terça-feira, 10 de julho de 2012

Haicai - entrevista a Álvaro Kassab


Haicai – entrevista a Álvaro Kassab


[Jornal da Unicamp - Edição 399 - 16 a 22 de junho de 2008]

O professor e escritor Paulo Franchetti, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), acaba de lançar Oeste (Atelie), reunião de haicais traduzidos para o japonês por Masuda Goga Hidekazu. O interesse do docente pelo gênero foi despertado há quase 30 anos, quando o escritor desenvolveu pesquisa acerca da poesia concreta. Na entrevista que segue, Franchetti fala sobre sua nova obra e analisa o papel do haicai na literatura brasileira contemporânea, sem perder de vista sua dimensão transnacional.
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Jornal da Unicamp – O haicai é um tema recorrente no conjunto de sua obra e em suas áreas de interesse, com ênfase nos aspectos estéticos e históricos. Agora, com a publicação de Oeste, o senhor deixa o ensaio de lado e parte para a prática, digamos, poética, já presente de certa maneira nos contos de O Sangue dos Dias Transparentes, nos quais a concisão era uma das características mais acentuadas. Como foi construído esse processo?
Paulo Franchetti – Tenho trabalhado com o haicai desde o final dos anos de 1970. Minha dissertação de mestrado foi sobre a teoria da Poesia Concreta, para a qual a escrita chinesa (e japonesa) era uma referência importante. Para entender melhor as reflexões de Haroldo e Augusto de Campos, via Ezra Pound, sobre a escrita então chamada de “ideogramática”, dediquei-me ao estudo da língua japonesa. E, na seqüência, sob a supervisão e com a parceria da minha colega do IEL, professora Elza Doi, à leitura e tradução de haicais.
Foram vários anos de trabalho, de que resultou, entre outros textos, o livro Haikai – antologia e história, publicado pela Editora da Unicamp, em 1990. Aos poucos comecei a escrever haicai, depois de assistir aos concursos nacionais que se realizavam no Centro Cultural São Paulo e de me aproximar de um grupo de praticantes da arte que se reuniam, em São Paulo, numa sala da Aliança Cultural Brasil-Japão. Creio que foi o estímulo dessa convivência que me levou a escrever haicais de modo regular. E essa é uma característica do haicai que me agrada muito: o seu caráter de prática coletiva.
Nisso, o haicai se parece com outras artes tradicionais japonesas: o ikebana, o origami, o chá, o sumiê – é simultaneamente uma forma de sociabilidade e um exercício prático de domínio de uma técnica artesanal. Ao mesmo tempo, como as demais artes, é um “caminho”, um “dô”, isto é: uma forma de ver, numa dada prática, um modelo do mundo e, complementarmente, um jeito de olhar para as coisas derivado diretamente do exercício de uma dada arte.
Daí que seja difícil, no caso do haicai e demais artes tradicionais, estudá-las sem as praticar, pois a prática é o lugar onde se pode avaliar o progresso da aprendizagem. Penso que esses anos de estudo e exercício do haicai, de convívio com os haicaístas e, principalmente, de leitura sistemática de textos clássicos do budismo deixaram marcas. Uma delas, eu creio, é o gosto da concisão que você percebe nos contos que publiquei naquele livro.
JU – Os haicais de Oeste foram traduzidos para o japonês, fato raro (inédito?) não só no gênero mas também no mercado editorial. Como se deu essa transposição? O fato de a edição ser bilíngüe trouxe novos elementos à obra?
Franchetti – Talvez existam outros livros de haicai, escritos por brasileiros, com versão para o japonês, embora eu não me recorde de ter visto nenhum. No caso de Oeste, o dado relevante é o tradutor. Os haicais foram vertidos para o japonês por Hidekazu Masuda Goga, que foi um dos fundadores da associação a que me referi há pouco, o Grêmio Haicai Ipê.
JU – Masuda Goga é considerado um dos mestres do gênero no país. Qual foi sua importância no campo teórico e na difusão do haicai no Brasil?
Franchetti – Goga nasceu no Japão em 1911 e veio para o Brasil em 1929. Como todos os imigrantes japoneses, trabalhou primeiro na lavoura. Depois estudou e dedicou-se a outras atividades, entre as quais o jornalismo. Discípulo de Nempuku Sato, que foi o grande mestre do haicai na colônia, Goga dedicou sua vida ao estudo e difusão do haicai, tanto em japonês quanto em português, sendo autor de pelo menos dois livros essenciais: uma história do haicai no Brasil e um dicionário de palavras que podem ser usadas para marcar a sucessão das estações neste país.
Ao lado disso, escreveu sempre, tanto em japonês como em português, haicais que serviram de inspiração para todos os que se interessam por esse gênero de poesia. Sua presença nos encontros de haicai e nas reuniões do Grêmio era fonte de inspiração e estímulo para todos os que o conheceram e tiveram a alegria de com ele conviver.
No caso de Oeste, sinto que as traduções têm um interesse que em muito extrapola o dos originais. Ou seja, não tenho dúvida de que o maior interesse do livro, para quem lê japonês, reside na qualidade da tradução. Para valorizar o trabalho do Goga, o editor do livro deu um tratamento especial ao texto japonês, que foi belamente caligrafado e impresso sobre fundo colorido. De modo que o livro termina por ser, além de um agradecimento, uma homenagem ao velho mestre e à sua generosidade em se ocupar, nos seus últimos anos de vida, da tradução desses poemas.
JU – Num dos primeiros registros sobre haicai feito no Brasil, Afrânio Peixoto escreveu em 1919 que o gênero era “ainda mais simples que nossa trova popular.” O senhor concorda com a afirmação? Em sua opinião, há algum gênero no país que se assemelhe ao haicai e consiga ter, ao mesmo tempo, a sofisticação deste e apelo popular?
Franchetti – A declaração de Peixoto é ao mesmo tempo falsa e verdadeira. É verdadeira se pensarmos no haicai como forma. Por esse aspecto, ele é ainda mais simples do que a quadra, tendo apenas três versos, sem rima. Ou se pensarmos que a forma básica de estruturação do haicai é, como a da maior parte das quadras, a justaposição de duas notações (uma íntima e outra objetiva), deixando a relação entre elas por conta do leitor.
Mas a declaração é falsa se entendermos que o haicai é tão simples quanto a quadra, do ponto de vista da sua composição ou da sua compreensão. Basta ler um conjunto de haicais, ainda que escritos por brasileiros, americanos ou franceses, e um conjunto de trovas, para que as diferenças saltem aos olhos. O haicai recusa o dito espirituoso, a graça evidente, a expressão sentimental direta. Sua beleza provém da contenção, do que é apenas insinuado, da economia de recursos e da modéstia dos objetivos.
Uma forma de resumir o haicai é dizer que ele é a arte de, com o mínimo, obter o suficiente. Uma arte minimalista, portanto. Daí vem a sua característica mais notável, que é a aliança de simplicidade de forma com sutileza espiritual. E o efeito mais impressionante do haicai é que uma anotação rápida e lacunar de uma cena qualquer produz muitas vezes, no leitor, uma impressão poderosa, que fica vibrando na memória, sem muita explicação. Nada disso se encontra na trova, de modo geral.
Penso que é o fato de não haver, na nossa tradição, um gênero de poesia que junte simplicidade formal, sofisticação e apelo popular que se deve justamente a grande voga do haicai no Brasil.
JU – De Guilherme de Almeida a Paulo Leminski, passando pelos concretistas [irmãos Campos, Pedro Xisto e Pignatari], o haicai foi celebrado e teve entusiastas e praticantes na maioria das correntes literárias ao longo dos últimos 80 anos no Brasil. A que o senhor atribui esse interesse?

Franchetti – O haicai foi descoberto pelo Ocidente no começo do século XX. Na França, foi uma verdadeira febre. Seu grande divulgador foi Paul-Louis Couchoud (1879-1959), escritor hoje esquecido, mas nome-chave no orientalismo do começo do século XX. Couchoud esteve no Japão de setembro de 1903 a maio de 1904 e tomou contato com a literatura japonesa por meio dos trabalhos de europeus ali radicados. Em decorrência dessas viagens e leituras, em 1905 Couchoud produziu com dois amigos seu primeiro conjunto de poemas inspirados no haicai: 72 tercetos sem métrica nem rima, que buscavam antes reproduzir o espírito do que a forma desse tipo de poesia japonesa.
A partir daí, tem-se uma intensa produção de haicais, em grande parte estimuladas por outro livro de Couchoud: uma apresentação do haicai japonês, com prefácio de Anatole France. Pela mesma época, Ezra Pound publica as notas e reflexões de Ernest Fenollosa, sinólogo de língua inglesa, nas quais a escrita ideogramática é proposta como um modelo explicativo da poesia chinesa (e japonesa). Desse momento em diante, o haicai passa a ser uma referência básica também para a poesia moderna de língua inglesa. E a partir dos anos de 1950, quando a contracultura busca, no Oriente, formas alternativas de religiosidade, conduta e expressão artística, o traço simultaneamente moderno e marginal do haicai faz dele um objeto de grande interesse.
De modo que, nos nomes que você citou, encontramos representantes das várias linhagens de interesse no haicai. Guilherme de Almeida provém, em certo sentido, de Couchoud, os concretos de Pound e Leminski de uma convergência da tradição radicada em Pound com a contracultura zen dos anos 60. O interesse pelo haicai é, assim, resultado de vários fatores, que aparecem, em cada caso, em combinação variável.
JU – Autores como Leminski e Millôr Fernandes recorrem ao tom declaradamente anedótico e irônico na feitura de haicais. A “matriz” japonesa comporta – ou admite – esse tipo de abordagem?
Franchetti – Existe um tipo de poesia japonesa que se parece mais com o que Millôr Fernandes chama de hai-kai: o senryu, poema que tem a mesma forma do haicai, mas espírito mais jocoso e mesmo sarcástico. Já o tipo de haicai do Leminski se afasta menos da tradição do haicai que, como todas, tem muitas modalizações.
JU – É possível afirmar que já existe um haicai genuinamente brasileiro? Se sim, quais são os aspectos que o diferenciam dos produzidos no Japão e em outros países?
Franchetti – Essa é uma questão difícil, a do haicai brasileiro. Mas talvez seja possível dizer que existe um haicai internacional, isto é, ocidental. De fato, uma pesquisa na internet mostra a enorme quantidade de revistas e livros de haicai em várias línguas, principalmente a inglesa. E há publicações no Japão inteiramente dedicadas ao haicai internacional.
Sem dúvida, escrever haicai não é a mesma coisa para um japonês e para um ocidental. Como não é a mesma coisa escrever um soneto. As formas são carregadas de sentido histórico.
O que é curioso, porém, é que a leitura dos haicais produzidos hoje no Japão por pessoas jovens nos mostra que eles se parecem muito com os haicais produzidos em outras partes do mundo. O que me dá a impressão de que o haicai é hoje basicamente uma forma e uma arte transnacional.
JU – Como o senhor definiria um bom haicai?
Franchetti – Penso que um bom haicai é aquele que tem a modéstia e o despojamento da linguagem como valores centrais, aquele que não se satisfaz na banal exibição de virtuosidade técnica ou capacidade de associação brilhante. Ou seja, penso que um bom haicai é um texto que se limita voluntariamente a apenas situar uma dada percepção sensória, objetiva, num campo maior de referências (objetivas ou subjetivas) onde ela ganhe sentido e componha um quadro único; um texto que traz para o leitor a presentificação de um instante como algo inacabado, aberto, um esboço ou um diagrama do choque entre a sensação fugaz e irrepetível e seu longo ou profundo ecoar nas diversas cordas da sensibilidade e da memória.
JU – Na sua opinião, a literatura japonesa é devidamente valorizada – e difundida – no Brasil?
Franchetti – Creio que tem sido bastante valorizada e difundida, principalmente nos últimos anos, quando têm aparecido traduções de vários autores importantes, realizadas a partir dos textos japoneses e não de outras traduções.
JU – E o haicai, é devidamente contemplado pelos departamentos de teoria literária das nossas universidades?
Franchetti – Não creio que seja muito contemplado. Nem o haicai, nem outras formas de poesia.

