quarta-feira, 20 de junho de 2012

Poesia Vogon - a terceira pior do universo


A TERCEIRA PIOR

[texto publicado originalmente no site Germina Literatura, 
atualmente fora do ar, e por isso, a pedidos, republicado aqui]


            Acabo de ver um filme notável. Intitula-se O Guia do Mochileiro das Galáxias. Um dos mecanismos do cômico é a ficção de um gerador de improbabilidades, um gerador aleatório de cenários e situações, que age de tanto em tanto. Outro é gosto pelo ridículo das situações inverossímeis e pelo nonsense.

            Não há nele, por isso, realismo, e o riso se produz pelo inusitado, pela falta de lógica e sequência e pelo inesperado das situações.

       Apenas no final insinua-se algum traço de sentido. Mas essa é justamente a parte mais fraca do filme, embora permita amarrar o feixe de absurdos – que nem por ser feixe deixa de ser absurdo, está claro.

            Entretanto, como leitor contumaz (por algum imperativo moral cuja origem ainda não identifiquei com clareza) de poesia contemporânea, deparei, para minha surpresa, no meio do dilúvio de improbabilidades, com algo que me pareceu menos improvável: a poesia vogon.

            Tratei logo, portanto, de buscar a poesia tal como teria vindo no livro. E o que achei foi o seguinte.

            Em inglês, é assim:

               Oh freddled gruntbuggly thy micturations are to me
               As plurdled gabbleblotchits on a lurgid bee.
               Groop I implore thee, my foonting turlingdromes.
               And hooptiously drangle me with crinkly bindlewurdles,
               Or I will rend thee in the gobberwarts with my blurglecruncheon, see if I don't!

            Em português, na tradução de Paulo Henriques Britto e Carlos Irineu da Costa:

               Ó fragúndio bugalhostro tua micturição é para mim
               Qual manchimucos num lúrgido mastim.
               Frêmeo implochoro-o, ó meu perlíndromo exangue.
               Adrede não me apagianaste a crímidos dessartes?
               Ter-te-ei rabirrotos, raio que o parte!

            Li e reli os versos em ambas as línguas. Não tirei muitas conclusões sobre o original, e terminei por acreditar ter entendido melhor a versão portuguesa. Ou porque meu inglês não seja bom, ou porque o tradutor tenha procedido a um simpático trabalho de adaptação, no interesse do entendimento do leitor. O mais provável, porém, é que eu não tenha entendido tampouco a versão portuguesa. Apenas teria sentido algum conforto porque me soou algo familiar. Era como se essa poesia, embora de outra galáxia, fosse ainda próxima.

            Não soube explicar, num primeiro momento, tal sensação de familiaridade, provocada por um objeto não identificado e ininteligível. Mas logo percebi a razão do sentimento: basta percorrer blogs e páginas do Facebook e livros de poesia contemporânea, para constatar a disseminação da poesia vogon entre nós. Ou é um caso de homologia: universos paralelos encontram formas semelhantes de expressão; ou é um caso de influência a partir de uma matriz.

            Creio que ambas as coisas se conjugam. De qualquer maneira, há vários desses poemas vagando pelo ciberespaço, dotados de variado grau de complexidade e de feiura, e me parece que são mais louvados pelos pares ou tutores os que menos sentido fazem, ou que mais coincidem com a matriz intergaláctica.

            Impressionou-me também o fato de que, quaisquer que sejam as diferenças objetivas, de forma e de tema, eles têm, embora soprados por matriz estrangeira ou avatares autóctones do gênero transgaláctico, um fundo nacional, que ao mesmo tempo adoça e reveste de pompa cerimonial o nonsense – produzindo o que poderia, sem modéstia, intitular-se a derradeira floração da grandiloquência balofa.

            Seja como for – autóctone ou importada –, dada a precedência que lhe atribui o famoso Guia, é minha opinião que não faz sentido denominar as sobrevivências dessa antiga poesia segundo algum modelo para o qual o sentido tinha importância. Isso seria uma traição à própria matriz dessa espécie de arte, além de um trabalho inútil. O nome correto é fácil e preciso, além de constituir um tributo à forma pioneira e de mais pura manifestação: vogon.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Entrevista - Comunità Italiana

