sábado, 16 de junho de 2012

Sete contos de fúria - resenha


[Jornal 7]

A fúria de Camões[1]


sobre Sete contos de fúria, de António Vieira (Ed. Globo, 2002)


           O título deste volume pode levar a engano sobre o que há nele. É que os conteúdos afetivos não aparecem ali em estado bruto. A racionalidade não parece prestes a ceder a um impulso que não pode suportar; nem a superfície da linguagem parece agitada por alguma intuição terrível. Pelo contrário, a razão é soberana ao longo do volume. O trabalho de escrita exibe cuidado construtivo e busca voluntariamente um registro anti-realista, que força às vezes a chave alegórica. Nas personagens tampouco há traços comuns de constituição associados à paixão que dá nome ao conjunto. E mesmo as epígrafes que abrem o volume e cada um dos contos sugerem uma escrita da espécie da glosa, isto é, do desenvolvimento exemplar de uma frase ou idéia alheia.
A fúria que denomina estas histórias é de outra ordem. Os contos são vaticínios, e a referência, num autor português, é explícita: a fúria que Camões pedia para si, “grande e sonorosa”, contraposta à “frauta ruda” e à “agreste avena”. O épico, aliás, é uma denominação que dá conta de importantes características desse livro, quais sejam a elevação da linguagem e o anseio de universalidade dos temas. Nesse sentido, adaptando as recusas camonianas, sua narrativa pode ser vista como um contraponto seja à “agreste avena” da narrativa centrada nas vicissitudes amorosas ou na apresentação de uma irredutível individualidade; seja à flauta rude do neo-realismo, que tem vendido bem em sua versão suburbana de testemunho da monstruosidade social.
Neste livro, quase não há “interioridades”. Tudo é amplamente iluminado, como é próprio da épica, e cada pormenor remete ao universo dos grandes textos e temas da tradição ocidental. E os nomes estranhos, as paisagens exóticas e minimalistas, as situações mais que improváveis combinam-se, numa linguagem ostensivamente trabalhada, para “desrealizar” as cenas e enredos. É certo que a presença de monstros e deuses materializam o tema do poder desmesurado e da opressão. Mas como não há, por princípio, representação realista da vida social, o foco de interesse é a percepção dos intertextos, alusões e símbolos.
A leitura do volume não é, por isso mesmo, pacífica. As histórias têm um desenvolvimento arrastado, que as faz parecer mais longas do que são. Também é perturbadora a unidade da linguagem e o princípio compositivo, que é a repetição, em variações cumulativas, de uma imagem ou conceito básico. Qualquer que seja o narrador e a situação narrativa, as frases são sempre cadenciadas (às vezes em metro regular), a adjetivação é saturada e as comparações e as metáforas descritivas, abundantes.
Do ponto de vista temático, os contos são ensaios sobre o divino. Melhor dizendo, sobre formas de ocupação, na geografia mental, do lugar reservado à divindade. Esse lugar, subitamente vazio, indignamente preenchido ou em transformação, é o fio que os une. No primeiro deles, um cientista judeu descobre, por meio de um supertelescópio, a sombra do cadáver de Deus, morto ao criar o universo. No último, o falo decepado e indestrutível de Osíris é descoberto no deserto e, após a tentativa frustrada de um grupo de iniciados, que tenta recompor a integridade do deus, desaparece nas águas do Nilo. O nome do primeiro conto é “O Grande Luto”. O do último, “A Restituição”. Entre esses dois extremos, estendem-se as modulações do tema da perda e da impossibilidade de substituição do bem perdido.
Na maior parte das histórias, o paganismo fornece a base dos nomes e dos enredos. Delas, a melhor me parece ser “Eôs”, uma versão da fábula grega. Como se sabe, apaixonada pelo jovem, a deusa Aurora obteve de Zeus a imortalidade do amante, Títonos, esquecendo-se, porém, de lhe garantir a eterna juventude. Com o passar do tempo, Títonos reduziu-se a uma forma encarquilhada e repulsiva, terminando por metamorfosear-se em cigarra. Na versão de Vieira, o cenário é meloso, quase uma recriação olímpica de Hollywood. O que a redime é a destruição da verossimilhança. Exemplos: Eôs negocia com Zeus pelo telefone (um aparelho modelo belle époque, aliás) o destino de Títonos; este passa suas horas de tédio contemplando fotografias com uma lupa; Zeus, que no conto se chama Suze, é um inescrupuloso industrial do ramo das armas de longo alcance; Eôs, em paga do veneno que livrará Títonos da vida eterna, se oferece a Suze como prostituta de luxo, servida por uma limusine. As quebras de expectativa não resultam, porém, numa adaptação modernizadora do mito grego, pois as tensões produzidas pelos anacronismos violentos permanecem irresolvidas. Afirma-se assim um intuito de paródia cruel, que contamina a leitura e justifica o registro algo piegas.
Nos melhores momentos, este livro exibe o brilho intenso de uma ironia refinada e corrosiva. Nos piores, a impotência da amargura vertida em simbologia mais ou menos evidente. O tom geral do livro talvez pudesse ser resumido no título da primeira história, “O Grande Luto”. Mas o desenho do volume, que termina na história do falo de Osíris, bem como o esgar de riso que se insinua em episódios como o dos amores de Eôs, mostram que a paixão que preside ao conjunto é um luto específico e mórbido: a melancolia. É dela que nasce o furor enunciado no título: o furor frio, lógico e estático, que dá força e justifica tanto a opacidade da linguagem ornada e alegórica, que flerta com o kitsch, quanto as quebras de verossimilhança, que inviabilizam a leitura realista ou a ingenuidade reverencial.
Com vários pontos altos, os “Sete contos de fúria”, entretanto, formam um conjunto desigual. Se alguns são ótimos, como “Eôs”, outros são apenas razoáveis, como “Vida e morte de Argos”, que glosa, num enredo plano, o velho tema da relação homem-poder-máquina num futuro indeterminado. Nesse caso, a ausência de paródia faz com que as características da escrita do autor revertam em saturação simples, gerando desinteresse.
Em suma, este livro de Antonio Vieira tem um duplo apelo e se move numa zona furta-cor. Se o leitor se aperceber da natureza da fúria específica que o organiza e atentar para a sua permanente atuação em todos os níveis textuais, não deixará escapar o que há de novo e vivo no conjunto das histórias. Caso contrário, só lhe restará recusar a leitura, ou então sucumbir à sedução do alegorismo mais ou menos fácil, que interpela diretamente uma “natureza humana” sem tempo nem espaço.


[1] texto publicado na Folha de São Paulo, em 14 set. 2002

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