sábado, 7 de julho de 2012

Marcos Siscar, O Roubo do Silêncio


O Roubo do Silêncio, de Marcos Siscar

 [texto publicado no portal Cronópios, em 25/10/2009]



Marcos Siscar é uma das vozes significativas da poesia brasileira contemporânea. Tenho acompanhado com atenção e interesse cada novo lance da sua obra poética, bem como os ensaios em que reflete sobre poesia. Da sua poesia própria já se disse que é “culta e teórica”.[1] Por isso mesmo, provoca a reflexão crítica e estimula a discussão mais ampla.
Na última página do seu mais recente livro, O roubo do silêncio, lê-se: “Simplicidade é artifício recolhido, dobrado, alisado a ferro. Leveza aérea daquilo que foi corrigido e passado a limpo”. E poucas linhas abaixo: “Simplicidade é aquilo que se quer. É a górgona do sentido. Desejo de dados já jogados, de versos estendidos com as faces para cima.”
Aparentemente, temos na primeira sequência a glosa de um lugar-comum: em arte tudo é construção, a simplicidade é um objetivo de uma poética, um efeito, um resultado, não uma condição ou um estado de espírito.
Mas, se for assim, como entender a segunda declaração? Se a simplicidade é o que se deseja como resultado poético, qual é o seu aspecto horrível e qual o seu poder paralisante sobre o sentido?
Do ponto de vista da formulação mais alta e convencional, bordejando a angústia da influência, essa górgona que atrai, que ameaça de paralisia, é um ser de muitos nomes. Alguns deles surgem com todas as letras na sequência desse último texto do livro: Bandeira, Montale, Kaváfis, cummings, T. S. Eliot. Uma lista sem evidente coerência, invejando de um o talento e de outro o esforço; de um o poema, de outro a sesta, do terceiro o ambiente, do quarto o que não é o procedimento difundido e mais característico, do último o que não é o tom. Uma listagem díspar que termina pela utilização banal da palavra que é objeto de todo o esforço aforismático do texto, reduzida a uma locução corriqueira: “Eu queria, é simples, mas bem aqui, longe de Starnbergersee”, vinculada à afirmação do local, por interposição de outra reminiscência, a confusão de línguas e fronteiras, à margem do lago alemão da terra devastada. Ou seja, por um gesto de ironia insustentável no calidoscópio de citações, paródias, paráfrases e referências enviesadas que constituem o livro.  
De fato, o livro é dominado pelo vulto dos paredros. Além dos que vêm nesse último texto, há dois nas epígrafes (Rimbaud e Drummond) e na selva selvaggia de reflexos, é fácil perceber a fisionomia fragmentária de Baudelaire, Mallarmé, Ferreira Gullar e outros que seria ocioso caçar para nomear aqui. Mas como a identificação dos intertextos é justamente a isca aliciante do livro, preparada para o leitor dotado de instrumentos para a decifração, a busca da simplicidade, que aparece como o ingênuo ridículo e é denunciada como repetição de estratégias, num jogo já jogado – e poderia completar, mantendo a paráfrase de Eliot: “por gente com quem não podemos pretender rivalizar” –, se tinge também de certa coloração melancólica – quase como a saudade de algo que nunca existiu senão como desejo. Não é possível estar bem aqui, se para definir o aqui se tem necessidade de convocar o Starnebergersee.
Por outro lado, é certo que nesse quadro o simples não é oposto ao complexo. O objetivo do texto não é discutir os limites da expressão do ponto de vista do conceito; pelo contrário, seu foco é a distinção entre simplicidade e espontaneidade, ou seja, imediatismo de expressão.
Sendo assim, o sentido que afinal pode ser paralisado pela simplicidade surge não mais como o significado, mas como aquilo que foi objeto de um sentir, que foi experimentado. Essa dupla acepção da palavra “sentido”, o reverter do nível de referência entre o abstrato e o concreto, entre o geral e o individual se mantém na sequência do texto e dá o movimento íntimo do livro, animando cada uma das suas cinco partes.
Delas (“Prefácio sem fim”; “Sentimento da violência”, “Ficção de origem”, “Balões brancos” e “Cidades sem sol”) é a segunda que interessa a este comentário, porque dá o tom do livro e apresenta os ritmos e procedimentos que, ao longo das demais, comporão o retrato do tempo. Nela se encontra sintetizada a novidade desse volume, em relação à obra pregressa do autor.
A primeira peça da seção “Sentimento da violência” se intitula “As flores do mal”. O título instaura um desenho claro, que busca as fronteiras da modernidade, pois o livro abre com a referência à obra que a crítica vulgarizou como marco de modernidade e fecha com a excelência modernista do Waste Land. As formas de lidar com a herança, de incorporá-la e superá-la ou, pelo menos, decepá-la do seu poder de paralisia são um dos núcleos positivos de tensão do livro.
Desde o primeiro parágrafo, ocorre a redução bruta da expectativa e da perspectiva instalada pelo título a um cenário de fundo de quintal. As flores do mal terminam por ser carrapichos, nomeados cuidadosamente nas suas espécies. No entanto, o investimento alegórico é grande: o aparecimento das ervas é devido a uma falha de responsabilidade individual, o silêncio é o gerador de mato, a erva impetuosa representa uma ameaça para o espaço civilizado do pomar, o sentido calejado é espicaçado em certos momentos pela intrusão do mato, o arrancador de flores do mal se declara um misto de filósofo e artesão, um defensor da ordem no pomar, ou seja, no jardim das musas. Já não é um maldito este que nos fala. Não cultiva flores do mal, nem nelas se compraz culpadamente, nem demonstra maior empenho em combatê-las. Pelo menos, não é maldito pelas mesmas razões que Baudelaire, convocado pelo título. Não há aqui movimento luciferino de superar as limitações impostas por um deus ciumento às suas criaturas, nem comprazimento pecaminoso nos sentidos, muito menos revolta por não poder ter, deste lado da vida, delícias que se prometem para depois dela. Este parece afinal um ser inofensivo: enquanto as ervas se renovam, ele se deita na grama e no fundo da alegoria, após uma peleja exaustiva, na qual, de joelhos, arrancou alusões e ervas más que não param de brotar. A desproporção entre as referências do poeta contemporâneo e do poeta moderno cria um efeito de comicidade corrosiva, que mais se acentua pela ausência de epifania. Mas não é o absurdo o resultado. O absurdo não se instala a não ser por um momento, como decorrência da desproporção, como efeito da concentração no pequeno, no irrisório. O procedimento lógico aqui não é a reductio ad absurdum, mas a reductio ad parvum. Por isso mesmo, a peça seguinte, ao traçar a fenomenologia do carrapicho enfraquece a primeira, reinstalando um discurso alto, no qual a ironia fica contida ou se dissolve na evocação final da infância.
Na sequência, o texto que dá nome ao livro, embora seja aberto por uma volta à redução ao pequeno e pela corrosão irônica, logo ensaia a mimese do discurso engajado. Mas a ironia não pode tudo. Aqui, parece francamente impotente para afastar o namoro real, por baixo do pano, com o Poema sujo de Gullar, que aflora não na última parte do livro, onde é chamado pelo nome (uma peça ali é denominada “Outro poema sujo”), mas disseminado intermitentemente ao longo do volume – respondendo pelos vários momentos de tensão mais baixa e formulações apaziguadoras da consciência burguesa (para usar a linguagem do engajamento) como, por exemplo, “Natureza morta”.
Contribui para essa impressão o fato de que, precisamente onde se poderia esperar a melhor justificação do título (no texto denominado “O roubo do silêncio”), depara-se com uma declaração das menos suficientes para explicar o sentido do livro, seu título e a própria forma assumida pelo seu discurso: “A vida vai bem em prosa, quando a violência lhe rouba definitivamente a liberdade de corte”. É uma explicação que, se levada a sério, banalizaria a forma do poema em prosa de tal modo que não haveria gesto irônico posterior capaz de redimi-la. O melhor é concluir que, embora venha no poema homônimo do volume, não é uma asserção mais sincera ou confiável do que as demais, embora seja mais fácil de compreender do que esta outra: “O silêncio é o sofrimento da palavra, quando a poesia do silêncio lhe é roubada”. O interessante é que o raciocínio não se segue: o definido entra como definidor. A poesia do silêncio é algo roubado à palavra; desse roubo resulta que a palavra sofre e a forma do seu sofrimento é a não-palavra, o silêncio. Se fosse possível, “simplificar” a proposição, teríamos que quando se rouba a poesia à palavra, obtém-se o silêncio. Nesse caso, a palavra não existiria plenamente sem a poesia. A poesia responderia pelo sentido da palavra; sem poesia, a palavra esvaziada equivaleria ao silêncio. Mas não é isso o que se lê. Há, claramente proposta, a existência de uma “poesia do silêncio”, que ecoa a “musicista do silêncio” de Mallarmé. Mas a alusão não salva: a frase seguinte traz para o chão: “A vingança dos desapropriados é o barulho da prosa do mundo”. Compõe um quadro de família, essa frase, quando posta lado a lado com esta outra: “a vida vai bem em prosa”.
A encenação da violência moderna atinge ponto de destaque na peça “A vítima”, na qual o vocabulário exibe gosto cediço (“palavras peroladas de silêncio”, por exemplo). Aqui também, a ironia não consegue vir em socorro do sentido: a cedência à moda do discurso contemporâneo sobre a violência termina por revelar-se a verdadeira górgona do livro.
O ressaibo do tributo ao empenho felizmente se dissolve em poemas como “Ötzi”, que retoma o texto de abertura da seção “Sentimento da violência” e consegue equacionar as linhas de força do volume, reduzindo o lugar do contemporâneo por meio da postulação de que as raízes das flores do mal se perdem no tempo. O homem pré-histórico, autor e vítima da violência, está na base de uma vertigem que guarda alguma semelhança com a da impotência frente às ervas daninhas: “Deito-me no tapete para ver melhor”. A frase final, porém, é quase um arrependimento do que parece um falhado impulso de transcendência: “Talvez algumas se levantassem, tendo força de presente, e invertessem por curto instante a direção daquilo que, em nosso olhar, divertido, observa.” Por que “divertido”? O sentido mais arcaico é “desviado” ou “dissimulado”.  Mas o uso contemporâneo produz um ricto de ironia, de sabor defensivo. Sem a ambiguidade entre o sentido presente e o arcaico – que de fato é preciosa –, o poema perderia um pouco da sua força, que é grande, num fecho acomodatício.
Um exercício final de definições encerra a parte das “flores do mal”, fronteira deste comentário. Intitula-se, alusivamente a Perec, “Modo de usar”. A bula, não a arte poética – é o que diz o título irônico sobre esse breve capítulo de poética assertiva.
O texto abre com outra frase de feição lapidar: “Sinceridade não vai bem em prosa”. Logo, sendo em prosa o livro, ou ele destoa do esperado, porque é sincero; ou atende ao esperado, negaceando ou sendo moeda de troca. Qual o terceiro excluído? Se a oposição fosse entre a poesia e a prosa, a decisão seria mais difícil. É, porém, entre duas formas – digamos – de disposição: verso e prosa. Por isso a poesia pode entrar como o terceiro elemento, a separar ou a unir os contendores: “o verso se torna a prosa da poesia quando se nutre da fidelidade à experiência ou da impessoalidade programada”. É um jogo com três elementos, portanto. E a forma da frase nos permite supor a possibilidade de uma operação inversa, que teria por expressão a pergunta: de que modo se poderia obter a poesia da prosa? Ou não existe uma poesia da prosa, mas apenas uma prosa da poesia? Qual é o tipo e qual é a variação por carência ou acrescentamento: a prosa ou a poesia? A frase final poderia fazer a aposta pender para a primeira: “não há verso simples, apenas prosa subvertida”. Mas haveria um verso complexo, que não guardasse com a prosa nenhuma relação? Ou é apenas o desejo de simplicidade que torna o verso uma modalidade da prosa?
As perguntas que esse discurso desperta ou mesmo exige evidenciam outro aspecto, outra inflexão temporal, senão mesmo formal: ensaia-se aqui o ensaio. O gosto do paradoxo, porém, e o pendor para o lapidar paralisam o movimento próprio da forma, que é o desenvolvimento e a clarificação de uma percepção, de uma intuição.
 O que há de ensaio nesse livro, assim, além de evocar os mitos, as origens e os adversários que busca exorcizar, é uma reivindicação de genealogia e um conjunto de recusas, que mapeia as atualizações contemporâneas da forma. Mas o faz não a modo de discurso sobre, mas de discurso ao lado, que almeja presentificar a questão que examina ou convoca. Ou seja, como arte. Como se lê em outra parte, “o que pode haver em comum entre um poema e um ofício [...] é relevante para a poesia? Digamos que só um poema pode dizê-lo.” Mas, no quadro traçado pelo livro, talvez o leitor devesse completar, levando ao limite o paradoxo: ...em prosa. Ou em quase-prosa, como mostra ostensivamente “Poesia a caminho”, único do livro que vem despido dos apetrechos mais ostensivos da pontuação e das maiúsculas, funcionando o polissindetismo e a dificuldade da delimitação sintática, paradoxalmente, como o corte recusado dos versos.
Mais do que um conjunto de ensaios sobre a poesia, tem-se aqui um conjunto de quase-ensaios ou para-ensaios variados à volta da e de poesia. Em “Prosa”, as drummondianas “palavras [que] rolam num rio difícil e se transformam em desprezo” aparecem metamorfoseadas em “minhas escamas se descolam, rolam num rio difícil e se transformam em história.” Essa nova procura da poesia não se faz em versos, mas em compensação a metáfora pode ocupar o lugar na ponta da mesa do banquete. Não se trata agora de palavras rolando autônomas ou em estado de dicionário, mas de partes que se desprendem de um corpo metafórico. E como tal esses fragmentos deixam um rastro, que é  história. Ou seja, registro, matéria memorável, narrável. O quase-ensaio dessa prosa que aspira à poesia é, portanto, num tempo que transborda a modernidade que lhe dá estofo, uma ambição de registro do “sentido”, do vivido, protegido pelo artifício da górgona que o paralisaria.
Noutro trecho, que aponta para o mesmo poeta, lê-se “Vou lhe contar um segredo. Hoje em dia, é preciso coragem para escrever um verso sincero.” Frase que o livro permite desdobrar: é preciso coragem para escrever um verso; é preciso coragem para escrever sinceramente. É a “alegria da negação”, que também se convoca naquele texto central, chamado “Prosa”, que começa afirmando a indeterminação: “Na superfície deste pântano, quando uma cabeça assoma fora d’água, não se sabe se é pato ou serpente”. Em outro nível, se é ensaio ou poesia.
O que permite ler o seu livro como uma resposta a pragas da literatura brasileira atual, em domínios que se mantêm à margem do romance estribado na história e na memória, no relato policial ou no turismo dos lixões e das favelas. De fato, não há aqui o tatibitate minimalista da poesia de herança concreto-cabralina, nem parentesco com a prosa sua irmã, prisioneira da paronomásia, nem concessões à gaiolinha pintada dos novos parnasianos – escravos da medida automática, acadêmicos no sentido curto –, e muito menos comunga este livro o caldo indigesto de preciosismo tardo-simbolista, auto-intitulado neo-barroco, amante do bestialógico.
Com esse gesto, o poeta terá respondido melhor ao desafio do que o crítico. De fato, Marcos Siscar crítico talvez não concorde com este panorama da poesia brasileira contemporânea. Pelo menos, não concordava quando, um ano antes do Roubo, assinou um texto sobre “A cisma da poesia brasileira”, no qual se revelava otimista, capaz de apostar em que a profusão de má poesia e os muitos reparos críticos ao que boiava nessa grande maré de coisas ruins fossem, em si mesmos, um índice da importância da mesma poesia má ou, quem sabe, um sinal de que a questão da qualidade merecesse ficar em segundo ou terceiro plano perante a vitalidade que a agitação lhe sugeria.[2] O que é estranho, pois um homem atento ao quintal não deveria confundir agitação com vida, desde que tivesse visto como o rabo cortado de uma lagartixa se debate sozinho, enquanto o corpo a que pertencia passa ao largo, em grande carreira.
O roubo do silêncio é um livro importante não só pelos seus momentos altos de realização, mas porque não é solidário ao geral, porque ensaia um produtivo discurso de fronteira e porque o seu caráter claramente defensivo pode ser lido como uma afirmação arrevezada da centralidade da poesia no contemporâneo. Pato ou serpente, está muito acima do nível viscoso da água.