Entrevista  
[a Marco Lucchesi, publicada com o título "Campos de algodão sob o sol da tarde", na revista Comunità Italiana, em dezembro de 2004]
-          Caro Franchetti: Gostaria de saber de sua origem italiana, de alguma influência, nostalgia e paixão, desde o quotidiano às leituras e o mundo. 
Minha tia Ana, cujos olhos azuis eram tão intensos quanto o seu sotaque, pode sintetizar a parte mais sensível do lado italiano da minha vida: emoção à flor da pele, nostalgia da pátria que deixou ainda criança e que, por isso, se apresentava mais como conceito e forma interna de sentir, do que como realidade perdida ou a reconquistar. Depois, o orgulho familiar da origem e do sobrenome, o apego à tradição e à cultura. Outra imagem recorrente: meu avô, colono, reunindo os camponeses iletrados para ler-lhes, junto aos filhos, romances de cordel.
Depois, em minha casa, a bela edição da Comédia, ilustrada por Doré, que dividia a estima paterna com os grandes poetas românticos brasileiros elegantemente encadernados; o hábito da disciplina intelectual, do amor ao trabalho e da observância da mais estrita frugalidade, compensada pelo derramamento sentimental e culinário dos domingos e dias santos. Até a minha adolescência, esse foi o sabor da vida. Um sabor muito italiano, mas tão entranhado, na pequena cidade de Matão, no ambiente da família, que só quando de lá saí para começar a vida adulta pude perceber que era uma particular herança e um jeito muito especial de estar no mundo.
-          Sendo você um dos grandes ensaístas brasileiros, com uma vasta erudição e uma fina sensibilidade, como se processou a sua formação e a sede de conhecer as coisas com essa intensidade e descortínio?
Minha primeira juventude, para o bem e para o mal, foi pautada pelo anseio de completude renascentista, que sempre foi o de meu pai. O gosto pela literatura, a valorização extrema do conhecimento prático, o gosto da especulação filosófica, o fascínio pelo método científico, o estudo da história religiosa, o valor da educação matemática, o amor da correção lingüística: foram esses os valores e ideais que, dentro das possibilidades, pautaram a minha formação familiar. Nas condições precárias de uma vida passada quase toda em pequenas cidades do interior do Brasil, as muitas enciclopédias, os vários livros de divulgação científica, as obras completas de escritores brasileiros e portugueses vendidos de porta em porta, bem como a velha Coleção Saraiva e toda a coleção do Clube do Livro foram as peças do mosaico que foi a minha formação. O solo sobre o qual fui construindo como pude, até o período da faculdade, a imagem do mundo e de mim mesmo. Na faculdade, a descoberta de uma imensa biblioteca, na qual podia passar dias e dias, sem qualquer limite, foi experiência de puro deslumbramento. A partir daí, com todo o risco da dispersão, nunca mais deixei de seguir o impulso de leitura do momento.
-          Por outro lado, a poesia parece ter aberto em você um sem-número de portas e janelas, e de modo especialíssimo no campo do haicai, de que você se tornou, além de crítico e historiador, um fino poeta e tradutor. Como se deu esse percurso?
Também o gosto pela poesia tem origens familiares. Meu pai escrevia sonetos e crônicas em jornais. E muitos outros seus colegas também. Matão era uma cidade quase inteiramente italiana, na qual a habilidade poética, a oratória, a demonstração de cultura letrada de modo geral era algo muito valorizado.
O interesse pelo haicai provém de um segundo momento. Daquela cidade, depois de alguns anos, fomos para Guaíra, na fronteira com Minas Gerais. De uma cidade italiana para uma cidade de intensa colonização japonesa. Quase todos os meus amigos e amigas eram japoneses. As festas de colheita e casamento, o contato com os pais das namoradas, que mal falavam português (ou não falavam), os bailes no clube da colônia, tudo isso gerou, eu creio, uma simpatia que pôde, muitos anos depois, quando me dediquei seriamente ao estudo do japonês, abrir-me algumas portas para a compreensão dessa forma de poesia tão delicada e tradicional, à qual dediquei bons anos de vida. O haicai foi, para mim, mais ou menos como uma busca nostálgica de um período no qual a vida tinha o dourado das espigas maduras de arroz e o brilho dos campos de algodão sob o sol da tarde.
-          Camilo Pessanha. Antonio Nobre. Eça de Queiroz. Três nomes, dentre outros, de sua predileção, sobre os quais você vem dedicando boa parte de sua vida. Em que medida a literatura portuguesa também é uma de suas capitais afetivas...
Eça de Queirós era um dos autores da infância. Numa edição em três volumes, da Lello, a sua obra completa acompanhou a minha vida, na estante paterna, e ainda acompanha, agora na minha própria estante.
Camilo Pessanha, cujos versos difíceis e belos foram uma obsessão desde os primeiros anos de faculdade, atraiu-me também pela vida no Oriente, pelos escritos sobre a China e pelas especulações sobre a escrita ideográfica.
Se a porta de entrada na literatura portuguesa foi Eça de Queirós, Camilo Pessanha foi a torre desde a qual fui descobrindo outros pontos de interesse, com ele relacionados de alguma forma: Wenceslau de Moraes, o cronista do Japão, Antonio Nobre, Antonio Patrício, Eugênio de Castro e tantos outros.
Eça de Queirós também me conduziu ao encontro de outra paixão portuguesa, à qual dediquei vários anos de estudo: a imensa e magnífica obra do historiador Oliveira Martins.
-           Mas vejo, em sua obra, a recuperação de monumentos e documentos. Por exemplo, um nome pouco lembrado, o de B. Lopes, a quem você dedica um belo artigo, e o evoca na condição de dândi mulato...
Quando, no começo da minha carreira na Unicamp, retomei sistematicamente a leitura da infância, a dos poetas românticos brasileiros, deparei-me com um veio novo, ainda não descrito nem analisado: a poesia pornográfica, satírica e de nonsense da segunda geração romântica. Descrevi, num artigo que prezo muito, o maravilhamento pela pujança criativa de autores que, não fosse essa produção, seriam apenas medíocres: Bernardo Guimarães, Getulino e José Bonifácio, o Moço. Desse ponto de partida decorreu o meu interesse por todos os poetas de gosto irônico ou satírico, esquecidos nas histórias literárias mais conhecidas. Prosseguindo na pesquisa, deparei com B. Lopes, que é um gênio, um poeta de grande interesse, mal lido e pior avaliado. E como ele há outros, fora dos enredos principais das histórias nacionalistas, que aguardam um olhar aberto e desarmado.
-          É inevitável ouvir – ainda que  em breves palavras  - o que você definiu como sendo compaixão e nostalgia em certa prosa lusitana...
Quando me dediquei a estudar a obra de Camilo Pessanha, eu o fiz orientado pela leitura dos textos de Oliveira Martins, que pertenceu à geração anterior à sua e cuja visão da história de Portugal marcou profundamente os autores dos anos de 1890. Pessanha é já o nostálgico de lugar nenhum. A pátria, o espaço sagrado da origem lhe aparece como um grande bem perdido. Ao mesmo tempo, esse lugar perdido é um lugar idealmente construído a partir da distância, da percepção do deslocamento físico, temporal e afetivo. Não há retorno possível. Há idealização de retorno e há, constatada a sua impossibilidade, o exercício do furor frio e desagregador da melancolia. No livro que dediquei à obra do poeta, tentei verificar como essas duas atitudes líricas, a que chamei “poéticas” – a nostalgia e a melancolia – organizam os temas e as palavras do eu que nos fala nos poemas.
-          O que mais impressiona em seu trabalho é a multiplicidade dos saberes. Uma visão que se entende, ou que se busca, leonardiana, aberta, curiosa, inquieta. Como você explicaria essa espécie de sentimento-idéia que o anima?
A explicação, eu creio, está na formação familiar. Mas o que me alegra é poder ter me dedicado a tantas coisas importantes para mim e para as pessoas que me rodeavam. Nesse sentido, não sou, Marco, um acadêmico típico. Não passei a vida aprofundando o conhecimento sobre um tema ou um autor, como fazem tantos colegas eruditos que admiro muito. Fui mudando de objeto de estudo ao sabor da curiosidade, da paixão, do gosto ou da obsessão por resolver um problema cultural ou pessoal. O que não quer dizer que não me tenha dedicado intensamente a cada um desses objetos. Respondida, porém, a questão que me moveu ou esboçada de modo consistente a resposta que buscava, já me atraía um tema ou problema correlato ou remotamente ligado ao que me havia absorvido até ali. Se, do ponto de vista da academia, construí uma carreira que pode ser vista como algo diletante, do ponto de vista do prazer do estudo e da descoberta, que é o único que me importa, pude construir um percurso que esteve sempre colado à minha própria vida e à pulsação dos meus interesses intelectuais. É um privilégio, e creio que ter trabalhado esses anos todos numa universidade tão flexível e desburocratizada quanto a Unicamp foi uma grande sorte.
-          Acha que a Universidade está mudando, ou buscando mais intensamente e acolhendo esse caminho leonardiano, ou será preciso ter cuidado  com as tenazes do específico e do ultraespecializado. Ou as coisas devem e merecem coincidir?
Penso que a universidade tem deixado de ser universidade. O que se vê hoje é um processo perverso, que consiste em submeter todos os campos do saber às regras do campo dos saberes tecnológicos. Exigir, por exemplo, que um aluno de 21 anos faça uma tese de mestrado em literatura em 24 meses é um disparate. E fazer que um aluno de qualquer ciência humana se torne doutor em 36 meses é uma insanidade. Isso já produziu um rebaixamento notável da produção acadêmica em ciências humanas. Da mesma forma, a avaliação dos professores se faz hoje numericamente: quantos trabalhos publicados, quantos congressos, quantos estudantes. O resultado imediato é a perda de consistência dos trabalhos em ciências humanas. O resultado de médio prazo, que já é muito sensível, é a perda de poder das disciplinas humanísticas no interior da universidade. Sem um papel e um lugar predominante das ciências humanas não há universidades, há escolas de tecnologia, centros de formação de técnicos. É isso que a universidade está virando no Brasil. Para um professor que inicia hoje a vida universitária, um caminho como o meu, de amadurecimento lento e de múltiplos interesses, é a cada dia menos possível.
- Finalmente, no campo editorial, onde você milita há alguns anos,  gostaria de conhecer  sua atual, à frente Editora da Universidade de Campinas...
            Há dois anos fui designado para dirigir a Editora da Unicamp, que, depois de um período bastante notável, passara por quatro anos de rápida decadência. Durante esses anos dediquei todo o meu tempo à obra de reconstrução. Isso significou ter de aprender princípios de administração, contabilidade e comércio, bem como implicou um olhar por dentro do mercado editorial brasileiro. Se é verdade que pude aprender muito, nesse período, também é verdade que jamais tinha pensado em aprender tais coisas ou gerenciar os problemas que tive de gerenciar. Neste momento, felizmente, a Editora começa a caminhar pelas próprias pernas e posso gozar do que há de bom na atividade, que é o contato com os autores, a análise das obras e o planejamento de ações culturais.

Três livros de poesia - 2001


[Jornal 8]

Três livros de poesia - 2001


[texto publicado em 2001, no Suplemento Literário de Minas Gerais][1]



Três livros de poemas recém-lançados – Trívio, de Ricardo Aleixo, Zona Branca, de Ademir Assunção, e A Sombra do Leopardo, de Cláudio Daniel – permitem verificar o bom nível da produção poética brasileira atual. Ao menos, na vertente radicada na Poesia Concreta e no paideuma por ela construído no Brasil. São livros bastante diferentes entre si, mas que compartilham algumas características importantes.
Penso que as qualidades principais do primeiro deles, A Sombra do Leopardo (de Cláudio Daniel), são a unidade de dicção, o nível geral dos poemas e a estrutura em que se arrumam. Agrupados em oito seções, os 33 poemas do livro se organizam segundo um desenho sugestivo que inicia com a invocação de figuras tutelares, que são também caminhos, possibilidades de fazer frente ao desejo e à dor (Dante, Nagarjuna, Chuang-Tzu, Schopenhauer e outros), prossegue pela evocação de lugares exóticos, distantes no tempo e no espaço (Tibet, Grécia, Egito...), que parecem funcionar como espaços de plenitude sensória e de iluminação, e deságuam no desfecho nomeado com o título do livro dos mortos tibetano, o Bardo-Thödol.
Se tivesse de apontar apenas um poema que sintetizasse a poesia deste livro, o escolhido seria aquele que contém a expressão que dá nome ao conjunto. Trata-se de “Dante”, poema central para o entendimento do desenho do volume, pois, com muita distância, é uma glosa da passagem da Divina Comédia em que as três feras (a onça, entre elas) impedem o prosseguimento do caminho pela selva e obrigam à descida ao Inferno.
Trívio, de Ricardo Aleixo, é de todos o mais imune à “angústia da influência”, que Bloom vê como o motor do novo em poesia. Pelo contrário, o seu livro não só deixa evidente a filiação concretista, mas também a celebra. Por esse lado, os momentos mais fortes são aqueles em que adota, com competência emulativa, procedimentos que caracterizam a poesia de Augusto de Campos. É o caso do encarte “Brancos”, e é também o caso de “Canção noturna do fim dos peixes” e “Totem para Smetak”. Por isso mesmo, dispensaria o posfácio, que apenas declara, sem brilho nem acrescentamento, aquilo mesmo que o volume inteiro evidencia.
            Entremeada a essa parte ostensivamente concretista, em que a repetição dos processos e até da tipologia do mestre incomoda e acaba criando um clima retrô, temos os poemas que constituem o melhor do livro: aqueles em que a espacialização discreta se choca com as cadências regulares do verso português ou não é obstáculo à emergência de uma linguagem muito coloquial. “Loa da menina deusa”, “Numa festa”, “Mesmo esta, agora, é” e “Ela aquela” têm um ritmo cantante e visual, que cristaliza um momento de fala, uma cena, ou uma sensação. Neles brilha alguma coisa nova, distante da ecolalia que dá o tom de vasta parcela da produção atual, filiada na mesma vertente concreto-cabralina. São esses poemas, em minha opinião, que destacam o livro e singularizam a dicção do seu autor.
Zona Branca, de Ademir Assunção, parece-me o mais eclético dos três, tanto no que diz respeito ao leque de recursos compositivos, quanto ao elenco de referências culturais. Também me parece o mais irregular, no nível da realização individual dos textos, pois o livro oscila entre poemas de alta tensão poética e outros apenas sofríveis.
Herdeiro programático da antropofagia oswaldiana, o poeta declarou numa entrevista recente à revista eletrônica Balacobaco: “Minha dentição é boa: mastigo tudo  o  que  me interessa:  e  isto  vai de Dante Alighieri  a  histórias  em quadrinhos.” E os poemas também vão desde o tom (irônico?) de auto-ajuda de “Zensider”, até a estilização do velho poema de protesto, em “Anti-ode aos publicitários (de um guerrilheiro morto em combate)”, passando pelo poema concreto e pelo gosto kitsch de versos como estes, que encerram o poema “A lágrima de Van Gogh”: “& uma única lágrima / guardada / na caixinha de jóias”.
Dentre os resultados vários dessa mastigação generalizada, os poemas descritivos, compostos por montagens à maneira de haicai, me parecem o que há de melhor: “Assombro em branco e preto”, “A queda em preto e branco”, “Desocupado”, “try to see again...” e “vento da madrugada...”. Do mesmo alto nível me parecem “Peixes de luz” e “In a silent way” e, especialmente, “Espelho d’Água”, momento singular de concentração poética, no qual a composição justapositiva se faz por aglutinação em torno de uma imagem forte.
A capacidade de criar imagens impressivas e justapô-las em rápida sucessão responde, aliás, por alguns dos melhores momentos de Zona Branca. E também pelo fato de ser raro o poema do livro que não acabe redimido, ao menos parcialmente, pelo saldo final da construção imagética. É o caso, por exemplo, de “Olhos elétricos”, que consegue se manter em pé, mesmo contendo este dístico: “pássaros tristes entre cães aprisionados / enfim vivemos num cenário”.

