Mostrando postagens com marcador jorge de sena. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador jorge de sena. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Uma carta de Mecia de Sena

    Em 1993 conheci, em Los Angeles, Emmanoel Santos. Sua simpatia me causou profunda impressão e nos estendemos em longa conversa, como se não fosse o primeiro encontro. Quando nos despedíamos, disse-me ele que eu precisava conhecer sua mulher, Gilda, porque ela era como eu. Usou a seguir uma palavra do campo semântico da palavra “dínamo”, que depois pude constatar ser muito apropriada para descrevê-la, mas não a mim, muito mais lento, e acomodado.
    Gilda estava em Santa Barbara e para lá segui, no final de semana, para encontrá-los na casa de Mecia de Sena.
    A partir daquele momento estava selada uma das amizades mais gratificantes, que foi a do casal Santos, e estava criada a condição para uma longa troca de correspondência com Mecia, com quem, apesar de ter regressado várias vezes aos EUA e de ela ter vindo algumas ao Brasil, não tive a oportunidade de ter outro encontro pessoal.
    Nesse diálogo epistolar, que se estendeu até o começo dos anos 2000, tratamos um pouco de tudo: da obra de Jorge de Sena, que me entusiasmara, dos percalços editoriais, dos seus esforços para editar e divulgar a obra e de um projeto, que não consegui levar a cabo, que era ajudar na publicação da correspondência de Sena com Alexandre Eulálio.
    Várias vezes pensei que valeria a pena publicar as cartas que me mandou, mas alguma confusão nos meus papeis fez com que desaparecessem. Em vão as procurei, porque em duas delas havia informações sobre Camilo Pessanha que teriam sido úteis quando escrevi o livrinho da coleção O Essencial. Lembrava-me, aliás, perfeitamente do que tinha lido, mas sem as cartas não me atrevi a incluir nenhuma informação.
    Também sentia muito não encontrar essas cartas, por conta de ela ter feito, num comentário justamente a um artigo que escrevi sobre a biografia de Pessanha, observações muito interessantes quanto a fantasias biográficas sobre Fernando Pessoa.
    Numa dessas noites de insônia, quando a gente termina por fazer algo apenas para passar o tempo e aguardar o começo do dia, finalmente encontrei-as num lugar improvável, onde jaziam há anos fora do alcance. Tive vontade de reuni-las, transcrevê-las e publicá-las numa revista, para preservar a sua memória. E talvez ainda o faça. Mas como não é certo, pensei que valeria logo a pena, sem nenhum aparato nem transcrição, dar a conhecer a mais interessante delas, datada de 24 de março de 1994.
    
    E é isso que faço a seguir.





domingo, 14 de abril de 2013

Jorge de Sena e o haikai

Os haikais de JS

X
     Jorge de Sena sem dúvida conheceu bem o haikai clássico. Introduziu 20 deles, de Bashô, no seu Poesia de 26 séculos. Por isso, a questão que se coloca ao ler os poemas de sua autoria por ele denominados hai-kais não é essa, e sim o que o poeta desejou fazer ou conseguiu fazer ao convocar o nome e o espírito da forma.
     A questão não tem resposta simples. Tecnicamente, poucos desses poemas, se lidos isoladamente do conjunto e da denominação, seriam considerados haikais. Talvez um, talvez nenhum. Não só por não guardarem a estrutura do terceto, com a qual se popularizou o haikai no Ocidente, mas principalmente porque a quase todos falta a objetividade despojada que identificamos como essencial para a definição do gênero.
     Ao vincular tais textos ao gênero haikai, então, o poeta buscava outra coisa. De imediato, é evidente que a denominação promove uma disposição de leitura. O leitor se prepara para um tipo de poesia, propõe-se uma atitude interpretativa.  Essa disposição e atitude é que serão contrariadas ou confirmadas ao longo da leitura. Mais contrariadas do que confirmadas, nesse caso.
     O efeito de sentido é complexo. Trata-se de um poeta reconhecido, de um estudioso muito conceituado e de um evidente conhecedor da forma e da tradição do haikai. Mas os textos que produz e insere, por um gesto soberano, nesse gênero, não parecem pertencer a ele.
     A forte personalidade do autor determina o afastamento, marcando presença não apenas nas referências ao “eu”, mas também na escolha da forma do dístico e do tom aforismático.
     Para um leitor pouco familiarizado com o haikai japonês, a forma do dístico surpreende mais. Entretanto, quem já o leu no original sabe que a estrutura básica do haikai é a justaposição de dois segmentos frasais. A medida nada tem a ver com a utilizada por Sena, cujo dístico se compõe de dois versos de aproximadamente a mesma extensão. Mas em alguns do poeta português, a justaposição faz com que o texto mimetize a estrutura profunda do haikai.
     Dos poemas do autor, o que mais pareceria, pela estrutura, um haikai é “para encontrar-se o acaso / ai quanto caminhar!”. Mas esse é justamente o que menos se sustentaria como haicai, por ser abstrato, não trazer nenhuma indicação de lugar ou de tempo, nenhum kigo.
     Já o que me parece ter mais espírito de haikai é este “O mar se alonga ao longe tão sereno. No temporal, há pouco, era mais curto”. Porque aqui se tem uma observação muito precisa, muito objetiva. O horizonte se encolhe no temporal. Qualquer outro sentido simbólico pode construir-se, mas a base objetiva é firme e indiscutível.
     Jorge de Sena poderia ter escrito pelo menos dois desses poemas na forma tradicional do haikai. Mas por alguma razão o quis fazer.
     Como exercício, para mostrar as diferenças e as aproximações, faço-o eu aqui, sem pretender evidentemente corrigir, mas dialogar divertidamente com o poeta.
     No primeiro, bastaria suprimir a notação subjetiva e teríamos um haikai, facilmente reconhecível como tal:

Tem chovido tanto…
Na noite do quintal,
O sapo canta.

No terceiro, seria o caso de eliminar a torção da frase, em nome da naturalidade da expressão:

O temporal passou.
O mar sereno
Parece mais longo.

Assim teríamos haikais. Mas esses textos, eu creio (embora conheça pouco a obra poética de Sena), dificilmente poderiam ser assinados por ele.
X                   
                
HAI-KAIS
Tem chovido bastante: insuportável tempo.
Na noite do quintal, o sapo canta.
*
Conversam como ao longe
não comigo.
Se comigo falavam
Cansar-me-iam.
*
Por nuvens as montanhas não têm picos.
Mas, negras e escalvadas, cabeleira branca.
*
O mar se alonga ao longe tão sereno.
no temporal, há pouco, era mais curto
*
O ano inteiro esta árvore
larga folhas mortas.
*
Roupa que se abre e cai:
surpresa; ou muito ou pouco.
*
No escuro cresce o amor
que só nocturno se ama.
*
Para encontrar-se o acaso
ai quanto caminhar!
Sentado, escreve e lembra
imagens que não viu.

HAI-KAI
Um pássaro canta: não tem voz
que só cantar dos outros ele imita.
11-12/1/1974
In: 40 Anos de Servidão. Lisboa, Ed. 70, 1989, p.140-1 eVisão Perpétua, Lisboa, Ed. 70, 1989, p. 192





Publicado origalmente em Ler Jorge de Sena
http://lerjorgedesena.wordpress.com/2013/04/09/jorge-de-sena-e-os-haikais-2/