[1] João Adolfo Hansen, na orelha de O roubo do silêncio. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.
[2] Publicado em Sibila — Revista de Poesia e Cultura, ano 5, n. 8-9, 2005 e disponível em http://www.germinaliteratura.com.br/sibila2005_acismadapoesia.htm .

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Macau


Macau



[texto publicado no jornal Hoje Macau, Macau, v. 1099, 01 mar. 2006 –
Depoimento sobre os dias em que lá estive em busca de papéis de Camilo Pessanha]




Era uma pequena cidade em algum lugar do mundo imaginado. Não sei de onde ganhou as casas amarelas, mas as telhas brilhantes lhe foram emprestadas por poemas lidos numa tradução francesa. Uma baía saíra de algum mapa apenas entrevisto, para enfiar mais do que era viável pela terra adentro. Esta era, a princípio, a única concreta geografia desse lugar que se localizava (devo confessar) um pouco mais a leste e muito mais ignorantemente ao norte.

Que fan­tasmático recorte de terra e mar tinha eu construído, afinal, para abrigar por momentos o espírito de um andarilho que findou por se internar no Japão e para sempre o de um seu amigo, poeta, dono de um cãozinho malhado e um tanto feiote!

De nada tinham adiantado as fotografias mais recentes. Nada podiam contra a imaginação dos primeiros tempos, disposta a projetar sobre todas as imagens o calor abafado das cartas antigas. Mas eis que numa tarde de dezembro andava eu mesmo por aquelas ruas, ao acaso da desorien­tação e da falta de método turístico. E no ritmo dos tropeços e dos sustos, começou aos poucos a surgir uma cidade ligei­ramente mais real. Eram pedras, pessoas, cheiros — cascatas de chei­ros e de cores e ruídos de uma língua misteriosa. Sob a aluvião do novo, por momentos não houve quase lugar para os dois mor­tos, embora um deles lá estivesse, a dois passos da minha rota quotidiana, quietinho, embaixo da terra recal­cada, sorrindo por não mais lhe doer nada.

A três dias da data da partida, e a outro tanto da chegada, pouco restava de espaço onde pudesse florescer um sonho: ou o antigo, agora incapaz de projetar-se nas faces da ci­dade real  —  ou um outro e novo, embalado no ritmo dos passos que não teria tempo de acumular ao longo dos bazares, do jardim ou da linha convulsa dos cassinos.

Muitos dias depois, já de volta ao meu quarto em Portugal, em meio aos manuscritos e às anotações, como o assunto fosse difícil e o sono fugisse, conheci melhor Macau. Era a sua Revis­ta de Cultura, eram os livros do Boxer, eram as traduções do Pe. Guerra. Tudo eram amigos, ou pelo menos conhecidos de outras viagens notur­nas e insones. E vários novos, trazidos na bagagem, ou extraídos de uma estante de alfarrabista. Um, inclusive, que comecei a ler ainda quando hóspede da casa que tem o nome de jardim, durante as longas noites brancas de jetlag, enquanto esperava os chineses trazerem os pássaros ao Pa Kap Chow, às seis horas da manhã: o livro de crônicas de João Manuel Amorim, O Vento e as Estátuas.

Pude então reviver, em várias épocas e vários planos, a distante e sufocante Macau, já agora filtrada pelas palavras dos que melhor a conheceram e alimentada pela memória, que é sempre generosa e pródiga: uma cidade mais intensa e mais colorida do que a que percorri, me perdendo pelas ruas até deparar, de repente, com uma igreja sem nave, tragicamente erguida no centro de uma praça; ou descobrir, por uma fresta numa janela, um quarto que podia ter sido avistado também por Pessanha, nos bricabraques, em busca de mais uma obra de arte para ficar depois encaixotada no porão de um museu de Coimbra.

Faz agora quinze anos que visitei Macau pela primeira e única vez. Com os papéis que pude ou não pude ler — interrogando contra a luz quantas palavras indecifráveis! —, com o meu próprio desespero da leitura de uns poucos papéis espalhados nas duas pontas do velho mundo, tentei depois reconstruir os gestos todos deixados pela mão do morto; tentei ressuscitar o que fora uma vez escrito e rasurado e depois outra vez anotado, numa seqüência cujo fim não parece possível decidir.

Cumpria, nesse trabalho, um voto obscuro, feito no cemitério de São Miguel, junto com uma oferenda: o ter tentado, com base em testemunhos vários, recompor o que fora aquela vida, os horizontes que mirava e os que lhe fugiam a cada ano de desgosto com a pátria distante, que insistiria sempre no último insulto de não expor nem valorizar o resultado de uma vida de buscas: a coleção chinesa, só com custo aceita pelo Estado português, para dormir sepulta, em Coimbra, como o poeta dormiria, até hoje, em Macau.

Uma dupla oferenda, na verdade, pois era também ao outro, ali enterrado com o pai: o gesto necessário de lhe tirar das costas a acusação infame de ter sido o responsável pela dispersão do que tinha guardado ao longo de anos de pobreza e isolamento. Ainda hoje corre a lenda. Tanto é mais fácil jogar a culpa para os ombros do filho, ainda mais que mestiço e ilegítimo, do que reconhecê-la nos amigos portugueses, executores omissos de um testamento que se conservou, mas não se cumpriu.

Como pude, cumpri o voto, com a edição, em 1995, de todos os versos e versões assinados por Pessanha ou por outros atribuídos a ele.

Muitos anos depois, o único documento que em vão busquei em Macau veio finalmente à luz. E há poucos meses pude ver que a parte do trabalho que eu não pude fazer agora está feita, numa edição de Macau: A poesia de Camilo Pessanha, de Carlos Morais José e Rui Cascais — volume que permite que agora contemplemos os que talvez sejam os últimos gestos textuais de Camilo Pessanha que poderemos recobrar: as correções que ele fez aos seus versos publicados na revista Centauro.

Com base nesse trabalho, o meu próprio terá de ser, com a alegria imaginável de poder levar a cabo uma empreitada de tantos anos, refeito, emendado, acrescido. É a tarefa a que, em breve, me dedicarei.