Nascidos nos primeiros anos da década de 60, Aleixo, Assunção e Daniel publicaram pela primeira vez em volume no início dos anos 90. Não são, portanto, estreantes, mas sim poetas amadurecidos, em cujo texto já se podem avaliar as qualidades plenas e os eventuais limites da sua arte. O que é comum aos três diz respeito tanto a essas qualidades, quanto a esses limites. Em primeiro lugar, o caráter reflexivo e metapoético da sua prática literária; em segundo, a competência técnica, seja no domínio do corte do verso breve, seja na aplicação de recursos composicionais herdados da vanguarda concretista; por fim, é comum a todos a exibição de um eclético repertório de cultura.
Poetas-críticos, assinalam a procedência ou a inserção cultural de tópicos dos seus poemas em subtítulos ou notas de sabor acadêmico. Daniel, por exemplo, além de escrever frases como “a poesia diz tudo e não quer dizer nada e seu nome se escreve no vazio da página, sítio de possíveis reflexos”, também esclarece, em subtítulos a natureza, o gênero ou a fonte do seu texto: “Tse-yang, pintor de leopardos (retrato apócrifo), “Simão do deserto (alegoria), “Dante (Inferno, I, 31-42). Aleixo é igualmente didático, em notas de final de volume: Marcial entre os kuikúro é uma adaptação mais-que-livre de um mito dos índios Kuikúro recolhido pela antropóloga Bruna Franchetto”; “Ñamandu baseia-se vagamente em um mito dos índios guaranis, do Paraguai, recolhido pelo antropólogo Pierre Clastres”...  E também o é Ademir Assunção, que anota ter sido “inspirado no filme Paris, Texas, de Wim Wenders” um determinado poema, e que um trecho de um outro “faz alusão ao seqüestro de Baco narrado por Ezra Pound no Canto 2 do livro The Cantos, correspondente a um episódio das Metamorfoses, de Ovídio”.
Tais indicações configuram uma tensão entre os escritores e o público previsto, que se biparte entre os leitores que poderão reconhecer e julgar a pertinência do referencial “erudito” e os que ainda precisam ser nele instruídos. Isto é, estes escritores, por um lado, já não se apropriam dos textos centrais da tradição ocidental como matéria comum, de conhecimento generalizado. Por outro lado, tampouco parecem acreditar que mitos e lendas sejam matéria a ser incorporada sem registro, por conta da sua significação universal. Pelo contrário, em qualquer caso, inclusive nas referências à cultura pop, é sensível o cuidado de indicar explicitamente a fonte, e, se for o caso, o grau de desvio em relação a ela. Por fim, não parece que elejam, como destinatário do seu discurso poético, o leitor visado pela lírica de extração romântica: o homem comum dotado de sensibilidade e de boa vontade. Dizendo de outra forma: as notas explicativas, os títulos e os nomes eruditos incorporados no texto dos poemas e os vários procedimentos de citação e alusão podem ser lidos alternada ou combinadamente como atestado de cultura, gesto de intuito educativo e celebração totêmica.


No prefácio ao livro de Claúdio Daniel, Eduardo Milán o define de uma maneira precisa, que me parece válida também para os dois outros autores. Diz que se trata de um “lírico cultural”. Por essa expressão, que utiliza como elogio, Milán entende uma relação “dinâmica e evidente” com a “cultura”, a ponto de fazer equivaler “impressões de leitura” e “intuições líricas”.
Quando li o conjunto dos três livros acima referidos, e em especial o de Daniel, foi justamente o caráter “evidente” dessa relação, bem como a ostensiva apresentação das “impressões de leitura” o que me incomodou.
Ademir Assunção, por sua vez, na entrevista já referida, declarou que “estamos sendo bombardeados por milhares de informações o tempo todo e nossa mente funciona cada vez mais como uma ilha de edição”. Também declarou, claro, que não sofre “aquela  neurose  da ‘angústia da influência’, que tanto preocupa um crítico  como Harold  Bloom.”
Para repetir nestes termos a parte da minha impressão de leitura que foi desfavorável, diria que a “ilha de edição” tem um funcionamento às vezes pouco sutil e que a ausência da “angústia da influência”, que ela supõe, faz com que uma porção significativa de cada um desses três livros se aproxime perigosamente do pastiche estilístico. Talvez por isso, às vezes me assaltasse a impressão desagradável de que partes dos três volumes pareciam escritas por um mesmo supra ou protopoeta, misto de João Cabral, irmãos Campos e Leminski, constituído por combinações variáveis desses elementos. O mesmo suprapoeta que também teria escrito muita da poesia reunida na antologia Esses poetas e alguma da que compõe Outras praias.
Entretanto, passado esse primeiro momento e o travo dessa constatação, o que fica mesmo na memória da leitura é o que cada um dos livros tem de melhor, de mais característico e bem realizado. E que, embora não seja muito, também não é pouco.


[1] Onze anos depois, relendo esse texto, percebo que minha percepção da qualidade relativa dos volumes se alterou. Mas não se alterou o essencial do que vai no corpo do artigo. Por isso achei que valia a pena transcrevê-lo neste espaço. E também porque se trata de uma resenha referida aqui e ali, e de difícil acesso nas páginas do jornal onde foi originalmente publicada.

domingo, 17 de junho de 2012

O pesadelo da razão – Histórias prováveis, Marco Cremasco

O pesadelo da razão – Histórias prováveis, de Marco Cremasco*
                     

   Marco Cremasco era já bem conhecido como poeta, tradutor e diretor de uma revista de poesia quando surpreendeu os seus amigos e leitores com um belo romance histórico, premiado pelo SESC em 2003 e finalista do Jabuti de 2005: Santo Reis da Luz Divina.
   Quatro anos depois, publica este volume, com 11 histórias intituladas “prováveis”.
   O que seriam histórias prováveis? perguntará o leitor – como eu mesmo me perguntei, quando tive notícia do livro.
   Como o autor é um cientista respeitado, autor de livros também na área da engenharia química, a primeira tentação é imaginar que se trata de um livro experimental. Não no sentido que se dá a essa palavra em arte, porque a arte experimental nada tem a ver com a ciência experimental, uma vez que os eventuais resultados que obtém só servem àquele livro no qual eles são experimentados ou à identificação do estilo do autor que os experimentou pela primeira vez. Mas experimental no sentido científico: histórias que podem ser provadas, histórias comprováveis.
   Basta, entretanto, que o leitor percorra as primeiras páginas para verificar que não deve ser esse o sentido da palavra que nomeia o volume e qualifica as narrativas, uma vez que o título do livro é também o título da primeira história, e nesta se juntam fragmentos escritos por um louco, redigidos talvez sob o impulso de notícias de jornal e tendo como método de escrita uma espécie de associação de palavras.
   Não sendo desde logo demonstráveis – pensa o leitor – talvez estas histórias se denominem “prováveis” no sentido de apresentarem situações ou enredos com possibilidade de acontecer. Mas essa suposição é também desmentida pelos fatos, ou melhor, pelos contos, pois “A paixão segundo qualquer pecado” é nada menos do que uma alegoria moral, no velho estilo.
   Se o leitor ainda não desistiu de procurar um sentido para o titulo, resta-lhe ainda uma possibilidade, antes de abandonar o dicionário e o desejo de interpretar.
   Nesse último sentido, as histórias seriam prováveis porque a sua inaceitabilidade ainda não foi cabalmente demonstrada. É uma das definições dicionarizadas. E daria conta de partes do livro, pois ainda não foi completamente demonstrado, por exemplo, que uma onça não possa viver despercebida na cidade grande, que um sujeito que se chama Cravo não possa relacionar-se exclusivamente com pessoas que tenham nomes também extraídos do reino vegetal, ou que os animais não possam organizar-se em assembléia e produzir longos discursos que se assemelhem a bem conhecidos discursos humanos.
   Mas já aqui estamos falando de outra coisa: seriam prováveis essas histórias porque especulariam sobre o funcionamento da sociedade e da psique humana? E seria ainda provável uma história na qual a lógica apanha da narrativa, porque ela traz, sobre os mesmos pontos do enredo, asserções que podem ser lidas como contrárias? Nesse caso, o que quereria dizer, então, “prováveis”? Seria somente uma provocação, forçando a leitura realista de textos ostensivamente não realistas? Ou seria um jogo irônico do autor com uma expectativa de leitura em alta nestes tempos nos quais o documento, o testemunho e o relato jornalístico ganham grande espaço no campo literário?
   E como o nome do livro é também o nome da primeira história, na qual o narrador afirma transcrever os fragmentos do caderno de um desvairado, talvez as histórias prováveis sejam apenas as histórias possíveis de escrever numa sociedade louca, por um louco.

