Haicai – entrevista
a Álvaro Kassab
[Jornal da Unicamp -
Edição 399 - 16 a 22 de junho de 2008]
O professor e escritor Paulo Franchetti, do Instituto de Estudos da
Linguagem (IEL), acaba de lançar Oeste (Atelie), reunião de haicais traduzidos
para o japonês por Masuda Goga Hidekazu. O interesse do docente pelo gênero foi
despertado há quase 30 anos, quando o escritor desenvolveu pesquisa acerca da
poesia concreta. Na entrevista que segue, Franchetti fala sobre sua nova obra e
analisa o papel do haicai na literatura brasileira contemporânea, sem perder de
vista sua dimensão transnacional.
-
Jornal da Unicamp – O haicai é um tema recorrente no
conjunto de sua obra e em suas áreas de interesse, com ênfase nos aspectos
estéticos e históricos. Agora, com a publicação de Oeste, o senhor deixa o
ensaio de lado e parte para a prática, digamos, poética, já presente de certa
maneira nos contos de O Sangue dos Dias Transparentes, nos quais a concisão era
uma das características mais acentuadas. Como foi construído esse processo?
Paulo Franchetti – Tenho trabalhado com o haicai desde o
final dos anos de 1970. Minha dissertação de mestrado foi sobre a teoria da
Poesia Concreta, para a qual a escrita chinesa (e japonesa) era uma referência
importante. Para entender melhor as reflexões de Haroldo e Augusto de Campos,
via Ezra Pound, sobre a escrita então chamada de “ideogramática”, dediquei-me
ao estudo da língua japonesa. E, na seqüência, sob a supervisão e com a parceria
da minha colega do IEL, professora Elza Doi, à leitura e tradução de haicais.
Foram vários anos de trabalho, de que resultou, entre outros textos, o livro
Haikai – antologia e história, publicado pela Editora da Unicamp, em 1990. Aos
poucos comecei a escrever haicai, depois de assistir aos concursos nacionais
que se realizavam no Centro Cultural São Paulo e de me aproximar de um grupo de
praticantes da arte que se reuniam, em São Paulo, numa sala da Aliança Cultural
Brasil-Japão. Creio que foi o estímulo dessa convivência que me levou a
escrever haicais de modo regular. E essa é uma característica do haicai que me
agrada muito: o seu caráter de prática coletiva.
Nisso, o haicai se parece com outras artes tradicionais japonesas: o
ikebana, o origami, o chá, o sumiê – é simultaneamente uma forma de
sociabilidade e um exercício prático de domínio de uma técnica artesanal. Ao
mesmo tempo, como as demais artes, é um “caminho”, um “dô”, isto é: uma forma
de ver, numa dada prática, um modelo do mundo e, complementarmente, um jeito de
olhar para as coisas derivado diretamente do exercício de uma dada arte.
Daí que seja difícil, no caso do haicai e demais artes tradicionais,
estudá-las sem as praticar, pois a prática é o lugar onde se pode avaliar o
progresso da aprendizagem. Penso que esses anos de estudo e exercício do
haicai, de convívio com os haicaístas e, principalmente, de leitura sistemática
de textos clássicos do budismo deixaram marcas. Uma delas, eu creio, é o gosto
da concisão que você percebe nos contos que publiquei naquele livro.
JU – Os haicais de Oeste foram traduzidos para o japonês,
fato raro (inédito?) não só no gênero mas também no mercado editorial. Como se
deu essa transposição? O fato de a edição ser bilíngüe trouxe novos elementos à
obra?
Franchetti – Talvez existam outros livros de haicai,
escritos por brasileiros, com versão para o japonês, embora eu não me recorde
de ter visto nenhum. No caso de Oeste, o dado relevante é o tradutor. Os
haicais foram vertidos para o japonês por Hidekazu Masuda Goga, que foi um dos
fundadores da associação a que me referi há pouco, o Grêmio Haicai Ipê.
JU – Masuda Goga é considerado um dos mestres do gênero no
país. Qual foi sua importância no campo teórico e na difusão do haicai no
Brasil?