Quando me debruçar sobre as páginas da Centauro, generosamente reproduzida pelos pesquisadores, por certo visitarei outra vez na memória, agora com a nostalgia que o longo intervalo permite, a sala bem iluminada do Arquivo Histórico; as ruelas do bazar que talvez já não exista na sua confusão de comidas, roupas e bicicletas; a água barrenta do grande rio que contemplei nos longos passeios entre as leituras; a silhueta inesquecível da ponte; o ruído, ao meio-dia, das pedras do mahjong; a balbúrdia dos pássaros e dos cantores, no raiar do dia, junto à gruta de Camões.



março, 2006

sábado, 30 de junho de 2012

O haicai de David Rodrigues


PREFÁCIO
a Respirar: 101 haiku, de David Rodrigues


Já se disse que o haiku é a arte de dizer o máximo com o mínimo. Entretanto, a verdade é mais sutil: haiku é a arte de, com o mínimo, obter apenas o suficiente.
O poeta de haiku não busca obter um poema que se pareça com uma fórmula algébrica, um enigma ou uma síntese fulgurante de idéias. Pelo contrário, sua arte consiste em colocar na frente dos olhos ou entre as mãos do leitor, vivo e palpitante, um momento único, concreto, de plenitude sensória e emotiva. Para fazê-lo, sabe que o caminho mais seguro é renunciar ao brilho das palavras e à exibição de perícia técnica.
Na sua brevidade, o haiku apenas diz o que precisa ser dito, traz para o leitor uma pequena constelação de palavras comuns, centrada numa sensação. Abre para a sua imaginação um registro objetivo e freqüentemente lacunar, que se esgota em si mesmo: uma folha que cai aos seus pés faz o poeta erguer os olhos para o outono, as nuvens de primavera imprimem manchas de sombra sobre os campos verdes, a sombra do avião atravessa o campo. Não é preciso explicar nada. Basta imaginar, recompor a cena, a circunstância em que se produziu o registro. Por isso já se disse do haiku (e do seu irmão mais velho, o tanka): são três linhas em busca de um contexto.
A leitura e a compreensão do haiku, assim, mantêm-se fácil e voluntariamente no nível mais simples e raso. Na verdade, se a leitura não puder manter-se no nível da denotatividade, do registro pontual e verdadeiro, não se pode falar com propriedade em haiku. No entanto, isso não impede que algo se mova ali. Algo mais amplo, pungente ou  risível, doce ou amargo. Não impede que a fragilidade humana, a piedade, a epifania sensória, o desamparo, o êxtase perante a beleza do mundo, a esperança, a resignação e tantos outros estados de espírito ou potências morais apareçam, em relance, acima, abaixo, ou dançando entre as palavras simples. É essa oscilação entre o solo banal de um registro direto e lacunar e a pressão que sobre esse registro exerce a energia da vida do corpo e do espírito que dá o sabor especial do haiku.
Bashô definiu a arte do haiku como um modo de estar no mundo. Quando esse modo é obtido, o sentimento interior se funde com as coisas exteriores e o poema brota como um registro direto da realidade pontual. Aí está o nervo e a especificidade do haiku: se a fusão for perfeita, isto é, se o exercício espiritual resultou, o sentimento interior e o objeto apreendido pela percepção formam uma unidade. Tomar consciência de um é trazer junto o outro, ainda que não haja necessidade de interpretar um pelo outro, de traduzir um no outro. Quando se consegue esse estado de graça, em que o ‘eu’ desaparece, ou pelo menos sai do primeiro plano, e a emoção se cristaliza à volta das palavras e ali fica vibrando, à espera do leitor que possa abrir-se em disponibilidade para recebê-la, brilha, sem alarde, a luz própria e a verdade do haiku.
Por isso mesmo, Bashô advertia: “se o espírito, pelo contrário, não se depurou, a visão própria entra em ação e a pessoa tende a buscar a perfeição no arranjo das palavras. E isso constitui apenas a vulgaridade de um espírito que não se esforça para encontrar a verdade.” Entre aquele objetivo e este perigo situa-se a dificuldade e a alegria do haiku. Evitar o segundo para atingir o primeiro, não só na poesia, mas também no exercício da vida diária, é o que se denomina “o caminho do haiku”.

David Rodrigues o tem buscado. Este é o segundo marco, o segundo padrão que ele planta nesta nova terra da poesia breve à maneira japonesa. É certo que, para continuar no registro metafórico, este poeta ensaia o equilíbrio entre o outro e o próprio, entre o estranhamento e o compromisso, entre a praia conhecida e a ilha desejada. Neste livro, a oscilação se insinua inclusive na divisão das partes. Uma busca a alteridade maior propiciada pelo exercício do espírito do haiku, que exige a observação objetiva e despida de atavios; outra intenta o aproveitamento solto da forma da composição, deixando maior campo à reflexividade, apostando na comparação e na metáfora. A primeira é o momento do haiku; a segunda é a hora do epigrama lírico em forma de haiku, que ostenta uma beleza própria e só conserva do haiku, quando muito, a maneira elegante e concisa do corte. Uma terceira esboça o equilíbrio possível entre os pólos – e constitui a nota diferencial e o sentido deste livro.
Não vou referir aqui os momentos altos do volume. São vários e o leitor os descobrirá com facilidade, de acordo com a sua inclinação. E ademais seria faltar ao desígnio que presidiu à sua elaboração separar de um lado os haiku que me parecem especialmente bem realizados como haiku, daqueles poemas que me soam fortes em seu registro específico, ainda que outro. O que o poeta buscou aqui foi um tempero delicado e eclético, em que a poesia é a base e a emotividade amorosa a variação. Que seja, pois, assim a leitura. E que o prefácio apenas saúde o novo livro, o poeta e o leitor que, por certo, fará no livro o seu próprio caminho e dele sairá, como o poeta da luz do sol da primavera, uma pessoa diferente da que nele entrou.

                                                                                  Campinas, outubro de 2008


Ref: David Rodrigues. Respirar: 101 haiku. Vila Nova de Gaia: Corpos Editora, 2008.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Oliveira Martins e o Brasil


Oliveira Martins e o Brasil

[publicado na revista Remate de Males, 22 (2002), e reproduzido no volume Estudos de literatura brasileira e portuguesa (Ateliê, 2007)]