   Sob a efígie ambígua da loucura, por conta do título do livro ser o da primeira história, movem-se as demais e se contaminam com a sua atmosfera, de modo que o leitor experimenta ali uma espécie de pesadelo da razão. Pensei primeiro em “sono da razão”, por conta da gravura de Goya, “O sono da razão cria monstros”, mas depois vi que o nome melhor seria o que Ernest Pawel usou para a biografia de Kakfa: o pesadelo da razão.
   Porque não se trata do adormecer da razão, e sim do seu funcionamento errático e exacerbado, que se manifesta como sensível desígnio de representação do mundo atual.
   O mundo das “histórias prováveis”, entre outras coisas, é como uma imagem refletida num espelho irregular: a distorção torna ridículos os traços, irreconhecíveis os detalhes, mas mantém identificado o objeto que está no reflexo.
   A “ratoria” invadida em “A invasão dos ratos” não só parece repercutir a penúltima invasão da reitoria da Unicamp (quando os estudantes estavam mascarados), mas prenuncia com a última, produzida depois do livro estar na praça (p. 68). A ficção burlesco-científica de “As leveduras” tem este trecho:

Toda área agriculturável destinada a feijão, arroz e outros gêneros alimentícios foi direcionada à plantação da cana-de-açúcar. No começo, houve aceitação; hoje vive-se em sua função. (...) A terra está explorada nos três cortes anuais de cana. Planta-se cana a todo custo. Vive-se por ela. Hoje é o dia de hoje; o amanhã será consumido na perspectiva do desemprego ou do trabalho forçado. Não há saída, pois o país está pobre e dominado por biomassa e destilarias de álcool. (p. 56)

   Essas palavras poderiam ter sido retiradas de um discurso de Fidel Castro contra o projeto do etanol. Ou poderiam ser ouvidas em uma viagem pelo interior do país. Ou ainda, ter sido colhidas diretamente num jornal qualquer.
   Mas ao mesmo tempo, e em contraposição a períodos graves como esse (no qual apenas um pequeno trecho rimado destoa da platitude discursiva), domina essas histórias o gosto (e talvez a obsessão) do livre jogo lingüístico, que em alguns casos faz com que o texto se aproxime da poesia, devido ao gosto da rima e da paronomásia, da enumeração exaustiva e algo caótica, do choque dos registros do discurso e da construção por palavra-puxa-palavra. Como neste trecho de “A onça-parda”:

Os homens reclamavam da má sorte, da morte do dia que não deu em bom para a pescaria. Nada havia nas caixas de surpresa naquela represa de insolação superficial. Na face descorada das putas, os garis varriam bitucas e sugavam salivas dos bordéis.

   Não se trata, porém, de livre-associação. Não há sombra de surrealismo, ou melhor, do método surrealista, que busca fazer aflorar aquilo que não tem controle ou razão.
   Pelo contrário, o controle da razão em pesadelo se afirma todo o tempo, principalmente por meio do caráter ostensivamente alegórico dos textos.
   A alegoria é uma forma da totalização do obscuro, do fragmentário. Ou é uma forma de fragmentar e obscurecer momentaneamente uma totalidade, para melhor revelar o conceito, quando a decifração se apresenta.
   A alegoria consiste em remeter um conjunto de elementos a outro, que funciona como a sua chave, que o totaliza num sentido pleno.
   As partes de um discurso alegórico que não remetem à chave são desprezadas na decifração. Assim, usualmente não importa a forma dos artelhos da estátua da justiça, nem as suas feições, nem o modelo da túnica.
   Ora, neste livro, os procedimentos mais perturbadores são os que, por dentro, corroem a alegoria. O primeiro consiste em tornar tudo plano, sem hierarquia, produzindo uma alegoria obscura, que, pela impossibilidade de totalização, namora o caos. O segundo consiste em chamar a atenção para aquilo que, na alegoria, não faz parte do sentido principal, produzindo rastros de sentido, que atravessam o texto e brilham em frases soltas, cenas esboçadas, para logo se perderem em non sense, ostentação de perícia, comprazimento na facilidade da composição e, principalmente, na ostensiva regressão às formas populares do apólogo e da fábula infantil que dominam o fluxo narrativo.
   A máquina de produção de sentido nessas histórias funciona do modo vário, mas o princípio da construção lingüística, que é o que dá o tom especial dessas onze histórias reunidas em volume, está sempre em evidência.
   O autor parece empenhado em construir fábulas, alegorias e apólogos que possam ser lidos como críticas de uma situação-limite a que chegou a humanidade, que explicitam mesmo o seu caráter de parábola. Mas essas parábolas terminam por se colorir, por força de um tom geral curiosamente infantil – que produz o humor pelo tratamento lúdico da linguagem e das situações narrativas –, de uma cor cambiante, entre a melancolia, a ironia resignada e o sarcasmo.
   De modo que, ao final do percurso da leitura, sobressai não o gesto alegórico ou efabulador, mas o quase agressivo trabalho de linguagem, que às vezes parece, de tão ostensivo, inconveniente.
   E é então que, ao fechar o livro e voltar a olhar para capa o leitor pode aventar  outra explicação para o título. Já não se trataria de uma afirmação, isto é, de dizer que as histórias são prováveis. Agora, um sentido dubitativo pode recobrir o título enigmático: são prováveis histórias. No sentido de que não é certo que sejam mesmo histórias.
   São, por um lado, histórias, os textos que o autor reuniu nesse livro. Mas também são, em medida vária, algo entre a poesia, a piada, a fábula infantil e o conto. Uma forma mutante, larvar, intermediária, que não é bem uma coisa, nem é bem a outra.
   É essa corrosão da forma que o livro afirma. E é nela que reside o seu caráter singular: ele nos traz quase-alegorias de quase-vidas; apresenta-nos, dissolvidas num riso amargo e regressivo, as efabulações possíveis num tempo e numa sociedade cada vez mais improváveis.


* Texto lido no lançamento do livro, no dia 24 de maio de 2007, na FNAC Campinas.

sábado, 16 de junho de 2012

Sete contos de fúria - resenha


[Jornal 7]

A fúria de Camões[1]


sobre Sete contos de fúria, de António Vieira (Ed. Globo, 2002)