Franchetti – Goga nasceu no Japão em 1911 e veio para o
Brasil em 1929. Como todos os imigrantes japoneses, trabalhou primeiro na
lavoura. Depois estudou e dedicou-se a outras atividades, entre as quais o
jornalismo. Discípulo de Nempuku Sato, que foi o grande mestre do haicai na
colônia, Goga dedicou sua vida ao estudo e difusão do haicai, tanto em japonês
quanto em português, sendo autor de pelo menos dois livros essenciais: uma
história do haicai no Brasil e um dicionário de palavras que podem ser usadas
para marcar a sucessão das estações neste país.
Ao lado disso, escreveu sempre, tanto em japonês como em português, haicais
que serviram de inspiração para todos os que se interessam por esse gênero de
poesia. Sua presença nos encontros de haicai e nas reuniões do Grêmio era fonte
de inspiração e estímulo para todos os que o conheceram e tiveram a alegria de
com ele conviver.
No caso de Oeste, sinto que as traduções têm um interesse que em muito
extrapola o dos originais. Ou seja, não tenho dúvida de que o maior interesse
do livro, para quem lê japonês, reside na qualidade da tradução. Para valorizar
o trabalho do Goga, o editor do livro deu um tratamento especial ao texto
japonês, que foi belamente caligrafado e impresso sobre fundo colorido. De modo
que o livro termina por ser, além de um agradecimento, uma homenagem ao velho
mestre e à sua generosidade em se ocupar, nos seus últimos anos de vida, da
tradução desses poemas.
JU – Num dos primeiros registros sobre haicai feito no
Brasil, Afrânio Peixoto escreveu em 1919 que o gênero era “ainda mais simples
que nossa trova popular.” O senhor concorda com a afirmação? Em sua opinião, há
algum gênero no país que se assemelhe ao haicai e consiga ter, ao mesmo tempo,
a sofisticação deste e apelo popular?
Franchetti – A declaração de Peixoto é ao mesmo tempo falsa
e verdadeira. É verdadeira se pensarmos no haicai como forma. Por esse aspecto,
ele é ainda mais simples do que a quadra, tendo apenas três versos, sem rima.
Ou se pensarmos que a forma básica de estruturação do haicai é, como a da maior
parte das quadras, a justaposição de duas notações (uma íntima e outra
objetiva), deixando a relação entre elas por conta do leitor.
Mas a declaração é falsa se entendermos que o haicai é tão simples quanto a
quadra, do ponto de vista da sua composição ou da sua compreensão. Basta ler um
conjunto de haicais, ainda que escritos por brasileiros, americanos ou
franceses, e um conjunto de trovas, para que as diferenças saltem aos olhos. O
haicai recusa o dito espirituoso, a graça evidente, a expressão sentimental
direta. Sua beleza provém da contenção, do que é apenas insinuado, da economia
de recursos e da modéstia dos objetivos.
Uma forma de resumir o haicai é dizer que ele é a arte de, com o mínimo, obter
o suficiente. Uma arte minimalista, portanto. Daí vem a sua característica mais
notável, que é a aliança de simplicidade de forma com sutileza espiritual. E o
efeito mais impressionante do haicai é que uma anotação rápida e lacunar de uma
cena qualquer produz muitas vezes, no leitor, uma impressão poderosa, que fica
vibrando na memória, sem muita explicação. Nada disso se encontra na trova, de
modo geral.
Penso que é o fato de não haver, na nossa tradição, um gênero de poesia que
junte simplicidade formal, sofisticação e apelo popular que se deve justamente
a grande voga do haicai no Brasil.
JU – De Guilherme de Almeida a Paulo Leminski, passando
pelos concretistas [irmãos Campos, Pedro Xisto e Pignatari], o haicai foi
celebrado e teve entusiastas e praticantes na maioria das correntes literárias
ao longo dos últimos 80 anos no Brasil. A que o senhor atribui esse interesse?
Franchetti – O haicai foi descoberto pelo Ocidente no começo do século XX. Na
França, foi uma verdadeira febre. Seu grande divulgador foi Paul-Louis Couchoud
(1879-1959), escritor hoje esquecido, mas nome-chave no orientalismo do começo
do século XX. Couchoud esteve no Japão de setembro de 1903 a maio de 1904 e
tomou contato com a literatura japonesa por meio dos trabalhos de europeus ali
radicados. Em decorrência dessas viagens e leituras, em 1905 Couchoud produziu
com dois amigos seu primeiro conjunto de poemas inspirados no haicai: 72
tercetos sem métrica nem rima, que buscavam antes reproduzir o espírito do que
a forma desse tipo de poesia japonesa.