   Na história da cultura portuguesa do século XIX, um dos atores coletivos mais importantes é o que se convencionou chamar ‘Geração de 70’. Por esse nome, designa-se um conjunto de  intelectuais que são assim reunidos por neles se reconhecer o desejo de proceder a uma campanha de reforma da nação, a partir de ideais republicanos ou socialistas. Reforma essa que se apresenta primeiramente como um esforço de submeter a processo a história do país e da constituição do império ultramarino.
   O momento central de constituição pública do grupo, que reflete inclusive no rótulo atribuído à ‘Geração’, foram as Conferências Democráticas, de 1871. Do programa bastante amplo, como se sabe, apenas cinco foram proferidas: a de abertura, a de Antero, sobre as Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos; a de Augusto Soromenho, sobre A literatura portuguesa; a de Eça, sobre A nova literatura; e a de Adolfo Coelho, sobre O ensino em Portugal. Suspensas por ordem governamental, o que delas restou, além do programa ambicioso e revolucionário, foi a atitude comum que animava os vários textos: promover, pela denúncia do estado atual de estagnação e atraso da cultura portuguesa, os valores modernos, científicos e revolucionários. Nesse sentido, o texto que sintetiza o programa de revisão histórica das Conferências e da ‘Geração’ é mesmo o de Antero de Quental, e não creio que exagere ao dizer que é esse talvez o texto capital da cultura portuguesa no século XIX, pois representa, simultaneamente, um ponto de chegada e um ponto de partida. De chegada porque dá nova síntese, numa clave revolucionária, a temas e questões que já vinham de Herculano. De partida, porque é das teses polêmicas desse texto seminal que nascem, por decorrência ou por contradição, algumas das obras fundamentais para a definição da cultura portuguesa do final do século XIX e começo do XX.
   O texto de Antero desenvolve, de modo brilhante, o que depois se tornou o tema central do tempo: o diagnóstico da decadência portuguesa. Essa é a palavra‑chave no pensamento dessa época, e a história das várias modalizações do sentimento de decadência na segunda metade dos oitocentos já foi muito bem feita por António Machado Pires, num livro publicado em 1978.[1]
   Dentro do propósito crítico e revolucionário que se reconhece sob a denominação de ‘Geração de 70’ – e necessitando, portanto, desse enquadramento, para ser adequadamente compreendido –, avulta um conjunto de trabalhos que, pelo seu escopo, pela sua grandeza e pela presença decisiva que teve e ainda tem na cultura luso‑brasileira, atrai de imediato a atenção de quem quer que se interesse pelo estudo das coordenadas ideológicas do final do século XIX. Trata‑se da obra de Oliveira Martins.
   Com o mesmo objetivo com que foram pensadas as “Conferências”, isto é, com o objetivo de educar o público, de promover a sua atualização como estratégia para reformar a sociedade e reverter a decadência nacional, projetou e compôs Martins uma vasta “Biblioteca das Ciências Sociais”, em que os volumes se referem mutuamente e cobrem campos muito amplos, da antropologia à crematística, da etnologia à história do sistema colonial português, da história de Roma à crônica do Portugal seu contemporâneo.[2]
   No centro desse grande painel, como um eixo sobre o qual giram todas as questões maiores, está uma questão e um país. O país é Portugal; a questão é a decadência e a tentativa de discernir algum caminho possível para revertê‑la. A alicerçar o conjunto, fazendo de livros de divulgação (livremente adaptados dos autores mais prestigiosos do tempo) obras que apresentam interesse próprio, está o estilo poderoso de Oliveira Martins, a arte verbal que faz dele, na opinião de António Sérgio, o "mais rico e substancial de todos os prosadores da nossa língua".[3]
   É talvez ao estilo, à qualidade artística do texto de Martins que se deve atribuir parte do persistente interesse pelos seus livros em Portugal e, principalmente, no Brasil. A História de Portugal lê‑se como um romance emocionante, cheio de suspense, de presságios e de lances dramáticos e pitorescos. As suas biografias dos homens de Avis nada ficam a dever, em termos de arte verbal, às boas novelas históricas oitocentistas. Daí que, ainda em 1913, na resposta a um inquérito literário, um intelectual brasileiro, Dantas Barreto, listasse, entre os seus autores preferidos, Oliveira Martins, juntamente com Shakespeare, Goethe, Camões, Alexandre Herculano e Eça de Queirós...[4] Mas, não creio que seja só o estilo de Martins que responda pela sua permanência no centro do interesse da cultura brasileira do final do século XIX e início do XX. Penso que, além do estilo, interessa ao leitor brasileiro a sua peculiar visão dos rumos da cultura portuguesa e do que foi a colonização do Brasil.
   Hoje não são certamente muitos os que, no Brasil, tiveram a oportunidade de conhecer diretamente o texto e as ideias de Martins. Mas essas ideias são ainda parte da cultura brasileira de uma forma muito mais intrínseca do que se poderia parecer a uma primeira vista de olhos.
   Um episódio ocorrido quando do centenário de morte de Oliveira Martins pode servir aqui de exemplo.
   Em 1995, no âmbito das homenagens, foi publicado um volume reunindo a correspondência entre ele e seu amigo e companheiro de geração, Eça de Queirós.[5] A publicação, de caráter estritamente acadêmico, provocou uma inesperada resenha de Antonio Callado, na Folha de São Paulo. Inesperada porque poucos dias antes o jornal trouxera uma matéria sobre o livro, e porque a coluna do autor de Quarup pouco se ocupava de assuntos relativos à cultura portuguesa, e menos ainda de temas ou textos acadêmicos.
   O notável no texto de Callado era o tom: expunha aí o escritor brasileiro toda a sua calorosa admiração pela prosa de Martins, de que transcrevia várias passagens, deixando evidente seu fascínio. Mais do que isso, servia a resenha de pretexto para que apresentasse uma confissão de o quanto a obra do escritor português tinha marcado sua visão de Portugal e das raízes históricas da civilização brasileira: "talvez eu nunca tenha sentido tanto a ligação lusitana como quando li, no meu voluntário exílio em Londres, durante a guerra, a História de Portugal de Oliveira Martins", escreveu ele.
   Outro ponto interessante dessa resenha é que nela Callado atribuía à influência de Martins o tom galhofeiro com que, vez por outra, na sua coluna, tinha tratado Portugal, principalmente quando se ocupou de comentar o filme Carlota Joaquina (1995)
   Ora, além de nos dar um depoimento eloquente da persistência, no Brasil, da influência dos livros de Oliveira Martins, esse texto de Callado, ao referir o filme recentemente lançado, aliava ao testemunho pessoal um testemunho cultural, pois Carlota Joaquina era a mais recente atualização artística grandemente tributária da História de Portugal. De fato, quem quer que tenha lido as obras de Martins percebe imediatamente que, apesar do esforço enorme de Oliveira Lima para recuperar, numa clave mais positiva, o papel e a figura de D. João VI, Carlota Joaquina bebe em Martins todos os estereótipos sobre os quais monta a sátira da corte e da balofa figura do monarca e sua mulher ninfomaníaca.
   Para alguns intelectuais portugueses que visitam o Brasil, essa permanência das obras de Martins no horizonte da cultura brasileira causa sempre algum espanto. Um bom exemplo ocorreu nesta mesma ocasião: o Prof. João Medina, que por acaso estava em São Paulo quando Callado publicou a referida resenha, dirigiu‑lhe uma longa carta, manifestando seu espanto por Martins ser assim uma referência tão central para o intelectual brasileiro, e aproveitando a ocasião para lhe apresentar o que julgava ser de fato o lugar de Martins na historiografia portuguesa... Pondo de lado o caráter anedótico do episódio, não deixa de ser curiosa essa permanência do historiador português como presença ativa. Afinal, desde 1879, que é o ano da publicação da História, mudaram os paradigmas que regem o discurso histórico e aumentou muito o conhecimento documental sobre as várias épocas retratadas por Martins. Entretanto, basta observar as bibliografias dos programas de literatura portuguesa de várias universidades brasileiras no final do século XX para ver que em muitas ainda constam, como textos referenciais, os livros de Oliveira Martins. A que se deveria isso? Como explicar a persistência da visada histórica do escritor português ao longo de um século inteiro?
   Reservando sempre o recurso à força do estilo, à evidente qualidade literária de sua obra, há outras razões para que ele tenha sido tão lido e meditado, principalmente no Brasil. Uma delas é que, como se reconhece cada vez mais claramente nos dias de hoje, encontra‑se em Martins uma profunda e original interpretação da sociedade portuguesa.
   Malgrado o que possa haver de incorreto, de lacunar, do ponto de vista documental, e mesmo de apressado e tendencioso no julgamento dos dados de que dispunha, ainda parece plausível a afirmação de António José Saraiva, "ele entendeu que a realidade se processa de dentro para fora, da semente para a flor, ao passo que os historiadores comuns, julgando‑se cientistas, procedem de fora para dentro, como é habitual na análise científica, mas afastando‑se cada vez mais daquilo que pretendem explicar (...) É por isso – continua Saraiva – que, em comparação com esta História de Portugal, as outras, à sua luz, nos aparecem como sombras imperfeitas."[6]
   Por outro lado, em nenhum outro escritor português do século XIX se poderá encontrar uma crítica tão feroz, sistemática e radical do seu país e da sua cultura. Assim, ou porque os nossos escritores reconhecessem a propriedade da intuição martiniana sobre a constituição da sociedade portuguesa, ou porque Martins oferecesse, ao sentimento antilusitano exacerbado no período republicano, farto material de combate e embasamento crítico, – ou por essas duas razões combinadas, foi o escritor português aproveitado muito extensamente por pensadores que, no início do presente século, se dedicaram a refletir sobre o Brasil e sobre o significado, na nossa vida política e social, da herança da colonização portuguesa.
   Seja como for, do que não há dúvida é que boa parte da literatura de caráter reflexivo sobre a sociedade brasileira, no final do século XIX e começo do XX, tem como referência importante, a negar ou a afirmar, a obra histórica de Oliveira Martins. Suas teses, muitas vezes já desvinculadas de seus textos, formam uma espécie de solo comum de algumas das mais fortes interpretações do sentido da herança portuguesa na formação do Brasil. Dissolvidas, aclamadas ou contestadas, suas ideias parecem ter penetrado profundamente na cultura do país. E é por isso que a leitura de qualquer dos livros de Oliveira Martins provoca ainda hoje em qualquer brasileiro culto, como provocou em Antonio Callado, uma espécie de efeito de reconhecimento: está ali, sistematizado num conjunto coeso, muito do que no Brasil se foi pensando do que foi Portugal na história da civilização ocidental.
   Um comentário rápido de alguns textos e documentos da cultura brasileira do final do século XIX e começo do século XX permitirá aquilatar melhor a receptividade que tiveram no Brasil os livros de Oliveira Martins. Antes, porém, já que os seus livros não continuam talvez a ser tão lidos, vale a pena proceder a um resumo das suas ideias centrais sobre Portugal e, principalmente, sobre o Brasil.
   A História de Portugal é um livro de cuja leitura, nas palavras de António Sérgio, uma pessoa sai confusa e perturbada, com "cinco impressões essenciais" sobre o país: em primeiro lugar, um sentimento geral de desencanto, de incapacidade, de bolor, desde o século XVI até agora; depois, a ignomínia dos lauréis da Índia; e o [...] ingênito sebastianismo; e a negra educação dos jesuítas; e a série mofina dos reis de Bragança, desde D. João IV a D. João VI".[7]
   É verdade. De um modo geral, a História de Martins é mesmo um panorama triste e pessimista da vida da nação. Mas cheio de cores, de ação e lances romanescos. Forma a sua espinha dorsal, mais do que a narração objetiva dos acontecimentos dispostos em ordem cronológica, uma série de quadros impressivos, dramáticos, mais ou menos trágicos e relativamente completos em si mesmos. Do meu ponto de vista, além das que Sérgio assinalou há uma sexta "impressão essencial": a de que o fio condutor da narrativa é a exposição de uma persistente e equívoca loucura coletiva, que acaba por dirigir o fluxo dos acontecimentos marcantes na história pátria. Persistente, porque não é privativa de nenhuma das casas reinantes; e equívoca porque, de acordo com o momento, ora parece bastante desprezível, ora puramente trágica, ora sublime.
   A maior parte do livro, como já se depreende das impressões de Sérgio, gira à volta do tema da decadência portuguesa. Tudo o que sobreveio depois de 1580 é visto apenas como um longo estertor, em que se debate inutilmente um indivíduo condenado, um demorado e arrastado processo de decomposição de um corpo social já sem vida própria. E mesmo antes, desde D. Manuel, a narração é cheia de prefigurações da desgraça, de que Alcácer‑Quibir é apenas o desenlace formidável.
   Outra tese fundamental que organiza a visada martiniana é a de que, inaugurado sem uma base rácica ou geográfica, Portugal se afirma como nação com a dinastia de Avis, quando encontra e realiza a sua vocação marítima.
   É no desenvolvimento da vida marítima, ou melhor, na transformação de Portugal de país agrário em país dedicado ao comércio por mar que Oliveira Martins vai radicar a própria sobrevivência da nação portuguesa, garantida pela Revolução de 1383: "Portugal foi Lisboa, e sem Lisboa não teria resistido à força absorvente do movimento de unificação do corpo peninsular", diz ele na sua História e completa, no Portugal nos Mares: "Portugal é Lisboa, escrevi eu algures. Devia ter dito antes que Lisboa absorveu Portugal, pois esta expressão corresponde melhor à verdade histórica. (...) Desde que a vida marítima e ultramarina nos absorveu de todo, a capital e o seu porto, como um cérebro congestionado, mirraram as províncias. Portugal passou a ser Lisboa: uma cabeça de gigante num corpo de pigmeu".[8]
   Mas justamente nessa frase já se mostra o destino trágico da nação. Formado assim para o mar, sem corpo que sustentasse o desenvolvimento desproporcional da ciência e do comércio marítimo, Portugal duraria enquanto durasse o desígnio que o criou: a exploração e o domínio do oceano.
   É um curto período, esse da pujança da nação. Do ponto de vista de Oliveira Martins não vai além do reinado de D. João II. Já no tempo de D. Manuel, a tônica da sua narrativa é a senectude e a decadência. Tanto é assim que o livro V enfeixa sob o título de "A Catástrofe" os reinados de D. Manuel, D. João III e D. Sebastião. Na verdade, os três podem ser lidos como encarnação da tríade responsável pela decadência portuguesa, conforme fora descrita por Antero, no famoso texto das Conferências Democráticas: D. Manuel é o desfecho da aventura marítima, com a exploração criminosa da Índia; D. João III é o triunfo do catolicismo tridentino, jesuítico e inquisitorial; e D. Sebastião é a loucura, que só se torna realidade social, coletiva, devido ao regime político absolutista e ao fanatismo religioso que o embasaria.
   Desse ponto de vista, com a catástrofe de África acaba Portugal – isto é, acaba aquela primeira nação, no sentido que essa palavra tinha em seu pensamento. Portugal passa a ser, quando muito, uma nacionalidade.[9] A Restauração de 1640 produzirá um outro ser político, sobre o mesmo território e com o mesmo nome e língua. É o que lemos na Introdução à História, quando o Portugal restaurado é comparado à Bélgica, fruto artificial das necessidades do equilíbrio europeu, e reduzido às proporções de um protetorado inglês encravado na Europa, cujos feitores serão os reis da dinastia de Bragança.
   Uma das mais fortes influências de Oliveira Martins se exerceu justamente nessa assimilação da história de Portugal – nascimento, crescimento e morte – à história das dinastias de Borgonha e Avis, relegando para o domínio da farsa insubsistente a narração dos sucessos da época bragantina.
   A pergunta que, nesse quadro, se impõe imediatamente é: como se processou a colonização do Brasil? Como foi possível a construção da nova terra portuguesa no mesmo momento em que a metrópole morria, deixava de ser um organismo vivo? O que o Brasil herdou de Portugal e no que o superou ou ficou inferior? As respostas a essas perguntas, ou a algumas delas, são dadas, por Martins, em outro volume, que se intitula O Brasil e as colônias portuguesas e que foi publicado pela primeira vez em 1880.
   Para bem compreender as articulações centrais do pensamento de Martins sobre o Brasil, distingamos logo de início algumas questões de fundo. Em primeiro lugar, para o historiador Brasil e África formavam um verdadeiro sistema, em que o lugar determinante era ocupado pelo Brasil. O domínio africano foi, para ele, uma clara função dos interesses colonizadores da América: uma fonte de mão de obra, e pouco mais do que isso. A esse sistema de exploração colonial opunha‑se na economia portuguesa, com ele coexistindo, um outro: o Império da Índia, que Martins descreve como uma empresa anárquica, baseada na conquista, no saque e no comércio.
   Cada um desses sistemas representava um lado do gênio nacional português, uma face de um único ser bifronte. Portanto, não se pode entender perfeitamente a narrativa da colonização do Brasil, segundo Martins, se não tivermos em mente a sua narrativa do império da Índia. Num caso, o desastre, a tragédia; no outro, o sucesso e a obra imorredoura. Assim, enquanto na Índia tudo eram miragens e iniquidades, onde "os portugueses davam larga ao seu gênio guerreiro e mercantil; na África e na América obedeciam aos impulsos mais felizes do seu gênio indagador e audaz”.[10] Já aqui se detecta o problema principal dessa formulação, que se pode sintetizar nesta pergunta: nos termos da visão martiniana, como a mesma nação, que desaparecerá como tal em 1580, pôde encontrar a energia necessária à grande obra da colonização brasileira?
   No quadro conceitual da História de Portugal, o Brasil vai aparecer como uma espécie de persistência possível dos caracteres positivos que o autor atribuía aos homens do período de Avis. Tudo se passa como se, perdido o tônus nacional na metrópole, tivesse sido ele preservado na população portuguesa da América, que, afastada da fonte de corrupção que era a corte, manteve, dirigia para o sertão interior "a mesma tenacidade com que antes [os portugueses] tinham querido desvendar, e tinham desvendado, os segredos do mar". Era essa tenacidade, essa força do gênio lusitano "que os impelia agora a descobrir os segredos desses vastos e espessos sertões da África e da América austrais."
Essa idéia recorre em várias partes do livro. Por exemplo, quando trata do Nordeste brasileiro, escreve Martins esta frase, devidamente enfatizada cinqüenta anos depois por Gilberto Freyre: "a população, especialmente no Norte, constituiu‑se aristocraticamente: isto é, as casas de Portugal enviaram ramos para o Ultramar, e desde todo o princípio a colônia apresentou um aspecto diverso das turbulentas imigrações dos castelhanos na América Central e Ocidental". Já quando trata do Sul, descobre sempre nos paulistas as qualidades mais destacadas do período áureo da nação portuguesa: nos habitantes de São Paulo, diz ele, "a semente do gênio descobridor dos portugueses pudera medrar livremente, à sombra de um clima benigno e de uma colonização naturalmente agrícola".
   Mas essa semente não germinaria, seria destruída pela atonia geral portuguesa, ao longo dos séculos – como o foi no Norte, do seu ponto de vista – não fosse um caso fortuito que mudou o rumo da história do Brasil: a descoberta das minas de ouro. Eis como descreve ele a vitória do paulista sobre o nortista, que conduzirá, ao longo do tempo, à constituição do Brasil como nação autônoma:

