa falar, como Afrânio Coutinho, de 6 tipos de regiões culturais ou literárias e até de incluir como sub-região o Rio de Janeiro e sua zona suburbana (para ele, até a literatura de Machado poderia, nesse sentido, ser entendida como regional), o certo é que o senso comum no uso do termo trabalha na direção apontada por você, quando traça uma tipologia capaz de abarcar vários autores regionalistas, na p. 50. 
            Essa tipologia se define basicamente pela noção de distância: o regionalismo baseado no caipira, se define pela distância do cosmopolitismo da capital; enquanto o baseado no sertanejo, pela distância da civilização litorânea.
            
            O que me ocorreu é que esse distanciamento espacial implica também um distanciamento temporal – na medida em que o regional tende a aparecer não apenas como outro lugar, mas também como outro tempo. 
A isso eu queria voltar ainda.
            Mas primeiro queria registrar, para a nossa conversa, uma lembrança: a de uns apontamentos escritos por Victor Segalen, nos quais ele operacionaliza a noção de exotismo num âmbito muito mais amplo do que o usualmente circunscrito pela palavra.
            Para Segalen, o exotismo é a experiência do que está fora dos padrões usuais, do diferente. Ele subintitula seu livro (ou projeto de livro), “une esthétique du divers”. O diverso, a alteridade, portanto, é que define o exotismo. Para ele, há vários graus de exotismo, conforme uma escala de abstração na vivência da alteridade. O mais simples e comum é o geográfico, das paisagens cheias de surpresa. O mais complexo e elevado é o religioso, que consiste na percepção de Deus como transcendência, ou seja, exterioridade irredutível. Entre essas formas extremas, há gradações: exotismo da sexualidade, exotismo histórico etc.
            Assim compreendido, o exotismo é um ideal político e civilizacional, que tem como adversária uma forma mentis moderna, que sistematicamente combate a diversidade, seja pela extinção do diferente, seja pela sua redução e assimilação enquanto “pitoresco”. Ou seja, o exotismo é uma forma de resistência contra a imposição de um padrão único civilizacional, contra a homogeneização. Uma forma de tratar o “outro” como “outro”.Daí também a ojeriza de Segalen ao turista e ao amante do pitoresco, que ia ao ponto de ele denominar Pierre Loti “um proxeneta da sensação do diferente”.  Ou seja, o exotismo de Segalen nada tem a ver com o registro do pitoresco, que é seu inimigo.
                        
Por fim, ainda no âmbito do exotismo, isto é, da percepção e fruição da alteridade, lembro-me de que a relação com o “outro” foi o critério utilizado por Luís Bueno para estabelecer a tipologia do romance de 30. E foi essa centralidade da noção de outro o que lhe permitiu encontrar um mínimo denominador comum, por meio do qual ele pôde descrever a enorme diversidade da produção romanesca do decênio.
            
            E agora, voltando ao ponto: quando me dediquei a esse assunto a propósito de um autor português, vali-me da sugestão de Segalen de que o distanciamento no espaço é também um afastamento no tempo. Ou seja: quanto mais longe se vai do centro civilizacional, que era a Europa, mais se recua no tempo. Isso para o bem ou para o mal: em direção à barbárie ou em direção a uma idade de ouro. 
            Deslocar-se, assim, é buscar o passado.

            Todas essas questões e sugestões me ocorreram meio desordenadamente na leitura do seu trabalho, porque me pareceu que um ponto importante do conceito de regionalismo, tal como aparece na literatura brasileira, é a identificação do regional como correspondendo a um estado passado (não necessariamente ultrapassado, pelo contrário) da evolução nacional. Uma das metáforas centrais em certo ponto do seu trabalho, é a da árvore. E, nessa metáfora da árvore, a questão do enraizamento.
            O regionalismo, dentro de um projeto de construção da literatura nacional ou mesmo da nação, poderia ser visto com uma busca das raízes? Ir para a região, afastando-se da metrópole ou da civilização litorânea, é ir de alguma forma para o passado?
            
            Também me ocorreram essas perguntas a propósito da sua formulação sobre o leitor previsto pelo autor. A função-leitor. E me perguntei se não seria possível construir uma definição ou mesmo uma tipologia do regionalismo a partir do jogo das imagens autor/leitor existente nos textos.