           O título deste volume pode levar a engano sobre o que há nele. É que os conteúdos afetivos não aparecem ali em estado bruto. A racionalidade não parece prestes a ceder a um impulso que não pode suportar; nem a superfície da linguagem parece agitada por alguma intuição terrível. Pelo contrário, a razão é soberana ao longo do volume. O trabalho de escrita exibe cuidado construtivo e busca voluntariamente um registro anti-realista, que força às vezes a chave alegórica. Nas personagens tampouco há traços comuns de constituição associados à paixão que dá nome ao conjunto. E mesmo as epígrafes que abrem o volume e cada um dos contos sugerem uma escrita da espécie da glosa, isto é, do desenvolvimento exemplar de uma frase ou idéia alheia.
A fúria que denomina estas histórias é de outra ordem. Os contos são vaticínios, e a referência, num autor português, é explícita: a fúria que Camões pedia para si, “grande e sonorosa”, contraposta à “frauta ruda” e à “agreste avena”. O épico, aliás, é uma denominação que dá conta de importantes características desse livro, quais sejam a elevação da linguagem e o anseio de universalidade dos temas. Nesse sentido, adaptando as recusas camonianas, sua narrativa pode ser vista como um contraponto seja à “agreste avena” da narrativa centrada nas vicissitudes amorosas ou na apresentação de uma irredutível individualidade; seja à flauta rude do neo-realismo, que tem vendido bem em sua versão suburbana de testemunho da monstruosidade social.
Neste livro, quase não há “interioridades”. Tudo é amplamente iluminado, como é próprio da épica, e cada pormenor remete ao universo dos grandes textos e temas da tradição ocidental. E os nomes estranhos, as paisagens exóticas e minimalistas, as situações mais que improváveis combinam-se, numa linguagem ostensivamente trabalhada, para “desrealizar” as cenas e enredos. É certo que a presença de monstros e deuses materializam o tema do poder desmesurado e da opressão. Mas como não há, por princípio, representação realista da vida social, o foco de interesse é a percepção dos intertextos, alusões e símbolos.
A leitura do volume não é, por isso mesmo, pacífica. As histórias têm um desenvolvimento arrastado, que as faz parecer mais longas do que são. Também é perturbadora a unidade da linguagem e o princípio compositivo, que é a repetição, em variações cumulativas, de uma imagem ou conceito básico. Qualquer que seja o narrador e a situação narrativa, as frases são sempre cadenciadas (às vezes em metro regular), a adjetivação é saturada e as comparações e as metáforas descritivas, abundantes.
Do ponto de vista temático, os contos são ensaios sobre o divino. Melhor dizendo, sobre formas de ocupação, na geografia mental, do lugar reservado à divindade. Esse lugar, subitamente vazio, indignamente preenchido ou em transformação, é o fio que os une. No primeiro deles, um cientista judeu descobre, por meio de um supertelescópio, a sombra do cadáver de Deus, morto ao criar o universo. No último, o falo decepado e indestrutível de Osíris é descoberto no deserto e, após a tentativa frustrada de um grupo de iniciados, que tenta recompor a integridade do deus, desaparece nas águas do Nilo. O nome do primeiro conto é “O Grande Luto”. O do último, “A Restituição”. Entre esses dois extremos, estendem-se as modulações do tema da perda e da impossibilidade de substituição do bem perdido.
Na maior parte das histórias, o paganismo fornece a base dos nomes e dos enredos. Delas, a melhor me parece ser “Eôs”, uma versão da fábula grega. Como se sabe, apaixonada pelo jovem, a deusa Aurora obteve de Zeus a imortalidade do amante, Títonos, esquecendo-se, porém, de lhe garantir a eterna juventude. Com o passar do tempo, Títonos reduziu-se a uma forma encarquilhada e repulsiva, terminando por metamorfosear-se em cigarra. Na versão de Vieira, o cenário é meloso, quase uma recriação olímpica de Hollywood. O que a redime é a destruição da verossimilhança. Exemplos: Eôs negocia com Zeus pelo telefone (um aparelho modelo belle époque, aliás) o destino de Títonos; este passa suas horas de tédio contemplando fotografias com uma lupa; Zeus, que no conto se chama Suze, é um inescrupuloso industrial do ramo das armas de longo alcance; Eôs, em paga do veneno que livrará Títonos da vida eterna, se oferece a Suze como prostituta de luxo, servida por uma limusine. As quebras de expectativa não resultam, porém, numa adaptação modernizadora do mito grego, pois as tensões produzidas pelos anacronismos violentos permanecem irresolvidas. Afirma-se assim um intuito de paródia cruel, que contamina a leitura e justifica o registro algo piegas.
Nos melhores momentos, este livro exibe o brilho intenso de uma ironia refinada e corrosiva. Nos piores, a impotência da amargura vertida em simbologia mais ou menos evidente. O tom geral do livro talvez pudesse ser resumido no título da primeira história, “O Grande Luto”. Mas o desenho do volume, que termina na história do falo de Osíris, bem como o esgar de riso que se insinua em episódios como o dos amores de Eôs, mostram que a paixão que preside ao conjunto é um luto específico e mórbido: a melancolia. É dela que nasce o furor enunciado no título: o furor frio, lógico e estático, que dá força e justifica tanto a opacidade da linguagem ornada e alegórica, que flerta com o kitsch, quanto as quebras de verossimilhança, que inviabilizam a leitura realista ou a ingenuidade reverencial.
Com vários pontos altos, os “Sete contos de fúria”, entretanto, formam um conjunto desigual. Se alguns são ótimos, como “Eôs”, outros são apenas razoáveis, como “Vida e morte de Argos”, que glosa, num enredo plano, o velho tema da relação homem-poder-máquina num futuro indeterminado. Nesse caso, a ausência de paródia faz com que as características da escrita do autor revertam em saturação simples, gerando desinteresse.
Em suma, este livro de Antonio Vieira tem um duplo apelo e se move numa zona furta-cor. Se o leitor se aperceber da natureza da fúria específica que o organiza e atentar para a sua permanente atuação em todos os níveis textuais, não deixará escapar o que há de novo e vivo no conjunto das histórias. Caso contrário, só lhe restará recusar a leitura, ou então sucumbir à sedução do alegorismo mais ou menos fácil, que interpela diretamente uma “natureza humana” sem tempo nem espaço.


[1] texto publicado na Folha de São Paulo, em 14 set. 2002

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Nota: O voo noturno das galinhas


Nota de presentação do livro  
O voo noturno das galinhas
de Leila Guenther
publicado em 2006



       Os textos reunidos neste livro, mesmo os mais curtos, são histórias completas. Ou talvez fosse mais exato dizer que são gestos completos de linguagem, dotados da extensão apenas necessária para que se patenteie o seu sentido e se perceba o corpo do qual procedem e que os dinamiza.
       Não obstante, o leitor logo perceberá que não tem diante de si uma mera coletânea de contos e minicontos, mas sim um conjunto significativo, dotado de uma secreta arquitetura, que, sem prejuízo da autonomia de cada um deles, os reorganiza e ressignifica como momentos autônomos de um desenho amplo, cujo vetor e sentido só se percebem ao final da leitura.
      A coerência estilística também reforça a unidade do conjunto: moldados com mão leve, mas de grande firmeza, os vários textos aqui reunidos exibem todos uma escrita precisa, que não faz alarde do trabalho de depuração, nem exibição de pirotecnia narrativa.
     Contida e elegante, a linguagem de Leila Guenther não é, entretanto, despida de relevos e surpresas, que se manifestam a cada passo, sob a superfície polida do fluxo narrativo. Nesse universo minimalista, um torneio de frase, um advérbio ou a escolha precisa de um vocábulo bastam para testemunhar e trazer subitamente para primeiro plano a massa de energia e os movimentos profundos que se cristalizaram, em seqüência, nessas narrativas breves.
    A sensibilidade ao mesmo tempo delicada e agônica, combinada à linguagem correta e ao tom confessional, faz assim de cada história desse livro um momento tenso, no qual a energia aparece contida, mas prestes a estalar os limites que o narrador aceita ou taticamente se prescreve. Como se cada uma delas fosse uma mola, imóvel porque presa por um fio.

sábado, 9 de junho de 2012

Camilo Pessanha e a gruta de Camões


Pessanha e a gruta de Camões[1]


                                                                                                              



               Uma das últimas incursões de Pessanha na escrita foi uma conferência que pronunciou sobre Camões, por ocasião do dia nacional português, o 10 de junho, em 1924 – menos de dois anos, portanto, antes da sua morte, que ocorreria em 1o de março de 1926.
               Intitulada “Macau e a gruta de Camões”, aborda uma questão da maior relevância para o poeta: as condições de existência e manutenção da capacidade poética no exílio.
               Não são muitos os textos em prosa de Pessanha em que ele reflete sobre poesia. Reduzem-se basicamente a três: uma resenha de um livro de Alberto Osório de Castro, o resumo de uma conferência dedicada à estética chinesa, e esta.
               A resenha do livro de Alberto Osório de Castro mereceu já atenção crítica, num belo ensaio de Gustavo Rubim, intitulado Experiência da alucinação – Camilo Pessanha e a questão da poesia. Rubim também estudou a conferência sobre a estética chinesa. Mas o breve texto da conferência de 1924 (que tem apenas cinco páginas), talvez mesmo porque dele não se consiga extrair um perfil modernista para Camilo Pessanha, permaneceu praticamente sem comentário analítico, apesar de aí se encontrar uma curiosa e muito particular definição do que sejam lirismo e inspiração poética.
               A análise desse texto – precedida do comentário de poemas em que alguns tópicos relacionados com o seu tema são glosados – constituirá o cerne desta comunicação.


1


               Antes, porém, para melhor situar, no arco da vida e da reflexão de Camilo Pessanha, o texto que hoje nos interessa, devemos fazer um recuo de exatos 30 anos. Devemos voltar a abril de 1894. Pessanha acabara de chegar a Macau. Ainda deslumbrado com a diversidade oriental e esforçando-se por ambientar-se na colônia, escreve a Alberto Osório de Castro uma carta na qual expõe uma percepção da passagem do tempo e do deslocamento para longe da terra natal que permitirá melhor compreender o texto da conferência sobre Camões.
               Como não será possível alongar-me, destacarei apenas dois pequenos trechos da carta.
               Eis o primeiro deles:

               E eu, que tinha saudades de quanto ia deixando, até de Barcelona, onde estive cinco dias, até de Colombo onde estive duas horas. Porque a gente é bem um grumo de sangue, que por toda a parte se vai desfazen­do e vai ficando.[2]