   Na riqueza do ouro encontrou a população de S. Paulo uma força predominante, com que impôs a sua supremacia – como homogeneidade, como coesão, como originalidade e autonomia nacional – às províncias do Norte, cuja existência era artificial, na população toda estrangeira, quer nos brancos portugueses, quer nos negros africanos; artificial no regime do trabalho e natureza da cultura: cuja vida, enfim, era a de uma fazenda ultramarina de Portugal, amanhada e cultivada pelo gênio dos estadistas, e não a de uma nação nova existindo independente e autônoma, por virtude de uma população fixada e naturalizada no solo sobre que vivia.

   A nação brasileira, portanto, vai sobreviver graças à preservação, nos paulistas, do gênio descobridor português, fixado na terra e erguido a um lugar de poder pela descoberta fortuita das minas, no século XVIII.
   E por que São Paulo não se corrompeu, não integrou a corrente descendente em que Portugal mergulhou desde a segunda metade do século XVI? Perguntar isso é o mesmo que perguntar por que Martins pôde dizer que “o Brasil se salvou apesar dos Braganças reinarem em Portugal”.[11]
   Esse ponto não é devidamente esclarecido no texto. Em algumas passagens parece sugerir Martins que foi o caráter aventureiro de que logo se revestiu a vida paulista, com as entradas e bandeiras, que respondeu pela manutenção do gênio explorador português nessa parte do país, enquanto as demais o perdiam pela vida ociosa, apoiada na escravidão e dissolvida pelo luxo excessivo.
   De qualquer forma, o que importa notar é que, segundo Martins, "o espírito aventureiro dos paulistas foi a primeira alma da nação brasileira; e São Paulo, esse foco de lendas e tradições maravilhosas, o coração do país".[12] Graças a esse espírito aventureiro, haveria em São Paulo um germe de nação já no final do século XVI. Assim, para Martins, o Brasil se forma como nação forte na mesma época em que Portugal mergulha na mais profunda decadência. E se forma como tal por obra dos paulistas e por obra do acaso, que foi a descoberta das minas.
   Esse é o primeiro eixo, e o central, do livro sobre o Brasil: a narrativa da adaptação de uma das facetas do gênio português a um novo espaço geográfico, em que pôde sobreviver e desenvolver-se, preservado da decadência metropolitana. É por essa narrativa que O Brasil e as colônias portuguesas se integra no quadro mais amplo, de que também fazem parte a História de Portugal e a História da Civilização Ibérica.
   Um segundo eixo de articulação do texto de Martins é o que se dedica às circunstância particulares dessa adaptação, e que consiste na defesa da escravidão do negro e da guerra ao indígena. Dele decorre, em primeiro lugar, um sistemático combate à atividade jesuítica. Dele decorre também a parte menos legível do seu texto, que é a exposição reiterada de sua concepção da superioridade racial dos arianos e o esforço brutal para demonstrar, com base na literatura racista da época, o caráter pouco humano, ou inferiormente humano da raça negra.
   Quanto ao argumento racista, há pouco a dizer, mas a ele voltarei em breve. Já a concepção de que o índio representa um obstáculo à expansão ariana, que deveria ser assimilado ou simplesmente destruído, merece mais atenção, porque o combate ao jesuíta provém da concepção de que uma sociedade indígena "cretinizada" pelos padres representaria uma aberração histórica e a eliminação de qualquer possibilidade de o Brasil vir a ser uma nação civilizada.
   Isso, claro, porque, para Martins, civilizada significava, essencialmente, européia. De modo que o libelo anti‑jesuítico que perpassa toda a História de Portugal recebe aqui cor local e mais contundência, aliado à certeza de que a afirmação da igualdade essencial das raças humanas era apenas uma quimera do pensamento cristão, nada científica.
   Já no que diz respeito ao negro, o ponto interessante a notar é que, apesar das hoje revoltantes páginas racistas, há um momento no livro de Martins em que fala não o cientista social, não o ardoroso defensor das teorias da supremacia da raça branca, mas o historiador-artista. Trata‑se da descrição do quilombo de Palmares, página memorável em que, esquecendo‑se por instantes de todos os preconceitos, o escritor celebra a cidade negra.
   Afirmando que em Palmares temos o mais belo e heroico exemplo do protesto e da revolta dos escravos, chama‑lhe república, e diz que ali se tinha um agrupamento humano que bem merecia o nome de nação, e que se comparava, pela forma de organização, à Roma primitiva, e, pelo destino, à grandeza de Tróia.[13] Essa contradição entre os pressupostos teóricos e as necessidades da composição artística, tão fortemente assinalável nos vários livros de Oliveira Martins, embora extremamente interessante, não poderá ser investigada aqui. Basta, no momento, registrar que o darwinismo social adotado pelo historiador faz com que, tirante essa página, todo o seu livro possa ser lido como uma decidida defesa da escravidão do negro e do extermínio das populações indígenas como etapas necessárias à construção de uma sociedade civilizada, européia, no Novo Mundo.
   Um último ponto a ressaltar, na visão martiniana do Brasil, é a sua preocupação constante com o futuro da grande obra portuguesa. De duas formas essa preocupação se manifesta, no que diz respeito ao Brasil seu contemporâneo. Por um lado, Martins se preocupa com a falta de um passo necessário e decisivo para a plena constituição da nação brasileira: a diversificação da economia, que ele considera ainda de moldes coloniais, fundada na monocultura, primeiro do açúcar e então do café. Por outro lado, assusta‑o a possibilidade de fragmentação do vasto território, devido a uma política de imigração que ele considerava inadequada. Como o Império incentivasse a imigração dos países nórdicos, defende o incentivo à imigração de italianos e espanhóis, como forma de promover a homogeneização da população, reforçando o predomínio do caráter latino na nacionalidade brasileira. Mas esse é um aspecto da sua visada que não será enfocado aqui, pois não diz respeito à história pregressa do Brasil, e sim ao seu futuro e permanência enquanto unidade nacional.
   Tendo traçado o que julgo serem as teses fundamentais de Oliveira Martins, é o caso, agora, de passar à segunda parte do trabalho, isto é: de tentar observar algumas de suas repercussões e modalizações em textos brasileiros.
   Logo num primeiro momento, o diálogo com a obra de Martins sobre o Brasil encontra uma expressão muito eloquente na obra fragmentária de Eduardo Prado. Amigo pessoal de vários integrantes da Geração de 70, Prado teve longa e íntima convivência com Martins e com Eça de Queirós.
Monarquista, católico, patriota exaltado, Eduardo Prado não podia aceitar a condenação martiniana da Companhia de Jesus e da sua obra catequista. Como não podia também deixar de valorizar, na obra do amigo português, a exaltação dos paulistas como a base da nacionalidade brasileira e a melhor expressão do gênio português transplantado para a América. Assim, se dedicou boa parte de seu tempo a estudos sobre os jesuítas, no intuito de mostrar, contra a opinião de Martins, a importância da obra catequista para a definição da nacionalidade brasileira, também tratou de corrigir a opinião daquele escritor sobre a forma e o sentido da mestiçagem entre o europeu e o índio.
   Entre os vários trabalhos de Eduardo Prado, há um texto que interessa especialmente. Trata‑se de uma conferência pronunciada em 1896, intitulada "O Catolicismo, a Companhia de Jesus e a Colonização do Novo Mundo".[14] Veem-se aí retomadas algumas teses de Martins: o heroísmo tingido de uma ponta de loucura, que levou Portugal a realizar uma tarefa desmedida para o seu tamanho e capacidade populacional, e a reafirmação do papel central de São Paulo para a constituição do Brasil. Mas o que é novo é a defesa intransigente da Companhia de Jesus, responsável, entre outras grandes obras por duas, que Prado destaca e que crê relacionadas: a fundação de São Paulo e a domesticação do índio, que permitiu a mestiçagem cabocla, por ele considerada a origem da força específica que o próprio Martins descobrira na população paulista.
   A tese mais interessante desse trabalho de Eduardo Prado é, porém, aquela que explica o que ficara mais ou menos inexplicado no texto de Oliveira Martins: porque em São Paulo, e apenas em São Paulo, pôde‑se preservar o antigo heroísmo português, desaparecido na pátria‑mãe depois da morte nacional simbolizada no desastre de Alcácer‑Quibir.
   A explicação de Eduardo Prado vai em duas direções: de um lado, tem-se o elogio da mestiçagem, em que o branco entra com o cérebro mais desenvolvido e o índio com "a agudeza da sensibilidade dos seus sentidos e a agilidade elástica dos seus músculos", formando assim um tipo, não inferior, mas superior e mais adaptado à empresa de desbravamento que foi a dos paulistas.[15] De outro – e este ponto é muito importante –, a afirmação de que o isolamento de São Paulo em relação à costa teve papel decisivo na formação da nova raça. Isso porque a localização geográfica teria permitido simultaneamente que a sua população se mantivesse fora do "contato imediato com a gente do mar, forasteiros e aventureiros", cujo convívio era "corruptor e fatal", e que ali predominasse o europeu, pois o clima não lhe era tão hostil quanto ao nível do mar. Foi essa convergência de circunstâncias que, segundo Eduardo Prado, permitiu que no planalto se formasse o tipo adequado à colonização dos trópicos: o cabloco paulista. São Paulo foi, assim, uma "oficina de homens", e o berço da que poderia ser chamada a raça brasileira.
   A tese de que o isolamento de São Paulo foi responsável pela manutenção de qualidades que se perderam ou nunca chegaram a existir no litoral fará fortuna crítica, pois permite separar os portugueses do Brasil (devidamente mestiçados com o índio, é verdade), dos decadentes portugueses dos períodos filipino e bragantino, estigmatizados por Oliveira Martins.
   Compõe‑se, dessa forma, um quadro muito interessante, que persistirá pelo menos até os anos trinta do século XX: uma singular mistura de anti‑lusitanismo e de elogio das virtudes portuguesas dos fundadores e propulsores do progresso brasileiro. Ainda em Eduardo Prado não há anti‑lusitanismo, mas já nas fileiras republicanas ele será o tom dominante, e Oliveira Martins será muito frequentemente a referência mais forte do discurso anti‑lusitano e anti‑bragantino.
   O desolado quadro da decadência portuguesa traçado por Martins, conjugado à tese de Eduardo Prado de que o isolamento foi a forma pela qual se mantiveram, em alguma população brasileira, as boas qualidades étnicas do período heróico vai reaparecer num dos textos mais importantes da literatura brasileira do começo deste século: Os Sertões, de Euclides da Cunha. Mas já aqui o isolamento das populações interioranas não terá sempre um valor positivo, pois tanto servirá para preservar as boas qualidades renascentistas, quanto para cristalizar os vícios da decadência, transplantados para o Brasil ao longo dos séculos coloniais.
   Assim, na mesma linha de Martins e Eduardo Prado, na tipologia do homem brasileiro distingue Euclides o habitante do litoral e o paulista, nome que designa "os filhos do Rio de Janeiro, Minas, São Paulo e regiões do sul", que resultaram da melhor aclimatação dos primeiros portugueses e da absorção, por eles, das populações indígenas. Com o mesmo entusiasmo de seus predecessores, vai chamar a esses paulistas "cruzados das conquistas sertanejas", definindo‑os racialmente como os "mamalucos audazes". Os paulistas de Euclides, como os de Martins e Eduardo Prado, são essencialmente os habitantes do planalto. O isolamento geográfico era simultaneamente uma proteção militar – "a disposição orográfica (diz Euclides) libertava‑o da preocupação de defender o litoral, onde aproava a cobiça do estrangeiro" – e moral, contra a degeneração operada pelo clima litorâneo, que "delia num clima enervante" "a força viva restante do temperamento dos que vinham de romper o mar imoto".
