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segunda-feira, 10 de junho de 2013

Romance histórico de Herculano



As origens da nação portuguesa [1]
(o romance histórico de A. Herculano)


   Quando Alexandre Herculano escrevia sua obra literária, Portugal passava por uma profunda convulsão econômica e moral. A Independência do Brasil está na origem de um período de tensões sociais e políticas que recrudesceriam com o Ultimatum inglês de 1890, quando o país seria obrigado a desistir formalmente do sonho de substituir o Brasil por novos territórios no centro da África.
    Perder o Brasil significou um duplo golpe para a nação portuguesa. Por um lado, perdia-se a principal fonte de sustento e de riqueza; por outro, no imaginário da época, essa perda representava o fim da ilusão de que Lisboa poderia manter-se indefinidamente como cabeça de um grande império transatlântico. Herculano, nascido em 1810, forma-se sob a influência desse momento muito particular, em que se agudiza a percepção de que o país estava em crise e que seriam necessárias medidas enérgicas para revitalizar a nação.
         Desde muito cedo, o futuro escritor participa ativamente dos acontecimentos políticos de seu país, engajando-se como soldado na guerra civil, contra os absolutistas partidários de D. Miguel. Marcado por essa experiência, durante o resto da vida permaneceria fiel aos valores liberais. O que não significa que tenha aprovado os novos rumos tomados pela nação em meados do século passado: na verdade, depois de uma fase de intensa participação intelectual e política, Herculano acabou por retirar-se ostensivamente da vida pública,  desiludido com a política e com a sociedade dos novos tempos. Mas da sua chácara, onde passou a dedicar-se à agricultura, não deixou nunca de estar atento a tudo o que se passava em seu país, manifestando-se sobre assuntos que julgava importantes e correspondendo-se com os novos escritores da chamada Geração de 70. Tendo-se transformado numa espécie de mito para os contemporâneos e para esses jovens, Herculano acaba por representar, cada vez mais, a pureza perdida dos ideais que marcaram os primeiros tempos liberais. Da conjunção de seu magistério moral e da seriedade intelectual que caracteriza toda sua vida resultou que, ao terminar os seus dias, em 1877, Herculano não fosse apenas um escritor consagrado, mas a realização de um projeto de inserção social que percorre toda a sua carreira literária, iniciada com um texto que se intitulava justamente A voz do Profeta”.
      É contra esse quadro situacional que se deve projetar a obra literária de Alexandre Herculano. E é esta circunstância que não se deve perder de vista: homem profundamente empenhado na transforma­ção do mundo que o cercava, Herculano foi contemporâneo de um grande esforço de modernização da sociedade portuguesa, necessário face aos novos tempos, em que o império parecia destinado a reduzir-se a um pequeno e pobre país ibérico, sem poder efetivo e quase sem peso na balança da Europa.
Foi nesse momento crucial, de transição, que se dedicou, como nunca ninguém o fizera antes dele, à coleta de documentos do passado, à interpretação histórica e à composição ficcional. E o fez com um intuito duplo e muito claro: preservar a memória nacional e educar o público burguês que se formava na esteira das reformas liberais. A educação desse público tem um lugar central na obra de Herculano, pois se podem situar aí tanto as suas intervenções diretas na vida social por meio de textos panfletários e polêmicos, até a sua longa atividade à frente da revista Panorama, que era o órgão divulgador de uma Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis. Foi no Panorama que, ao lado de outros textos de caráter variado, foram publicadas as principais obras literárias do autor. O Bobo, por exemplo, só saiu em volume postumamente, em 1878, tendo circulado, durante toda a vida do autor, apenas nas páginas da revista e numa edição-pirata brasileira, de 1866.
     Para compreender melhor a unidade da obra de Herculano, vale a pena observar como ele - que foi simultaneamente o criador da ciência histórica e do romance moderno em Portugal - entendia o papel do romance histórico e sua relação com a história propriamente dita. Num texto de 1840, eis o que escreveu a respeito:

Novela ou História, qual destas duas cousas é a mais verdadeira? Nenhuma, se o afirmarmos absolutamente de qualquer delas. Quando o caráter dos indivíduos ou das nações é suficientemente conhecido, quando os monumentos, as tradições e as crônicas desenharam esse caráter com pincel firme, o noveleiro pode ser mais verídico do que o historiador; porque está mais habituado a recompor o coração do que é morto pelo coração do que vive, o gênio do povo que passou pelo do povo que passa. (...) Essa é a história íntima dos homens que já não são; esta é a novela do passado. Quem sabe fazer isto chama-se Scott, Hugo ou De Vigny, e vale mais e conta mais verdades que boa meia dúzia de bons historiadores.