               O afastamento impõe o esvaziamento, como a passagem do tempo também o impõe: ao longo do duplo percurso, temporal e espacial, esse coágulo que somos nós perde um pouco de si, impregna aquilo que nos impressionou ou nos seduziu: algo se desprende de nós e fica para trás, e nós nos vamos assim dissolvendo ao longo dos eixos do tempo e do espaço. É o sentimento decorrente dessa percepção que o poeta denomina genericamente de saudade e que tem, no contexto em que surge, uma forma específica: menos do que uma perspectiva de recuperação de um bem perdido, é a consciência de que não é possível apreender as experiências e mantê-las, não é possível incorporá-las à subjetividade. A noção básica que informa essa passagem é a da perda. A própria memória, vista pelo prisma da metáfora do grumo de sangue, se reduz assim a uma espécie de consciência dolorosa da perda inevitável. Ter memória das experiências, parece, é possuir ao mesmo tempo o desejo pela vida que se escoa e a consciência do desfazimento gradual implícito em toda experiência sensível e afetiva.
               Essa mesma percepção percorre boa parte dos poemas de Camilo Pessanha, e foi objeto de um estudo que em outro tempo realizei e que não cabe agora resumir.[3]
               Para o que nos interessa aqui, o importante é considerar esses trechos a partir da questão do exílio, do afastamento da terra natal – que era o tópico daquela carta em que a viagem para o Oriente fornece a matéria principal.
               Ora, enquanto experiência de exílio, não há aqui uma saudade indeterminada, e sim uma atualização muito concreta da nostalgia, que potencializa a sensação de deslocamento e o desejo de retorno.
               É em função da nostalgia que devemos observar o ­apego inesperado aos lugares pelos quais passa, pois o que aí vem para primeiro plano é sempre a percepção do afastamento. Como se quisesse reter o movimento de distanciamento da pátria, o poeta se agarra emocionalmente às escalas dessa navegação para o outro lado do mundo e assim sente saudades inexplicáveis. É, portanto, por uma espécie de contágio que a partida desses lugares sem conteúdo real afetivo lhe vai despertar o mesmo sentimento com que se afastara da terra natal, no começo do percurso.
               A segunda passagem da mesma carta permite completar o quadro:

               Ai, meu pobre amigo: eu bem sei o quanto aí terá sofrido. Havemos de morrer assim: o Alberto Osório por uma espécie de cobiça, eu por uma espécie de avareza.[4]

               Alberto Osório de Castro é aí associado ao apetite, à vontade de posse e de conquista. É um contraponto perfeito a Pessanha, que se retrata como aquele que tenta desesperadamente acumular, guardar em si os afetos e as sensações, protegê-los inutilmente do desfazimento a que está fatalmente condenado o sujeito ao longo da vida e da viagem.
               A consideração do texto de 1924 permitirá dar um sentido mais amplo à metáfora da “avareza” como atitude do poeta frente ao mundo. Mas antes, para fazer comparecer aqui a grande poesia de Camilo Pessanha, vou comentar brevemente dois textos nos quais se evidencia a questão da perda e do esvaziamento. E nos quais a metáfora das navegações e o intertexto camoniano têm um lugar central.


2

               São eles o díptico de sonetos intitulado “San Gabriel” – que foi escrito por ocasião do quarto centenário da descoberta da Índia – e o soneto “Depois da luta e depois da conquista”, de data incerta, mas ao que tudo indica escrito em Macau.
               Comecemos por este último:

            Depois da luta e depois da conquista
Fiquei só! Fora um ato antipático!
Deserta a Ilha, e no lençol aquático
Tudo verde, verde, -- a perder de vista.

Porque vos fostes, minhas caravelas,
Carregadas de todo o meu tesoiro?
-- Longas teias de luar de lhama de oiro,
Legendas a diamantes das estrelas!

Quem vos desfez, formas inconsistentes,
 Por cujo amor escalei a muralha,
-- Leão armado, uma espada nos dentes?

Felizes vós, ó mortos da batalha!
Sonhais, de costas, nos olhos abertos
Refletindo as estrelas, boquiabertos...


            Podemos discernir nesse poema dois registros bem distintos. Por um lado, temos aqui um eu que nos fala, de forma mais ou menos alegórica, da decepção inerente a toda tentativa de realização de um desejo. Por outro, as imagens e os símbolos de que se vale para fazê-lo fazem presente um conteúdo histórico que não é nada neutro em Portugal: conquista, ilha, muralha, caravelas e tesouros refluem para um fundo mítico que percorre toda a cultura moderna portuguesa e teve sua expressão máxima no poema camoniano.
               Quero dizer, pela forma como se apresenta, o soneto opera uma forte identificação entre elementos do passado histórico e do passado pessoal. Mas devemos observar a especificidade dessa formulação simbólica, que se encontra também em outros autores do período (António Nobre, principalmente). O que me parece mais notável nesse poema é que não fica claro qual é o ponto de vista principal e qual é o secundário, isto é, qual é o plano alegorizante e qual é o plano alegorizado. Desse procedimento, resulta aquela superposição, muito sensível na poesia do final do século XIX em Portugal, do destino pessoal do poeta e do destino coletivo da nação. Quero dizer: temos aqui mais um exemplo da particular assimilação, em Portugal, dos estilemas do Decadentismo. De fato, todo o estado de espírito décadent tem um sentido muito específico, quando expresso em língua portuguesa no final do século XIX.
               Quando Verlaine dizia, instalado no coração da França: “Je suis l’Empire à la fin de la décadence”, ele frisava, pela contraposição de sua forma de sentir ao sentimento geral do homem comum, instalado na sua inabalável crença no progresso contínuo da civilização, que o poeta e a arte estavam mesmo a rebours, nadavam contra a corrente triunfante no tempo, lutavam contra ela, em nome de outros valores que se sentiam ameaçados.
               Mas quando Nobre ou Pessanha falavam em decadência, e expressavam aquele estado de espírito desistente e langoroso que se convencionou chamar de Decadentismo, o sentido social de suas palavras era profundamente diferente. Ecoavam eles, ao assumir os estilemas e as formas de sentir do Decadentismo, as mais profundas comoções da inteligência e da sociedade portuguesa, iniciadas com a constatação da decadência nacional nas conferências de 1870, e levadas à potência máxima nos meses que se seguiram ao Ultimatum de 1890. É por isso que Nobre vai poder terminar o “António” seu poema mais ostensivamente trabalhado nessa direção, em que é insistente o contraponto entre o dentro e o fora, a vida íntima do poeta e a vida geral da nação – com esta estrofe sinistra:

Moço Lusíada! criança!
Porque estás triste, a meditar?
[...] Vês teu país sem esperança
Que todo alui, à semelhança
Dos castelos que ergueste no Ar?

               Memória coletiva e memória individual convergem nessas estrofes: a história de vida do indivíduo e a da nação são símbolos intercambiáveis. Um diz o outro, reflete-se no outro, explica-se por ele no nível imagético.

               Também no soneto de Pessanha coincidem os dois níveis de reflexão. E se é verdade que Pessanha nunca é tão clara e minuciosamente confessional quanto Nobre, nem por isso o poema deixa de ter dois registros simultâneos. Por um lado, lê-se o poema perfeitamente numa clave de abstração, como meditação generalizada a partir de uma experiência de decepção: trata ele, nessa chave, do descompasso entre o sonho, que gera a busca, e a realidade conquistada. No intervalo entre a projeção idealizada do desejo e a concretude que pode ser, por fim, apreendida, cresce a frustração, a decepção. A única forma de conservar intacto o ideal, dessa perspectiva, é não realizá-lo, isto é, suspender o desejo, interromper a ação. A frustração prévia decorrente dessa estratégia – quer dizer, a assunção de que é impossível conquistar o ideal buscado – é na verdade uma defesa contra a frustração maior, real e inevitável. Daí o símbolo dos mortos da batalha, considerados felizes por morrerem, por terem paralisada a sua ação no momento em que apenas vislumbravam o objeto irreal de seu desejo.
               Lido dessa forma, o poema é uma meditação sobre o descompasso entre os móveis e o resultado da ação dos homens, que termina por aquela paradoxal afirmação da morte como estado de felicidade. Uma felicidade apenas negativa, pois provém apenas da supressão dos motivos da dor, da eliminação da vulnerabilidade do sujeito. Os olhos abertos não retêm o ideal, nem contemplam a sua realização. Apenas o refletem. Desaparece justamente a angústia de apreensão que se encontra magnificamente expressa em outros versos lapidares de um dos sonetos mais célebres do autor: “Imagens que passais pela retina / dos meus olhos, por que não vos fixais?”. Fica apenas o resíduo, o desejo congelado e sem consecução.
               O que é notável é a maneira como toda a reflexão de Pessanha vem vazada em símbolos tradicionais da literatura e da história de Portugal. Quero dizer: mesmo lendo o soneto num registro de reflexão íntima, a imagética tradicional está presente, participa do registro da emoção pessoal.
               E destaca-se, na leitura, o fato de que uma só palavra é capaz de evocar, inteiro, um universo literário e ideológico que passa a funcionar como um baixo contínuo, a permear todas as demais inflexões do poema. Refiro-me à palavra Ilha, aí grafada com maiúscula, que faz ecoar no soneto a Ilha dos Amores camoniana.
               No poema quinhentista, após a descoberta e a conquista, a armada encontra a Ilha, prêmio da alta façanha, onde os argonautas se deleitam com as ninfas e contemplam a máquina do mundo.
               No soneto de Pessanha, por outro lado, o prêmio da conquista é também a Ilha. Mas trata-se de uma ilha deserta, e não há afinal prêmio algum, mas apenas perda.
               A conquista, ela mesma, recebe uma qualificação forte: um ato de oposição de sentimentos, de antipatia, e não de correspondência, de consonância entre a vontade do homem e a dos deuses, como no poema camoniano. A Ilha de Pessanha, de onde o poeta vê apenas o vasto mar, desabitado a perder de vista, está mais próxima, na geografia espiritual, de uma outra ilha dos amores: o cemitério pedregoso que Baudelaire retratou em “Un voyage à Cythère”.
               Entretanto, no poema de Pessanha não há crime, nem castigo violento. Ao ato antipático da conquista sucedem apenas a solidão desabitada, a perda dos tesouros acumulados e o reconhecimento da fatuidade de todos os esforços. O desejo de morte, que comparece no final, não tem qualquer caráter punitivo. É antes evasivo, um anseio pela aniquilação porque ela significa a forma possível de resistência do ideal, preservado do choque com a realidade.
               Embora esse soneto não se preste a uma leitura alegórica cerrada, é bastante sensível a forma pela qual nele confluem (por meio da simbólica das navegações), a trajetória nacional e a percepção do destino individual do poeta.
               No âmbito das imagens do poema, não parece haver qualquer expectativa da retomada da ação: valoriza-se aqui apenas retrospectivamente o móvel da empresa e invejam-se os que morreram ainda de posse dessa força que, na personagem que nos fala nesse soneto, já não existe senão para lamentar o bem perdido.
               Não temos indicação de quando teria sido composto esse soneto. Não podemos, portanto, saber qual a sua posição temporal em relação a outro poema bastante similar na imagética: o díptico de sonetos intitulado “San Gabriel”, publicado em 1898, para celebrar o quarto centenário do descobrimento do caminho marítimo para a Índia.
               Do ponto de vista da articulação das idéias, entretanto, “San Gabriel” representa uma continuação do movimento reflexivo presente em “Depois da luta”. Com mais ênfase na história coletiva, e sem apresentar de modo tão notável aquela sobreposição do individual e do nacional, o poema começa justamente pela constatação de uma energia interrompida e de um esforço frustrado.
              
