segunda-feira, 17 de junho de 2013

Eça de Queirós: A cidade e as serras



A CIDADE E AS SERRAS: TESE CONTRA TESE

[Este texto, que é um trecho da apresentação do romance A cidade e as serras, publicado pela Ateliê Editorial, foi lido no Congresso Internacional O Século do Romance - Realismo e Naturalismo na Ficção Oitocentista , realizado em Coimbra em 2011.]

           Na fortuna crítica de Eça, ocupa lugar importante a afirmação de que o romance defende a tese da superioridade da vida tradicional do campo – das formas de vida e estruturas sociais paternalistas e pré-industriais – sobre a vida moderna. Colorido de patriotismo, o livro teria como proposta o retorno às origens da nacionalidade, no norte agrário português.
           Ora, dizer que a história narrada por Zé Fernandes possui uma tese não é o mesmo que dizer que o romance de Eça de Queirós tenha uma tese e muito menos que a tese da narrativa de Zé Fernandes seja a tese do romance de Eça ou a tese de Eça, de modo geral, nos últimos anos de sua vida.
           João Gaspar Simões, identificando uma coisa com outra, acusou Eça de insinceridade, uma vez que não o julgava disposto a adotar a solução que o livro proporia, ou seja, a trocar a sua vida em Paris pela vida rural portuguesa. Jacinto do Prado Coelho, por sua vez, definiu a obra como “romance reacionário”.[1]
           A questão de se a tese de Zé Fernandes é a tese de Eça não ocupará o primeiro plano desta comunicação. Isso porque não há como chegar a discutir a proximidade entre o ponto de vista de Zé Fernandes e o suposto ponto de vista de Eça sem primeiro entender a construção romanesca no interior da qual Zé Fernandes expõe e defende a sua tese; e também porque da análise dos últimos romances o máximo que se poderia extrair seria uma “ideologia do último Eça romancista”, que não necessariamente coincidiria com a ideologia do escritor, que ao mesmo tempo assinava textos com sentido bastante diferente do que se poderia extrair dos seus romances finais.
           Sobre esse ponto, num ensaio publicado em 1945 – ou seja, no ano de balanço político da obra do autor, no qual a tônica foi a suposta guinada à direita do antigo agitador socialista – Antonio Candido, depois de analisar o “recuo ideológico” que também identifica na obra romanesca do autor a partir de Os Maias, escreve: “com efeito, ao mesmo tempo que acomodava na fantasia e no ruralismo a sua visão literária, ele escrevia alguns dos seus artigos mais avançados politicamente: ao lado de uma crônica vencidista sobre a rainha ou o rei, um julgamento lúcido e destemido sobre o socialismo, ou uma crítica incisiva, mordaz, sobre a burguesia capitalista e o imperialismo econômico.”[2]
   A propósito do estado da crítica nesse importante ano do centenário, e de sua própria contribuição a ele, Antonio José Saraiva escreveu, no seu último livro, uma pungente e lúcida autocrítica:

           Em 1945, comemorando-se o centenário de nascimento de Queirós, o autor da presente obra publicou um estudo sobre As idéias de Eça de Queirós [...] De fato, o lento desenvolvimento da mentalidade portuguesa tornava ainda atual em 1945 a caricatura que Eça fez da nossa sociedade em As Farpas, O crime do padre Amaro e O primo Basílio [...]. Todas as outras obras eram consideradas desvios da sua ‘verdadeira’ rota. As idéias de Eça de Queirós é uma súmula dos clichês então reinantes sobre o escritor. Por isso uma obra-prima como A cidade e as serras era julgada como insignificante, ou como um ‘regresso’ a Júlio Dinis. E não foi só o presente autor que assim apresentou Eça: era a opinião generalizada.[3]