      Ou seja, para Herculano, a novela histórica transmite verdades, até em maior grau do que a própria história, mas desde que apoiada por uma atividade prévia de pesquisa e conhecimen­to objetivo. E é exatamente isso o que ele vai tentar fazer na sua obra: ao lado de uma intensa atividade propriamente historiográfica, de que resultou a sua História de Portugal, vai dedicar-se a uma espécie de outra história, dirigida ao público em geral, a que atribuirá uma função educativa e um sentido social muito claro. Como se lê no primeiro capítulo de O Bobo, para Herculano os portugueses do século XIX, pobres, fracos, humilhados, depois dos tão formosos dias de poderio e de renome@ nada tinham de seu senão o passado. Era nele, portanto, na sua evocação, que deviam buscar a energia necessária para restaurar a nação. Ao romancista cabia, nesse quadro, a função de educador dos contemporâneos, por meio da evocação e da ressurreição sensível das épocas gloriosas. Era esta a sua missão, o seu dever, dizia ele:  Ano meio de uma nação decadente, mas rica de tradições, o mister de recordar o passado é uma espécie de magistratura moral, é uma espécie de sacerdócio.”
     Imbuído dessa idéia, Herculano vai publicar na revista Panorama suas três grandes novelas: O Monge de Cister (1841), Eurico, o Presbítero (1843) e  O Bobo (1843). Eurico trata do mundo visigótico, da origem mais remota do que um dia seria a civilização hispânica. Os dois outros textos, de momentos decisivos na história de Portugal: a ação de O Bobo situa-se na época de nascimento da nação, quando Afonso Henriques se prepara para formar o novo reino; e O Monge de Cister, que tem por subtítulo a época de D. João I”,  é ambientado na corte desse rei, que liderou, em aliança com a burguesia de Lisboa, no final do século XIV, a chamada Revolução de Avis.
     Do ponto de vista literário, O Bobo é uma típica novela histórica: um primeiro plano de intriga romanesca se constrói sobre uma evocação do passado distante, na qual o pitoresco dos costumes e ambientes vem, muito freqüentemente ao primeiro plano do texto. A trama de O Bobo, em que correm imbricadas uma história de amor cavaleiresco e uma intriga política palaciana, encontra seu ponto focal na figura que dá nome ao texto. D. Bibas, perfeita atualização do gosto romântico pelo grotesco, é o ponto de vista pelo qual se julgam as paixões e se desvendam os interesses em jogo naquele momento central da história portuguesa. É também, como já se notou, uma representação do povo oprimido pelo despotismo feudal, que o autor apresenta exercendo a vingança por anos e anos de opressão, vingança essa repleta de conseqüências políticas para a nação portuguesa. No mesmo plano alegórico, a ajuda que D. Bibas presta a Afonso Henriques poderia sugerir que a aliança entre o povo e o rei contra os senhores da nobreza territorial - que é própria da idade moderna -, também presidiria de alguma forma, naquelas eras recuadas, à formação de Portugal.
     Na leitura desta obra, como na de O Monge de Cister, encontramos o que há de mais acabado em termos de romance histórico em Portugal. E se hoje as suas personagens nos podem parecer excessivamente hieráticas, inteiramente possuídas por uma idéia ou por uma paixão - e por isso pouco verossímeis, nos nossos termos -, é justamente nessas cores carregadas que, sabendo ler, encontraremos o que de melhor e mais curioso o livro nos pode oferecer: a sua singular mistura de gosto gótico e vontade de ensinar, de busca do pitoresco e exacerbação sentimental, de evocação da realidade histórica e de tratamento idealizado e extremado da paixão amorosa. Enfim, em outras palavras, o que encontramos aqui é uma das melhores obras do ultrarromantismo em versão portuguesa.



[1] Prefácio a uma edição escolar do livro de Herculano, 1997.