              
                        SAN GABRIEL

(No quarto centenário do
descobrimento da Índia)

I

Inútil! Calmaria. Já colheram
As velas. As bandeiras sossegaram
Que tão altas nos topes tremularam,
-- Gaivotas que a voar desfaleceram.

Pararam de remar! Emudeceram!
(Velhos ritmos que as ondas embalaram).
Que cilada que os ventos nos armaram!
A que foi que tão longe nos trouxeram?

San Gabriel, arcanjo tutelar,
Vem outra vez abençoar o mar.
Vem‑nos guiar sobre a planície azul.

Vem‑nos levar à conquista final
Da luz, do Bem, doce clarão irreal.
Olhai! Parece o Cruzeiro do Sul!


                        II

Vem conduzir as naus, as caravelas,
Outra vez, pela noite, na ardentia,
Avivada das quilhas. Dir‑se‑ia
Irmos arando em um montão de estrelas.

Outra vez vamos! Côncavas as velas,
Cuja brancura, rútila de dia,
O luar dulcifica. Feeria
Do luar, não mais deixes de envolvê-las!

San Gabriel, vem-nos guiar à nebulosa
Que do horizonte vapora, luminosa
E a noite lactescendo, onde, quietas,

Fulgem as velhas almas namoradas...
-- Almas tristes, severas, resignadas,
De guerreiros, de santos, de poetas.


               Publicado num jornal especial dedicado à efeméride, em Macau, “San Gabriel” é uma celebração. Como celebração, o poema se deixa ler por referência à viagem de 1498.
               Iniciando in media res, surpreendemos a nau capitânia, que dá título ao díptico, no centro de uma calmaria. Uma voz que se articula em primeira pessoa do plural inicia então uma prece, que se estenderá por todo o resto dos versos, dirigida ao arcanjo que tem o mesmo nome da nau. Atendida a prece com a brisa nova que põe a frota em movimento, a voz se ergue mais uma vez e roga que a viagem seja levada a bom termo.
               Entretanto, ao longo do poema algumas palavras e imagens vão como que minando a leitura feita num registro puramente celebratório: a insistência na retomada de um movimento (“vem outra vez abençoar o mar”, “vem conduzir as naus [...] outra vez”, “outra vez vamos”) começa, também por influência do cenário onírico, a se deixar ler como repetição de uma ação já praticada no passado. Quero dizer: a voz que nos diz “nós” começa a se deixar ler como parte de um tempo outro, que não o da viagem histórica de Vasco da Gama. Assim também o final do primeiro soneto: trata-se ali de uma conquista, mas não de uma conquista qualquer, parcial e terrena. A conquista propiciada pela intercessão do Arcanjo é final e tem como objeto o Bem e a luz. Que seja esse Bem logo modalizado como ideal inatingível (“doce clarão irreal”) e simbolizado no Cruzeiro do Sul já é um ponto a destacar.
               Mas de momento, importa observar como essa navegação outra, que se propicia pela intercessão do Arcanjo, se processa já num outro plano: sobre a ardentia, com as velas banhadas pela lua, navega-se agora já não mais em direção à Índia, mas em direção a essa estranha nebulosa que derrama sua luz láctea sobre a noite, clareando-a, como se fosse uma espécie de aurora.
               Prosseguindo nessa via de leitura, vai-se tornando cada vez mais forte o registro alegórico. É agora possível ver, na cena inicial da calmaria e da desistência, uma representação do moderno Portugal da época do Ultimatum. Abatidos, exaustos, refletem os novos navegantes sobre as reviravoltas da história e se indagam sobre o sentido que teve aquele trajeto subitamente paralisado:

Que cilada que os ventos nos armaram!
A que foi que tão longe nos trouxeram?

               Dessa perspectiva, o que se está celebrando não é a viagem que o Gama fez, e sim a viagem que, desde o Gama, se está fazendo e agora se redimensiona e se dirige para um novo porto: não mais se trata de buscar os tesouros do Oriente, mas sim de reencontrar as almas fortes da nação, e com elas o motivo e a força que embasaram a conquista histórica.

               Embora esse díptico esteja, do ponto de vista do emprego da imagética tradicional, próximo do soneto que comentamos anteriormente, é sensível que os dois poemas apresentam diferenças de enfoque do papel do ideal e da possibilidade da conquista.
               Enquanto no primeiro soneto não se apresentava nenhuma perspectiva de superação do impasse entre o ideal almejado e a fatal decepção que era a posse, aqui essa perspectiva se delineia: é preciso retomar o movimento, o impulso em direção à descoberta, mas num plano outro, em que o objetivo a alcançar já não pertence a este mundo, ou seja, não pode jamais ser objeto de conquista.
               Não é mais preciso, portanto, invejar os mortos da batalha, que refletiam nos olhos as estrelas inatingíveis. A irrealidade do Bem almejado, ou seja, a impossibilidade de sua realização, de sua consecução, projeta-se na distância infinita: é a nebulosa que é agora o destino dessa nau que só pode mesmo navegar em sonho e nunca atingir o porto desejado.
               É essa transposição de uma viagem marítima e carnal em uma fantasmagórica navegação entre as estrelas, com velas banhadas de luar, em busca da luz e do Bem, que vemos no “San Gabriel” de Pessanha e que nos parece, no que diz respeito à sua reflexão constante sobre as glórias e o futuro da Pátria de Camões, a sua mais impressiva e acabada realização.
               O seu fim, o seu desígnio já não é senão o encontro com o passado. Mas não na forma da retomada ou transfiguração da energia perdida, e sim apenas na contemplação dos exemplos de resignação, tristeza e severidade. Nessa navegação para a desistência se afirma a perspectiva desesperançada de Pessanha, no limiar da modernidade portuguesa. E é essa perspectiva toda negativa, que não ensaia qualquer redenção, nem no nível pessoal, nem no coletivo, que distingue o tom específico de Pessanha dos vários tons modernistas que lhe são contemporâneos.


3

               Chegamos por fim ao texto no qual Pessanha se dedica explicitamente à memória de Camões, que começa por referir a tradição de que Camões esteve em Macau e ali escreveu Os Lusíadas. Observando que é da índole do tempo contestar as verdades tradicionais, Pessanha compara a tradição com uma planta viva, arraigada no sentimento popular, do qual tira a seiva que a mantém.
               A tradição é assim, para ele, mais do que um testemunho de verdade histórica, um símbolo vivo e adequado à expressão de um conceito. E por isso sua conferência se propõe não a discutir a sua procedência factual, mas sim a grandeza do objeto venerado e o equilíbrio e a adequação dos elementos que o acompanham e com ele compõem o quadro significativo.
               Para Pessanha, a grandeza de Camões é evidente. Cumpre-lhe, então, como primeiro passo de análise, verificar se os demais elementos – isto é, principalmente, Macau – prestam-se a formar, com a grandeza do poeta e dos feitos heróicos que ele cantou no seu poema, um conjunto coerente e significativo.
               Para afirmá-lo, Pessanha lança mão de dois argumentos. O primeiro é autodemonstrativo: o território português na China é o lugar mais remoto a que chegaram e em que se instalaram os portugueses – ou seja, a localização de Macau se harmoniza com o assunto do poema camoniano, que canta a epopéia marítima das descobertas orientais. Já o segundo tem complexidade maior e se embasa numa postulação surpreendente, de alcance amplo. É o que nos interessa mais de perto.
               Eis:

               [...] a inspiração poética é emotividade, educada, desde a infância e com profundas raízes, no húmus do solo natal. É por isso que os grandes poetas são em todos os países os supremos intérpretes do sentimento étnico. Toda a poesia é, em certo sentido, bucolismo: e bucolismo e regionalismo são tendências do espírito inseparáveis. Notáveis prosadores (basta lembrar, dentre os contemporâneos, Lafcadio Hearn, Wenceslau de Moraes e Pierre Loti) têm celebrado condignamente os encantos dos países exóticos. Poeta, nenhum.