           Hoje o que parece mais razoável não é ler cada romance em busca de índices comprobatórios de uma imagem do autor feita a partir da leitura do conjunto deles, ou a partir de uma leitura seletiva dos textos do autor, elaborada com base nos interesses do momento, mas perceber em cada um a complexidade das vozes e situações. 
           No caso de A cidade e as serras, o mais interessante é perceber como se desenvolve a tese de Zé Fernandes no interior da narrativa, como ela se articula com outras teses ali presentes e quais os efeitos de sentido que derivam desse desenvolvimento e articulação. Com isso não só a imagem de autor seguramente será alterada, mas também a leitura se poderá fazer de forma menos esquemática e mais prazerosa.
           Passemos, então, à tese e sua situação dentro das coordenadas do livro.
           No que diz respeito a Jacinto, a tese sobre as virtudes do retorno à vida tradicional ou de reencontro com as bases da nacionalidade não faz sentido. Jacinto é personagem de mão única: nasceu, cresceu e viveu toda sua vida em Paris; um dia transferiu-se para as serras portuguesas e lá se fixou para sempre, sem jamais retornar à terra natal, isto é, à França.
           A história de Jacinto e de sua família, aliás, é desprovida de regressos. Seu avô, D. Galião, parte com a mulher e o filho para Paris, e de lá nenhum deles retornará a Portugal.
           Jacinto não vê, em momento algum, a viagem às serras portuguesas como retorno às origens; entende-a, sim, como uma excursão arriscada para fora das fronteiras do seu mundo: “É muito grave deixar a Europa!”, exclama, ao despedir-se da paisagem urbana, prestes a mover-se para fora das fronteiras da cidade e da França. Em Portugal, não experimenta efusão patriótica, nem comoção por sentir-se instalado nas terras da família, de onde lhe provêm as rendas.
           De modo que apenas tendo em mente um ser maior do que o indivíduo Jacinto – uma entidade como o clã, a linhagem familiar – torna-se possível falar em retorno e reencontro com as origens, como faz Zé Fernandes, quando grita para o amigo, assim que o trem entra em Portugal: “Acorda, homem, que estás na tua terra!” Para Jacinto, a frase só faria sentido – e ainda assim em registro bem diferente do patriotismo da exclamação de Zé Fernandes – se o trem estivesse a cruzar as fronteiras da sua propriedade de Tormes.
           A proposição de que o livro trata de um reencontro das origens e que a própria trajetória de Jacinto é a de um retorno a essas origens é a tese de Zé Fernandes. Mais do que isso: a tese do retorno deriva diretamente do desenho da vida de Zé Fernandes, que se apresenta como uma contínua viagem entre os dois pólos da vida européia representados no título do romance. Zé Fernandes não é apenas a personagem que regressa, mas ainda a personagem que o faz incessantemente: nasce em Portugal, estuda em Paris, retorna a Portugal e outra vez a Paris. Quando começa a ação do livro, aí o temos e, na seqüência, movimenta-se entre a cidade e as serras, terminando por fixar-se nessas, cuja superioridade afirma e enaltece, por meio do exemplo que é o seu amigo Jacinto.
           No romance, sua única viagem que não é desde o princípio entendida como regresso é o tour pela Europa, relatado com acentuado sabor cômico, por meio da quantificação dos aborrecimentos e das perdas, em um único parágrafo no capítulo VII. Tour esse, diga-se, que proporcionou ao viajante dois únicos prazeres dignos de nota: o encontro, em Veneza, com um estrangeiro que conhecia sua aldeia em Portugal e com o qual pôde evocá-la, e o momento do regresso ao aconchego da casa de Jacinto.
           O retorno à origem como recuperação da felicidade (e da virtude) é assim o tema e a tese de Zé Fernandes. E a demonstração da tese, segundo Zé Fernandes, é a prática de Jacinto. Zé Fernandes, sozinho, não pode afirmar a tese. Ele experimenta como ninguém a sedução da cidade. Sua recusa a ela está sempre a um passo de confessar-se como ressentimento provinciano. Jacinto, o cosmopolita que encontraria a felicidade no campo, é, por isso mesmo, o apoio e a prova isenta da tese de Zé Fernandes.
           Jacinto, entretanto, tem a sua própria tese sobre a felicidade, que aparece logo no começo do livro: a de que ela é o produto da suma ciência e da suma potência. Uma proposição de que a felicidade, portanto, reside na integração ao próprio tempo, no que ele tem de mais avançado.
           A tese sustentada por Zé Fernandes, na medida em que identifica a felicidade com o retorno à vida campestre e pré-industrial (ou que propõe que os remanescentes do mundo pré-industrial sejam lugares possíveis para a felicidade na idade moderna), implica desde logo a demolição da tese de Jacinto.
           Por isso, porque a afirmação de uma depende da destruição da outra, Zé Fernandes se ocupa com vigor de demonstrar a Jacinto (e ao leitor) o erro da perspectiva e das crenças do amigo.
           Desse ponto de vista, Jacinto é tanto o defensor de uma tese incompatível com a do narrador, quanto uma demonstração da tese deste. Ou talvez fosse melhor dizer: Jacinto é o campo de provas de Zé Fernandes, que atua sobre ele e sobre o leitor de modo a tornar o amigo a própria demonstração de sua tese. Ou seja, Zé Fernandes não só precisa destruir a tese de Jacinto, como também convertê-lo à sua própria, torná-lo um exemplo da correção daquilo que propõe como alternativa à tese do amigo.
           Já se observou que a dupla Jacinto/Zé Fernandes reproduz, em certa medida, a dupla matricial D. Quixote/Sancho Pança. A sugestão está dada no próprio romance, em cujo capítulo VIII, se lê:
  
