Mostrando postagens com marcador marco cremasco. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador marco cremasco. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Santo Reis da Luz Divina - apresentação



Apresentação do livro Santo Reis da Luz Divina, de Marco Aurélio Cremasco - 2004


            “Celeste, entretanto, não amou a Augusto como Pedro a Inês, mesmo com o nascimento de Santino, e, depois de três crianças mortas quando do nascimento, de Heitor.”
Quando li esse nome, tudo empalideceu: o rosto de Augusto, o desfile sob a luz das tochas, o sonho depois perdido no meio do sertão da terra nova. Apenas a figura do herói se erguia, igual a si mesma. Não era possível compreender como se sentiria antes da batalha. Não havia ainda o cheiro da morte, os membros rasgados nas pedras, imundos com a lama coberta de sangue. O vento que ondulava nas planícies poeirentas invadiu o quarto e, junto, o cheiro forte da erva esmagada pelos carros. Os cavalos suados, a mudez sobre as muralhas, de onde logo o choro grosso das mulheres desceria em ondas sobre a encosta da colina.
            E era uma palavra, numa seqüência de outras, que trazia os fantasmas ininteligíveis, a procissão deles, sujos, sanguinolentos, terríveis na paixão, caindo como troncos sobre o solo, soltando o suspiro fundo, no qual a alma se esgueirava para os reinos subterrâneos, onde tudo era apenas sombra.
            Eu li, naquele momento o que se passa e se agita sempre sob o olhar das letras, como o fluido nas veias sob a pele: as naus, os cantos, amores e luar gelado sobre as tendas. E quando continuei o milagre estava feito, a espécie recomposta e o animal de outrora, redivivo, de novo se agitava.
            E depois, fui abrindo outras portas, caminhos que ligavam o aqui e o ontem e o que houve no começo: “Acontecimentos passados apenas passam quando importância dada pouco é ventilada. São folhas caducas de árvores secas que servem de ninho aos pássaros ou cova aos ratos ou simplesmente abrigam a alma do que não existe”.
            De onde vinham as palavras que se moviam assim, na direção do que por um momento brilhou e foi sabedoria, e agora, esquecido, permanece apenas como reminiscência, desejo surdo de retorno? O que ali estava se compondo, por debaixo da história na qual os fatos pareciam apenas balizas de um sentido que não emergia totalmente?
            “Qual noite é capaz de esconder o brilho do mais distante fogo? As cabanas, envoltas de cusparadas de chamas, incendiavam-se em cada graveto da última fogueira no meio de carroças e tendas”. O dente do tempo faz uma cicatriz em cada trecho da pele esticada desta narrativa: vêm, sob o arranjo da fala, o ritmo e a volúpia do que já foi dia um tido por autêntico. A cadência de quando havia um país por descobrir, uma fala por trazer para dentro do espaço sagrado das páginas de um livro. Mas agora esses ecos estão misturados com as formas dos filmes, o borbulhar do riso que percebe o movimento nostálgico, a verdade de uma infância perdida no canto da memória, de onde as falas e os nomes às vezes emergem, ainda melados do sono do esquecimento.
            “A vida só tem sentido quando contada pela morte. O construído se completa no destruído. Entre o estampido e o tiro, a luz. A luz só tem sentido quando antecedida pela ausência. Ficar em pé só se completa no tombo. Os dentes brancos do sorriso são escovados pela lágrima. E quando não há dentes, é por terem sido arrancados no espólio da batalha”. E perante isso, que importa, senão como intervalo, o particular da história? Como não perseguiria, ávida e displicentemente, quem está do lado de cá, esbarrando na barreira das palavras, a trama dos eventos de que já ninguém se lembra? Como não passaria rápido, de uma linha a outra, em busca da forma do próximo momento no qual o corpo vivo do que foi de novo apareceria: o livro do conhecimento, a voz anônima em provérbios, as sagas perdidas, as lidas e as trelidas ao longo dos séculos se amontoam na margem, à espera da sua vez de, bebendo o sangue dos nomes novos, recuperar um pouco da visão antiga. E foi assim que eu segui, imune quase ao fluxo do que me aparecia apenas como alimento e base do que crescia a intervalos: a história de Santino e Esperança, as cuidadosas reconstruções do que não importava, a figura e o charuto de Getúlio, os nomes da geografia de onde passei a minha própria infância.
            Durante o tempo estendido em que a fala tentou tecer uma ponte de sentido, as perguntas valeram sempre mais do que as repostas: “Quando a guerra acaba no olhar do guerreiro? Quando a lâmina cega na barriga do derrotado? Quando a desgraça se apodera dos desesperados? Qual o momento certo para fugir do espelho ou se refugiar na própria sombra? Esperança olhava o céu. Santino, a terra. Esperança rogava a Deus. Santino enxergava o infinito nas trilhas que cruzavam Luz Divina. Enquanto um se procurava nas estradas perdidas da infância, outra aumentava as feridas impregnadas nos joelhos por tanta oração. O Brasil não era o mesmo”. Mas quem se importará, singrando a superfície das palavras, com o último elemento? E com, ao final, o amigo que não era amigo, o enigma solucionado? Para quem buscava o sentido na ramagem, estava dado o prato e a sobremesa. Mas para os que sentiam que as folhas só se agitavam de verdade porque as raízes se enroscavam, famintas, na terra onde há séculos penetrava o húmus das palavras decompostas, florescentes e de novo prontas para a seiva nova, para esses a passagem deveria ser refeita, os escolhos da superfície afastados, para que o leito do mar, onde repousam os restos dos naufrágios sucessivos, pudesse acolher mais este gesto de amor e, com ele, depois da carne rápida e viva da lembrança, o mineralizado esqueleto da infância, ali ternamente depositado como um testemunho ou uma homenagem, já que assim dignificado junto às sombras dos heróis de outrora.