   Mas se o isolamento fora benéfico na construção da raça paulista, tivera efeito diverso sobre as populações sertanejas do Norte. Lá, a falta de contato com outros agrupamentos humanos produzira monstruosidades, entre as quais a religiosidade mestiça, cujos "fatores históricos" o autor vê como um "caso notável de atavismo, na história". Segundo Euclides, que se apoia expressamente em Oliveira Martins para traçar o quadro da decadência portuguesa e dos fatores que a explicariam, "o povoamento do Brasil fez‑se, intenso, com D. João III, precisamente no fastígio de completo desequilíbrio moral, quando 'todos os terrores da Idade Média tinham cristalizado no catolicismo peninsular'".[16] Por se manterem relativamente isoladas, as populações sertanejas apresentariam, ainda nos tempos modernos, cristalizados, os vários momentos da loucura e degenerescência coletiva que foi a história de Portugal desde o reinado faustoso e já decadente de D. Manuel: "Esta justaposição histórica – diz Euclides – calca‑se sobre três séculos. Mas é exata, completa, sem dobras. Imóvel o tempo sobre a rústica sociedade sertaneja, despeada do movimento geral da evolução humana, ela respira ainda na mesma atmosfera moral dos iluminados que encalçavam, doidos, o Miguelinho ou o Bandarra. Nem lhe falta, para completar o símile, o misticismo político do Sebastianismo. Extinto em Portugal, ele persiste todo, hoje, de modo singularmente impressionador, nos sertões do norte."
   Portanto, enquanto os isolados do Sul cristalizaram o que de melhor havia na índole do português descobridor, guardaram os do Norte apenas a herança negativa, os vícios da metrópole decadente. E se, no primeiro caso, o contato intenso com outros povos e culturas, poderia ser nocivo à manutenção do caráter heróico dos mamelucos, já no segundo poderia ter amenizado talvez as taras herdadas dos portugueses decadentes que continuaram a colonização do Brasil.
   A tese de que o isolamento preservou no Brasil os traços heroicos do caráter português e permitiu preservar da decadência geral um significativo segmento da população da colônia terá uma larga fortuna e muitas modalizações, que entretanto pouco lhe acrescentam em termos de novidade.  Muito mais importante do que os desenvolvimentos das ideias de Eduardo Prado ou de Euclides, do ponto de vista da história da influência de Oliveira Martins no pensamento brasileiro do começo do século XX, é o que veio num volume publicado quase ao mesmo tempo que Os Sertões, mas que, não obstante a qualidade de sua reflexão, ficou quase esquecido ao longo de oito décadas. Trata‑se do ensaio A América Latina – Males de Origem, de autoria de Manoel Bomfim.
   Manoel Bomfim talvez seja ainda hoje mais conhecido como o co‑autor de Através do Brasil, livro de leitura escolar escrito de parceria com Olavo Bilac. Sua obra principal, porém, é o referido ensaio, que foi publicado em 1905, em Paris, e republicado em 1938.[17]
   Nesse trabalho, Bomfim desenvolve a tese de que o mal de origem da América Latina é o parasitismo das metrópoles, perpetuado, depois, no parasitismo das classes dominantes. Como avalia e resume Darcy Ribeiro, "Manuel Bomfim surgia com um livro sábio e profundo (...) em que demonstra cabalmente, dizendo‑o com todas as letras (...) que nossos males não vêm do povo. São, isto sim, produto da mediocridade do projeto das classes dominantes que aqui organizaram nossas sociedades em proveito próprio, com o maior descaso pelo povo trabalhador, visto como uma mera fonte de energia produtiva".
   Pretendendo dar do Brasil uma visão real, e não coada pelos preconceitos da antropologia e das teorias políticas europeias, Bomfim produz um discurso profundamente nacionalista e, por isso mesmo, nos termos daquele momento, profundamente antilusitano.
   E aqui aparece uma questão muito interessante. Como organiza Bomfim o seu discurso antilusitano? Apoiando‑se inteira e extensamente nas obras de Oliveira Martins. Dizendo assim, é difícil fazer ideia real do aproveitamento de Martins por Bomfim. É preciso olhar para as páginas do volume, para poder bem avaliar a interação dos textos: praticamente todas as inúmeras citações destacadas do corpo do discurso são do historiador português. Sílvio Romero, numa crítica virulenta ao livro, teve a pachorra de contar as linhas escritas por Bomfim e as que foram transcritas de Martins. Na terceira parte do livro, chegou a estes números: das 2.276 linhas, 1.114 são do historiador português. "Mais da metade!", exclama Sílvio, que concentra então suas baterias em Oliveira Martins, chamando aos seus dois livros principais, História de Portugal e História da civilização ibérica "dois panfletos histórico‑políticos (...), livros perniciosíssimos, causadores de males incalculáveis entre diletantes".[18]
   Comentando a crítica de Romero, Darcy Ribeiro escreveu: "Pouco depois de publicada, ela foi objeto de todo um livro de contestação do genioso Sílvio Romero. Nesta polêmica, Sílvio desanca Manoel Bomfim procurando demonstrar que ele é um completo idiota. Idiota era Sílvio, coitado. Tão diligente no esforço de compreender o Brasil, mas tão habitado pelos pensadores europeus em moda, que só sabia papagaiá‑los." É curiosa a crítica, porque silencia sobre o ponto central: a acusão de Romero de que Bomfim papagaiava Oliveira Martins.
   Ora, sem qualquer juízo de valor, é justamente esse aproveitamento tão intenso dos livros de Martins o que aqui mais interessa. É verdade que Bomfim discorda profundamente de Martins em alguns aspectos fundamentais da sua interpretação do Brasil. Principalmente das teorias racistas sobre a inferioridade congênita do negro. Mas a visão martiniana do que foi a história portuguesa e de quais os males principais da organização da sociedade da metrópole que se teriam transmitido ao Brasil é o verdadeiro eixo desse livro excepcional.
   O diagnóstico dos males de origem das sociedades latino‑americanas se processa segundo duas linhas argumentativas. Em primeiro lugar, vem a tese do parasitismo das nações ibéricas. Em segundo, a de que os males da sociedade brasileira se explicam em grande parte pelo que chamou de os remanescentes do parasitismo metropolitano, cujo lugar de expressão é o Estado brasileiro, divorciado das necessidades populares, e cujo traço político é o conservadorismo das elites.
   Para o desenvolvimento dos dois argumentos, a obra de Oliveira Martins fornece a base ideológica, quando não o próprio vocabulário. Mesmo a idéia do parasitismo ocorre repetidamente em Martins, em passagens que são reproduzidas e, às vezes, repetidas em pontos diferentes do livro. Como esta: "Enxame de parasitas imundos, desembargadores e repentistas, peraltas e sécias, frades e freiras, monsenhores e castrados...(...) Portugal quase que se tornara um comunismo monástico, em que as classes privilegiadas, fruindo todos os rendimentos, distribuíam comedorias à nação sob a forma de empregos e outras." Essa passagem, por exemplo, comparece duas vezes no livro de Bomfim: primeiro para comprovar o caráter parasitário interno à própria sociedade metropolitana; e depois, quando trata do Estado brasileiro, vemo‑la novamente, agora como fragmento de uma colagem com um trecho de O Brasil e as colónias portuguesas, de modo a demonstrar a transferência da praga metropolitana para o Brasil, com a vinda da corte de D. João VI. O trecho com que vem montada é bastante forte: "Uma nuvem de gafanhotos, que desde o século XVII devorava tudo em Portugal, e ia pousar agora no Brasil, para, em casa, o digerir mais à vontade..."[19]
   Demonstrado, dessa forma, o caráter parasitário das classes dominantes portuguesas com as citações de Martins, e assim apoiada a tese numa autoridade insuspeita, por portuguesa, Bomfim desenvolve o seu segundo argumento: o de que boa parte dos males nacionais são resultantes dos resíduos ou remanescentes da metrópole. Por esses termos, Bomfim entende os segmentos da sociedade que representam "diretamente os interesses parasitas", que constituem "uma parte da metrópole plantada na colônia". São eles que reprimiram os movimentos de emancipação real do país, pensa Bomfim, e foram eles que, conservadoramente, mantendo os privilégios parasitários, arranjaram a Independência, em acordos sem a participação popular. Na síntese do seu diagnóstico sobre os males das sociedades latino‑americanas, escreve Bomfim: "As classes dirigentes, herdeiras diretas, continuadoras indefectíveis das tradições governamentais, políticas e sociais do Estado‑metrópole, parecem incapazes de vencer o peso dessa herança; e tudo o que o parasitismo peninsular incrustou no caráter e na inteligência dos governantes de então, aqui se encontra nas novas classes dirigentes; qualquer que seja o indivíduo, qualquer que seja o seu ponto de partida e o seu programa, o traço ibérico lá está – o conservantismo, o formalismo, a ausência de vida, o tradicionalismo, a sensatez conselheiral, um horror instintivo ao progresso, ao novo, ao desconhecido, horror bem instintivo e inconsciente, pois que é herdado." Os resultados dessa herança eram muito semelhantes ao quadro traçado por Oliveira Martins, no Portugal finissecular. Apenas se atualizavam os termos: "O resultado desse passado recalcitrante é esta sociedade que aí está: pobre, esgotada, ignara, embrutecida, apática, sem noção do próprio valor, esperando dos céus remédio à sua miséria, pedindo fortuna ao azar -- loterias, jogo de bichos, romarias, 'ex‑votos'; analfabetismo, incompetência, falta de preparo para a vida, superstições e crendices, teias de aranha sobre inteligências abandonadas..."[20]
   Curiosamente, sucede com o texto de Bomfim o mesmo que com o de Martins: hoje já o estilo não é o nosso, nem as teses básicas parecem sustentáveis, nem os dados em que se apoiam muito confiáveis. Entretanto, muitos leitores brasileiros de hoje saem da leitura com uma forte impressão de realidade e adequação, e, pelo menos quanto a mim, parecem muito exatas estas palavras de Luís Paulino Bomfim, de 1993: "O grande drama do continente americano é que, nos dias de hoje, A América Latina de Manoel Bomfim, que deveria ser como um videotape em preto e branco do passado, se apresenta como uma reportagem a cores – e ao vivo – do presente."[21]
   Como se explica esse fenômeno? Tratar‑se‑ia de uma profunda intuição histórica, que se impõe até hoje apesar do instrumental analítico? Ou apenas de uma alta coerência estética na formação dos argumentos e na sua exposição literária? A resposta a estas questões constitui um desafio para a compreensão do sentido e do alcance de um certo discurso que foi o de Martins e também o de Bomfim. Mas o lugar de responder a esse desafio não é, decerto, este.
   Aqui, nos limites desta primeira aproximação, o importante é ressaltar que, por meio da incorporação das teses, do estilo acusatório e admoestativo e da visada central de Oliveira Martins sobre a decadência e o parasitismo estruturante das sociedades peninsulares, Bomfim vai compor um texto de alto poder de persuasão e grande consistência literária. Corrigindo o pendor racista dos trabalhos de Martins, abria ele também as portas a uma nova compreensão do sentido da mistura racial no Brasil, e foi realmente uma pena que o seu livro não criasse escola, nem fosse o início de uma nova corrente de pensamento brasileiro, como justamente lamenta Darcy Ribeiro.
Nos anos subseqüentes, há ainda dois momentos fortes em que Martins desempenha um papel importante no pensamento brasileiro, antes que sua presença se vá fazendo sentir cada vez menos e sua influência suplantada, nos meios eruditos, por outras interpretações da história de Portugal – principalmente a de António Sérgio e, depois, por efeito de sua estada prolongada no Brasil, a de Jaime Cortesão.
O primeiro é constituído, na década de 1920, por dois livros de Paulo Prado -- Paulística (1925) e Retrato do Brasil (1928) –, cuja reflexão etnológica e histórica se articulará sobre a oposição entre os brasileiros do litoral e os do planalto, conjugada a uma especulação sobre os vários tipos de mestiçagem e seus efeitos culturais. Mas não tratarei desse livros aqui, por dois motivos. Primeiro, porque a apresentação do que neles há de martiniano já foi feita.[22] Segundo, porque Paulo Prado parece apenas desenvolver, no tocante a Oliveira Martins, os mesmos tópicos que já identificamos no comentário dos textos de Eduardo Prado e de Euclides da Cunha.
   Mais importante, porque ainda por estudar, é a presença do pensamento de Oliveira Martins na obra de Gilberto Freyre. A consulta ao índice onomástico de alguns dos seus livros indicará a importância de Martins para o seu pensamento. Mas o lugar do historiador português na obra de Freyre é maior do que o ocupado pelo conjunto das várias citações, porque, mais do que de referência, é um lugar de método.
   Sei que a afirmativa parecerá estranha, sendo tão díspar a forma de organização textual. Mas penso que a forma de conceber a história tem em ambos notáveis semelhanças. No prefácio da primeira edição de Casa-Grande & Senzala, lêem-se estas palavras: “A história social da casa-grande é a história íntima de quase todo brasileiro: de sua vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo escravocrata e polígamo [...] O estudo da história íntima de um povo tem alguma cousa de instrospecção proustiana.” E mais, adiante:

No estudo da sua história íntima despreza-se tudo o que a história política e militar nos oferece de empolgante por uma quase rotina de vida: mas dentro dessa rotina é que melhor se sente o caráter de um povo. Estudando a vida doméstica dos antepassados sentimo-nos aos poucos nos completar: é outro meio de procurar-se o ‘tempo perdido’. Outro meio de nos sentirmos nos outros – nos que viveram antes de nós; e em cuja vida se antecipou a nossa. É um passado que se estuda tocando em nervos; um passado que emenda com a vida de cada um; uma aventura de sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos.[23]

   Compare-se esta passagem com o que escrevia 50 anos antes Oliveira Martins, na Advertência da sua História de Portugal:

Nada disso , porém, é ainda realmente a história, embora todas essas condições sejam indispensáveis para a sua compreensão. O íntimo e essencial consiste no sistema das instituições e nos sistemas das idéias coletivas, que são para a sociedade como os órgãos e os sentimentos são para o indivíduo, consistindo, por outro lado, no desenho real dos costumes e dos caracteres, na pintura animada dos lugares e acessórios que forma o cenário do teatro histórico.[24]

   Ao que, na resposta aos críticos do seu livro, acrescenta ainda:

porque eu entendi que usando da reserva conveniente sempre que os fatos essenciais da história eram desconhecidos [...] para não cair em aventuras perigosas, devia por toda a parte construir a história íntima com os monumentos sinceros, confissões e memórias, sem o cunho da convenção banal das publicações oficiais ou propriamente literárias.[25]

   Foi a especificidade do ponto de vista martiniano, ao empenhar-se na reconstrução da história íntima da nação, que Antonio José Saraiva acabou por reconhecer como a grande conquista de Martins. E é curioso que, para descrever essa especificidade tenha utilizado a mesma expressão utilizada por Freyre para descrever o próprio texto: uma "história introspectiva”. E da mesma forma que, na reavaliação de Eduardo Lourenço, a História de Martins constitui o “imaginário coletivo” da modernidade portuguesa, cada vez mais nos apercebemos que a mesma função tem a obra de Freyre, no Brasil de hoje.
   Essa homologia de função era algo que o próprio Freyre parecia entrever e desejar. Pelo menos, é o que se depreende da leitura de um romance seu, pouco conhecido. Trata-se de O outro amor do Dr. Paulo, que é, nas suas próprias palavras, uma “seminovela”, um texto ficcional de intenção histórica.
   A personagem central é um brasileiro chamado Paulo, que passa longo tempo na Europa, onde convive, no final do século, com o Barão de Rio Branco, Eduardo Prado e Eça de Queirós, entre outros. As passagens que interessam aqui são duas. Numa delas, Paulo presencia uma cena em que outro brasileiro diz a Eça que o Brasil precisava ter um Eça de Queirós. Eça então responde: “Não, não precisa. [...] Precisa de um Oliveira Martins, historiador, sociólogo, pensador, ensaísta em profundidade. [...] Cada vez admiro mais Machado de Assis. E Portugal nada seria sem Oliveira Martins”.[26]
   No final do romance, a mesma afirmação é atribuída a Eça. Mas numa situação que revela com vigor a homologia entre Freyre e Martins. No texto, a frase aparece justamente depois de o narrador fazer uma digressão sobre o sistema patriarcal no Brasil, a que, justamente, Freyre consagrara suas obras principais. No romance, o tempo histórico é anterior, e assim surgem como profecias de si mesmo estas frases do narrador da seminovela:

Evidentemente esse sistema patriarcal de família – o brasileiro projetado sobre Portugal – com afinidades com o grego, não tivera ainda o seu analista. Eça de Queirós tinha alguma razão quando dissera uma vez, no apartamento de Eduardo Prado, em resposta ao reparo de um brasileiro de que o Brasil precisava de ter um Eça de Queirós: ‘O Brasil já tem um mestre nesse gênero de literatura que é Machado de Assis. O Brasil precisa é de grandes pensadores e historiadores que o analisem e interpretem. Precisa, tanto quanto Portugal precisou, de um Antero, de um Oliveira Martins, de um Ramalho Ortigão. Precisa muito de um Oliveira Martins.’ Mais ou menos o que dissera quando visitado por Paulo e seu grupo.[27]

   Assim, embora não seja o caso de desenvolver a reflexão sobre que pontos, de fato, Freyre incorporou da obra ou das ideias de Martins, registre-se esse seu testemunho, como mais uma prova de que, pela interpretação global do que foi a história da nação portuguesa – interpretação essa que a muitos brasileiros tem parecido a mais adequada e convincente –, parece fora de dúvida que a obra de Oliveira Martins vem organizando, em vários níveis, ao longo de mais de cem anos e quase até o presente, a visão brasileira do que foi e do que é Portugal e do que foi ou é o Brasil enquanto produto da pequena nação ibérica.
   Neste texto, que é apenas um balanço parcial dos resultados de um trabalho ainda inconcluso, contento‑me em apresentar este mapeamento sumário de um território pouco conhecido, mas que, pela importância do que pode revelar a respeito da história do pensamento brasileiro, sem dúvida merece e precisa ser mais bem explorado.


[1] Pires, A. Machado. A ideia de decadência na Geração de 70. Foi publicada recentemente uma segunda edição desse livro fundamental: Lisboa, Vega, 1992.
[2] Ver, a propósito da Biblioteca, AbdoolKarim Vakil: Leituras de Oliveira Martins: história, ciências sociais e modernidade económica. Comunicação apresentada ao 'Congresso Internacional Oliveira Martins: Literatura, história, política'. Coimbra, abril de 1995.
[3] A. Sérgio. "Oliveira Martins: impressões sobre o significado político da sua obra." In: Martins, J. P. Oliveira. Dispersos. Lisboa, Biblioteca Nacional, 1923, p.xxxviii.
[4] Apud Martins, Wilson. História da inteligência brasileira, vol. V. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1977‑78, p. 560.
                [5] Queirós, Eça de  e J. P. de Oliveira Martins. Correspondência. Estabelecimento de texto e notas de Beatriz Berrini, introdução de Paulo Franchetti. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.
[6]A. J. Saraiva. A tertúlia ocidental. Lisboa, Gradiva, 1990.
[7] A. Sérgio. Op. cit., p. xxvii.
[8] Portugal nos Mares. Lisboa: Ulmeiro, 1984, p. 10.
[9] Ver, a propósito do conceito de nação e nacionalidade em Oliveira Martins, o meu texto "No centenário de morte de Oliveira Martins", de onde retomei, com algumas modificações, os parágrafos anteriores. In: Martins, J. P. de Oliveira & Queirós, J. M. Eça de. Correspon­dência. cit.
[10] O Brasil e as colónias portuguesas. Lisboa, Guimarães e Cia. Editores, 1953, p.2.
[11] O Brasil..., cit., p. 36.
[12] O Brasil..., pp. 80‑81.
[13] Manoel Bomfim, no livro A América Latina -- Males de origem, que comentarei a seguir, notou essa contradição do texto martiniano.
[14] In: Collectaneas, vol. IV. São Paulo, Escola Typographica Salesiana, 1906.
[15] Prado, E. Op. cit., p. 85.
[16] Todas as citações são do texto de Os Sertões. Euclides da Cunha. Obra Completa, vol. 2. Rio de Janeiro, Editora Aguilar, 1995, p. 155, 197 e 198.
[17] Cinqüenta e cinco anos depois, o livro foi relançado, com um prefácio acalorado de Darcy Ribeiro, no qual o autor se mostra revoltado por o livro não ter tido a repercussão que merecia e chama a Manoel Bomfim "o fundador da antropologia do Brasil e dos brasileiros": Manoel Bomfim. A América Latina -- Males de Origem. Rio de Janeiro, Topbooks, 1993, p. 18.
[18] Sylvio Romero. A América Latina. (Analyse do livro de igual título do Dr. M. Bomfim). Porto, Livraria Chardron, 1906, p. 50.
[19] Bomfim, Op. cit., p. 111 e p.227.
[20] Bomfim. Op. cit , pp. 327‑8.
[21] "Pequena biografia de Manoel Bomfim". In: Bomfim, Manoel. Op. cit., p. 358.
[22] Berriel, Carlos. Tietê, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado. Campinas: Papirus, 2000.
[23] “Prefácio à primeira edição”. In: Freyre, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. São Paulo: Círculo do Livro, 1986, p. 26.
[24] Martins, Oliveira. História de Portugal. Lisboa: Guimarães Editores, 1991, p. 8.
[25] A História de Portugal -- Os críticos da 1ª edição. Repr. in: Albuquerque, Isabel de Faria e (ed.). História de Portugal de J. P. Oliveira Martins. Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1988. O trecho citado está na p. 218.
[26] Freyre, Gilberto. O outro amor do Dr. Paulo. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1977, p. 91.
[27] Freyre, G. Ib. p. 193.