                        Jacinto adiante, na sua égua ruça, murmurava:
                        – Que beleza!
                        E eu atrás, no burro de Sancho, murmurava:
                        – Que beleza!
          
           Mas há pouco de Sancho nesse narrador astuto. Como há pouco de Quixote no seu amigo Jacinto, que, além de ter boa figura, é ainda sobejamente rico, tem excelente saúde, é agradável às mulheres, possui inteligência e grandes dotes sociais, e não possui, a rigor, incompatibilidade violenta com os ambientes nos quais se move.
           De modo que a alusão de Zé Fernandes produz apenas o reforço da imagem de bom-senso chão, que o narrador se arroga, e da caracterização de Jacinto como irrealista, defensor de uma causa fantástica.
           Ou seja, a qualificação das personagens, nessa passagem, integra a estratégia geral de Zé Fernandes, que é sublinhar a fragilidade prática de Jacinto e conseqüentemente enfraquecer o seu lado na disputa pela resposta correta à questão que lhe interessa e que, uma geração antes, foi título de um romance de Camilo Castelo Branco, “onde está a felicidade?”.
           Nesse livro, Camilo respondera a essa pergunta com grande cinismo “realista”: “Está debaixo de uma tábua, onde se encontram cento e cinqüenta contos de réis.” Já no romance de Eça, sendo Jacinto um herdeiro para o qual as necessidades da vida não pesarão nunca, essa resposta está interdita e a demanda da felicidade deverá operar-se tendo a riqueza como pressuposto, o que permitirá a Zé Fernandes apresentar a história do amigo (e a sua, integrada à do amigo) como uma história exemplar, quase um apólogo.
           De fato, Jacinto, abrigado da necessidade pela fortuna herdada, pode livremente entregar-se ao exercício da modernidade e do refinamento da civilização como busca da felicidade, deles colhendo apenas tédio, insatisfação e enfraquecimento da saúde. E também poderá, na seqüência, porque o acaso o trouxe a Tormes, entregar-se às fantasias agrícolas e ao projeto de erradicação da pobreza dentro dos muros da sua propriedade, sem cuidar mais de Paris, que se reduz a etapa encerrada da sua vida.
           Assim, as duas fases de Jacinto são claramente marcadas do ponto de vista da satisfação: a primeira fase é de ausência e a segunda é de plenitude. A primeira é de tédio, a segunda de animação. E o agente da transformação não é a vontade, nem qualquer alteração da sua situação financeira, mas o simples acaso que, de súbito, o deslocou de um ambiente para outro.
           Jacinto resulta, por isso mesmo, uma personagem fora do mundo, no sentido que age em completa liberdade e sequer se dá conta ou se importa com as implicações dos seus atos. É auto-suficiente. Vive, desse ponto de vista, num castelo (perfeitamente isolado e autônomo, porque isento de vassalagem que o obrigue a qualquer ação para fora), num domínio que se faz e se quer independente e alheio ao resto do mundo. O seu alheamento e autocentramento tornam-se evidentes ao longo da narrativa, não só no que diz respeito à economia, quanto no que diz respeito à política.
           Do ponto de vista econômico, o lucro e a otimização dos recursos – princípios elementares de qualquer empreendimento – são para ele assuntos desinteressantes, que não merecem atenção, como se vê no episódio da projetada queijaria, no capítulo IX. Tampouco é um avarento, no sentido pré-capitalista, pois além de não sofrer a paixão de acumular, não tira prazer da contemplação do que possui, já que não manifesta o menor desejo de ao menos conhecer as suas outras terras, de onde lhe vêm, na verdade, os recursos que emprega na reforma de Tormes.
           Do ponto de vista político, embora seja uma espécie de redentor dos campos, não oferece ameaça aos demais proprietários, pois confina a reforma aos domínios da sua terra. Seu gesto reformista, aliás, deixa-se facilmente ler como puro paternalismo, ou melhor, como estratégia de política reacionária, como se vê no capítulo XIII, quando Jacinto é tido como absolutista, parceiro e enviado de D. Miguel.