               Para Pessanha, a inspiração não apenas radica na emotividade. É emotividade. Mas emotividade modalizada, moldada pela “educação”, que lhe dá uma direção, limitação ou pré-configuração específica. A forma dessa modalização da emotividade, que a transforma em capacidade de poesia, não é, porém, como a palavra “educada” poderia fazer supor, a inserção numa tradição literária. Não estamos aqui no mesmo universo em que se moverá, por essa época, a reflexão de T. S. Eliot ou de Ezra Pound. O que faz a inspiração poética, para Camilo Pessanha, é a sua determinação pela experiência coletiva sedimentada num dado espaço e enquadramento natural – e que comparece, no seu texto, na metáfora vegetal do profundo enraizamento no “húmus da terra natal”.
               O ponto é importante: para Pessanha, não é a simples integração na Natureza ou a sua contemplação embevecida a condição da poesia. Pelo contrário, seu texto caminha no sentido de reduzir a abrangência do “natural”. Primeiro, pela identificação do “natural” com o bucólico – isto é, limitando a natureza eficaz para a poesia aos elementos que caracterizam a forma de vida das populações agrícolas, num território delimitado; segundo, pela assimilação do bucolismo ao regionalismo – o que promove uma segunda particularização do natural, restringindo ainda mais a sua eficácia e determinando-o, no âmbito do texto, como lugar de origem.
               A postulação de que a poesia é regionalismo é ainda da maior importância porque é com base nela que Pessanha irá assentar, na seqüência, a especificidade da forma portuguesa de ser poeta. E ele o faz da seguinte maneira: se toda poesia se define, de alguma forma, como vivência do bucólico e do regional, e se a emoção poética em geral se orienta pelas mesmas forças que determinam a constituição de um caráter étnico específico, a inspiração poética portuguesa se vai caracterizar e distinguir por só vigorar em vinculação direta com o torrão natal.
               Para um português, assim, o afastamento da origem é uma ameaça concreta à permanência da inspiração poética, pois esta só pode vigorar se, por meio da evocação, a sensação de desenraizamento, de exílio e afastamento da terra natal for eliminada ou posta em suspenso.
               Daí procedem a importância e a singularidade de Macau, entre os territórios habitados pelos portugueses. Sendo ela a única possessão situada no hemisfério norte, é ela a única que tem as estações do ano sincrônicas com as da metrópole. Por conta disso, em Macau os eventos religiosos e culturais têm o mesmo enquadramento sazonal que em Portugal, o que teria, segundo Pessanha, uma importante conseqüência. Vejamos:

               [...] em Macau é fácil à imaginação exaltada pela nostalgia, em alguma nesga de pinhal menos freqüentada pela população chinesa, abstrair da visão dos prédios chineses, dos pagodes chineses, das sepulturas chinesas, das misteriosas inscrições chinesas [...], das águas amarelas do rio e da rada, onde deslizam as lentas embarcações chinesas de forma extravagante [...], e criar-se, em certas épocas do ano e a certas horas do dia, a ilusão da terra portuguesa.

               À primeira vista, nada pareceria mais difícil, já que Macau pouco tem de português senão as casas e o contorno dos telhados. Para produzir-se a ilusão de estar em Portugal, de fato, é preciso abstrair-se de tudo o que é chinês – de tudo o que, enfim, é Macau.  Ou seja, é preciso ser capaz de obliterar os dados dos sentidos – não ver as inscrições, não perceber os odores tropicais, não ouvir as falas e as vozes, não contemplar os barcos. Mas, ainda assim, ali é fácil – ou seja, é possível, por oposição às colônias outras, situadas no hemisfério sul – produzir a alucinação do retorno, porque o enquadramento sazonal do calendário afetivo e cultural é um potente estimulador da nostalgia, que acende a imaginação e produz a alucinação de retorno à terra natal – condição necessária para a inspiração poética portuguesa.
                Descobre-se, então, a primeira justificativa para a escolha de Macau como lugar de culto de Camões e do povo português. Ao afirmar que ele ali teria escrito o poema nacional português, a tradição celebra o gênio que, mesmo nas condições adversas do exílio prolongado, conseguiu manter viva, dentro de si, a pátria distante. Conseguiu, portanto, manter produtiva a sua inspiração.
               Retomando a metáfora vegetal com que explicara não só o vigor das tradições, mas a própria inspiração poética, Pessanha celebra nestes termos o poeta quinhentista:

               [...] o gênio de Camões, alimentado embora exclusivamente da seiva que trouxera da Pátria – da imagem viva da sua paisagem, da lembrança minuciosa e fiel dos seus costumes, da sua história, das suas lendas, das suas crenças, da sua cultura científica e literária –, teve pujança bastante para triunfar dos meios mais adversos, para resistir aos mais implacáveis fatores de perversão e de atrofia.

               Essa homenagem a Camões, ao fazer dele um símbolo da energia da nação no seu apogeu, levanta imediatamente a questão da continuidade – do império português e do sentimento poético português – isto é, a comparação entre o passado e o presente:

               [...] mas a terrível ação depressiva do clima e do ambiente físico e social dos países tropicais, se não tiveram poder contra a assombrosa vitalidade criadora do poeta máximo, têm-no, todavia, [...] para esterilizar em cada um de nós outros, os pigmeus que a quatro séculos de distância o contemplamos, o pouco de aptidão versificadora que algum tivesse, mas ainda para destruir, mesmo nos melhor dotados, a comezinha parcela de imaginação de que é indispensável dispor quem intente evocar a estatura do gigante, o seu esbelto perfil e a sua figura augusta.

               A oposição está dada, e a explicitação do paralelo direto entre o orador e o homenageado, enquanto poetas, é, assim, inevitável:

               [...] quem estas linhas escreve – diz Pessanha – teve, por várias vezes (há quantos anos isso vai!), deambulando pelo passeio da Solidão, a ilusão, bem vivida apesar de pouco mais duradoira que um relâmpago, de caminhar ao longo de uma certa colina da Beira-Alta, muito familiar à sua adolescência.
              
               Nos termos do quadro conceitual em que se move a conferência, o que Pessanha afirma é que, enquanto estava alimentado pela “seiva que trouxera da Pátria – da imagem viva da sua paisagem, da lembrança minuciosa e fiel dos seus costumes, da sua história”, pudera ele próprio conseguir a ilusão indispensável à criação poética. Mas essa seiva, diferentemente do que ocorrera com Camões, se esvaíra. “Há quantos anos isso vai!” é a exclamação dolorosa que abre caminho à confissão do fracasso e ao paralelo do poeta moderno com o antigo.
               A contraposição com Camões não se traça apenas no nível individual. O poeta de outrora pudera manter-se espiritualmente, por anos a fio, apenas com as lembranças da pátria ausente porque vivera num outro tempo, no qual a “energia da raça” era tão exuberante a ponto de despender-se por “todo o imenso império português” que então se construía.  Já o tempo a partir do qual o poeta moderno dirige o olhar para o passado é visto sob o prisma da decadência, da ausência daquela energia que caracterizara os anos de 1500. Sente-se Pessanha num mundo e num momento em que nem a “raça” é pródiga de energias, nem (talvez por isso mesmo) o poeta é capaz de prover-se de uma suficiente reserva de lembranças e memórias que lhe permitam manter-se alimentado, quando desligado do ambiente e da paisagem portuguesas.
               Ao montar essa equação, na qual a cada momento na história da nação corresponde um tipo de poeta, Pessanha acaba por fazer, da sua obra quase inexistente, uma espécie de equivalente gorado da obra de Camões. É como se ele se representasse como um não-Camões, ou melhor, como o Camões possível nos tempos da decadência – para o qual até mesmo a evocação da grandeza do passado é um desafio.
                Se nos lembrarmos agora daquela carta de 1894, perceberemos que a conferência forma com ela um conjunto de coerência metafórica, contra o qual os poemas aqui rapidamente comentados ganham relevo e densidade.
               De fato, a metáfora da avareza já preludiava a formulação de 1924, segundo a qual a capacidade poética depende da manutenção da seiva haurida em contato com a terra natal; e a imagem do grumo de sangue a da esterilidade correspondente ao esvaziamento da seiva trazida do húmus da terra natal.
               Houvesse tempo e a leitura contrastiva dos textos de Pessanha sobre a China e dos poucos poemas nos quais ele glosa a paisagem exótica ou distante nos permitiria agora traçar outro quadro, que com esse faria conjunto: o da tentação e do perigo da entrega à sedução do diferente, por conta do amortecimento da capacidade de transfiguração nostálgica, imprescindível, segundo o poeta, à eclosão e à manutenção do sentimento poético português.


[1] Texto lido no colóquio “Camilo Pessanha: orientalisme, exil et esthétiques fin-de-siècle”, na Universidade Paris Oeste/Nanterre, em novembro de 2008.
[2] Carta datada de 30 de abril de 1894, reproduzida em Camilo Pessanha, Cartas, transcrição e organização de Maria José de Lancastre. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984, p. 47.
[3] Nostalgia, exílio e melancolia – leituras de Camilo Pessanha. São Paulo: Edusp, 2001.
[4] Ib., p. 46.