            Por exemplo: qual a posição do autor e do leitor em relação à matéria ficcional de O Gaúcho ou de O tronco do Ipê, de Alencar? É muito diferente do que ocorre nos romances indianistas? Quero dizer: não se tem, nesses dois romances regionalistas de Alencar, um autor falando de um assunto que lhe é alheio (no sentido da vivência – ou seja, algo que nada tem de testemunhal ou que se estribe numa experiência direta, e quem nem mesmo pode reivindica-la) para um leitor disposto a ser informado de algo distante da sua própria experiência e contexto? Não é algo semelhante o que ocorre no romance indianista? E, nesse caso, seria demais falar em exotismo, mesmo no sentido menos abrangente da palavra?

            Por outro lado, o jogo entre autor e leitor previsto, nesses romances, não é profundamente diferente do que vemos em Machado? Ou mesmo no Alencar dos romances urbanos?
            Se for assim, não faz sentido falar, como Coutinho, que Machado pertence a uma região ou sub-região literária... O que nos leva a pensar que o conceito de “região literária” de Coutinho pouco ajuda no estabelecimento do conceito de “regionalismo” ou na propriedade de atribuir tal palavra para descrever esta ou aquela obra.

            Por outro lado, quando Lins do Rego ou Graciliano escreve, qual o jogo? Para quem eles escrevem? Que notícia dão?
            Luís Bueno conta a febre que houve de romance nordestino. Algo semelhante, em certo sentido, à gula que Eça de Queirós registrava na Inglaterra, no fim do XIX, por livros de viagens. O regionalismo seria, nesse sentido, em alguma medida, um “dar notícia” do diverso, do diferente, do atrasado ou do paraíso perdido aos leitores concentrados na corte ou nas grandes cidades do tempo?
            E seria possível (ou seria sem sentido?) hierarquizar os romances regionalistas conforme seu interesse no oferecimento do típico (da macumba pra turistas, para retomar a frase de Oswald) ou no esforço de manter o típico e o pitoresco subordinado ao interesse maior da coerência estética?

            Quando tentava pôr alguma ordem nessas ideias, lembrei-me de uma referência que não consegui achar. Creio que era uma consideração de Inglês de Sousa sobre que tipo de linguagem usar ao escrever sobre uma região afastada. O ponto era que usar a linguagem da região exigiria uma profusão de notas que seria insuportável para o leitor. Não estou seguro, porém, de que tenha sido Inglês de Sousa a defrontar-se com esse problema – que foi o problema com que se defrontou Alencar ao usar a sua linguagem índia, por sinal. 
Mas seja dele ou de outro escritor “regionalista”, é uma questão válida, que incide sobre o leitor previsto no romance regionalista – que poucas vezes me parece poder confundir-se com o leitor “regional”. Quero dizer: o romance regionalista se define como tal não apenas pelo assunto ou espaço ficcional, mas também pela destinação: por ser um discurso que não perde de vista o fato de que fala para um público que não compartilha a experiência regional.

            Nesse sentido, é de fato notável que em Lins do Rego ou em Graciliano – depois do Modernismo – já seja bem conseguida a tal língua franca literária, em que já não são necessárias notas de rodapé, nem se apresente a cada momento, de forma crua, a divisão linguística entre o autor que fala para um auditório não regional e as personagens que falam no confinamento regional.    

            Por fim, creio que há um outro sentido da palavra “regionalista” no seu trabalho. É quando você fala de José Candido de Carvalho e, principalmente, de Francisco Dantas. Aí o sentido da palavra não é o mesmo de quando é empregada para definir a literatura de Lins do Rego, por exemplo. Quando você diz, na p. 16, que eles “dão sequência ao regionalismo literário”, entendo que se trata aqui de uma reivindicação: eles reivindicam a tradição, atuam sobre ela, filiam-se a ela, favorecendo um modo de leitura.
            Nesse sentido, ganha relevo o que anota na página seguinte: “Carvalho se faz um cronista de um mundo superado, em desaparecimento, que se inicia, a partir da segunda metade do século XVII, com a lavoura de cana em Campos de Goytacazes, na Baixada Fluminense, seguida de engenhos a vapor, ao lado da pecuária”.
            Ora, não era Lins do Rego também um cronista de um mundo em desaparecimento? Qual a diferença? Por um lado, isso permite que a obra de Carvalho, seja lida como pertencente à tradição regionalista, que reivindica. Por outro lado, algo me faz pensar que a diferença reside na palavra “superado”, pois a paródia de Carvalho parece evocar um mundo que não é mais agônico, e sim morto ou reduzido à fantasmagoria. Ou ao domínio da farsa.
            Já o caso de Coivara da memóriatalvez permita uma leitura diferente, mas que não é o caso de tentar aqui. 
            Basta, por enquanto, que este texto faça o que se propôs fazer: apresentar uns pensamentos soltos de alguém que nunca se dedicou ao tema, mas que, por isso mesmo, possam talvez servir de gatilho a uma conversa.