A partir daí, tem-se uma intensa produção de haicais, em grande parte
estimuladas por outro livro de Couchoud: uma apresentação do haicai japonês,
com prefácio de Anatole France. Pela mesma época, Ezra Pound publica as notas e
reflexões de Ernest Fenollosa, sinólogo de língua inglesa, nas quais a escrita
ideogramática é proposta como um modelo explicativo da poesia chinesa (e
japonesa). Desse momento em diante, o haicai passa a ser uma referência básica
também para a poesia moderna de língua inglesa. E a partir dos anos de 1950,
quando a contracultura busca, no Oriente, formas alternativas de religiosidade,
conduta e expressão artística, o traço simultaneamente moderno e marginal do
haicai faz dele um objeto de grande interesse.
De modo que, nos nomes que você citou, encontramos representantes das várias
linhagens de interesse no haicai. Guilherme de Almeida provém, em certo
sentido, de Couchoud, os concretos de Pound e Leminski de uma convergência da
tradição radicada em Pound com a contracultura zen dos anos 60. O interesse pelo
haicai é, assim, resultado de vários fatores, que aparecem, em cada caso, em
combinação variável.
JU – Autores como Leminski e Millôr Fernandes recorrem ao
tom declaradamente anedótico e irônico na feitura de haicais. A “matriz”
japonesa comporta – ou admite – esse tipo de abordagem?
Franchetti – Existe um tipo de poesia japonesa que se
parece mais com o que Millôr Fernandes chama de hai-kai: o senryu, poema que
tem a mesma forma do haicai, mas espírito mais jocoso e mesmo sarcástico. Já o
tipo de haicai do Leminski se afasta menos da tradição do haicai que, como
todas, tem muitas modalizações.
JU – É possível afirmar que já existe um haicai
genuinamente brasileiro? Se sim, quais são os aspectos que o diferenciam dos
produzidos no Japão e em outros países?
Franchetti – Essa é uma questão difícil, a do haicai
brasileiro. Mas talvez seja possível dizer que existe um haicai internacional,
isto é, ocidental. De fato, uma pesquisa na internet mostra a enorme quantidade
de revistas e livros de haicai em várias línguas, principalmente a inglesa. E
há publicações no Japão inteiramente dedicadas ao haicai internacional.
Sem dúvida, escrever haicai não é a mesma coisa para um japonês e para um
ocidental. Como não é a mesma coisa escrever um soneto. As formas são carregadas
de sentido histórico.
O que é curioso, porém, é que a leitura dos haicais produzidos hoje no Japão
por pessoas jovens nos mostra que eles se parecem muito com os haicais
produzidos em outras partes do mundo. O que me dá a impressão de que o haicai é
hoje basicamente uma forma e uma arte transnacional.
JU – Como o senhor definiria um bom haicai?
Franchetti – Penso que um bom haicai é aquele que tem a
modéstia e o despojamento da linguagem como valores centrais, aquele que não se
satisfaz na banal exibição de virtuosidade técnica ou capacidade de associação
brilhante. Ou seja, penso que um bom haicai é um texto que se limita
voluntariamente a apenas situar uma dada percepção sensória, objetiva, num
campo maior de referências (objetivas ou subjetivas) onde ela ganhe sentido e
componha um quadro único; um texto que traz para o leitor a presentificação de
um instante como algo inacabado, aberto, um esboço ou um diagrama do choque
entre a sensação fugaz e irrepetível e seu longo ou profundo ecoar nas diversas
cordas da sensibilidade e da memória.
JU – Na sua opinião, a literatura japonesa é devidamente
valorizada – e difundida – no Brasil?
Franchetti – Creio que tem sido bastante valorizada e
difundida, principalmente nos últimos anos, quando têm aparecido traduções de
vários autores importantes, realizadas a partir dos textos japoneses e não de
outras traduções.
JU – E o haicai, é devidamente contemplado pelos
departamentos de teoria literária das nossas universidades?
Franchetti – Não creio que seja muito contemplado. Nem o
haicai, nem outras formas de poesia.