           Em Paris, Jacinto é um dândi. Nas serras, não parece que o tenha deixado de ser totalmente, já que o motivo principal das suas ações, principalmente nos primeiros tempos de adaptação, nunca é de ordem sentimental ou econômica, mas sim de caráter essencialmente estético. A miséria dos camponeses o deixa horrorizado como um canto mal pintado de um quadro bucólico; os empreendimentos agrícolas, para desespero do administrador, não são encarados do ponto vista dos custos e proveitos, mas como problemas matemáticos ou de decoração.
           Como dândi, Jacinto faz um caminho contrário ao modelo do gênero, o herói do romance Às avessas (1884), de J.-K. Huysmans. O romance inteiro – mas principalmente, desse ponto de vista, a sua primeira parte – pode ser lido como uma espécie de às avessas de Às avessas. De fato, Des Esseintes, no livro de Huysmans, é, como Jacinto, um homem muito rico. Mas enquanto Des Esseintes usa seus recursos para construir uma casa e uma vida a contrapelo do caminho burguês, utilizando o máximo da técnica moderna para poder isolar-se por completo tanto da natureza quanto da vida social, Jacinto utiliza sua riqueza, em Paris, para viver em total integração com o mundo e para exibir essa integração como ideal de vida, como o demonstram o escritório provido de tubos, a biblioteca de ambições enciclopédicas e a intensa vida social. A ciência e a técnica, para ele, são não apenas instrumentos de ampliação da potencialidade natural dos sentidos e das capacidades humanas, mas também matéria de espetáculo, afirmação de fé no progresso e elemento de decoração - o que faz da sua casa uma espécie de museu do contemporâneo.[4]
           Mas se Jacinto, no campo, continua em certo sentido um dândi, o registro do seu dandismo abrandado é agora outro: o do isolamento senhorial. Por isso, altera-se o lugar da técnica. Rebaixada ao caráter puramente instrumental, ela tem agora função oposta à que desempenhava na casa parisiense: não mais serve para compor o ambiente da mundanidade moderna ou para integrar o proprietário no movimento geral da época; reduzida a um telefone, tem sinal oposto, pois permite que Jacinto permaneça o maior tempo possível sem locomover-se da ilha de bem-aventurança que é o seu domínio serrano.
           No episódio do telefone, aliás, a conduta de Zé Fernandes demonstra o seu interesse em que Jacinto não fuja ao papel exemplar, fundamental para garantir a tese que o seu livro apresenta e defende. De fato, alarmado com a notícia da chegada da novidade a Tormes, Zé Fernandes põe-se logo em campo para impedir o pior: uma recaída do amigo na doença do progresso e do pessimismo. Desconfiado, assume o papel de terapeuta vigilante, que não confia nos propósitos de Jacinto e só entra em sossego quando constata, com o passar do tempo, que o amigo persistirá no caminho da felicidade rural. Ou seja, Zé Fernandes precisa vigiar Jacinto, para que este continue a ser a demonstração viva, o exemplo perfeito da tese da superioridade do campo como lugar da felicidade. Para isso Jacinto precisa manter-se firme na recusa à máquina e à tecnologia, que tanto ele quanto o narrador identificam com a idéia de progresso e de cidade.
            Do que ficou dito deve ter ficado claro que A cidade e as serras não é apenas a história de Jacinto. É a história de Jacinto contada por um narrador complexo, que tem uma tese pela qual se esforça desde a primeira linha do romance. Um dos elementos desse esforço é a busca da cumplicidade do leitor; outro é a produção da caricatura enternecida (tingida sempre de condescendência paternalista) do seu herói, contra a qual afirma a sua qualidade de homem realista e razoável. Um efeito da conjugação de ambos dá a graça maior do livro, que procede justamente da dificuldade do narrador sustentar a sua tese, já que ele mesmo não se mostra, na maior parte do romance, convencido de que o percurso de Jacinto seja de fato um exemplo digno de imitação. Nem mesmo por ele, que, até a última viagem a Paris, parecia não querer para si a felicidade acomodada do amigo, imerso no isolamento rural.
            E este é outro ponto que merece atenção: Zé Fernandes não é apenas o narrador e a testemunha da história e da mudança de Jacinto, é também uma personagem que se transforma sob o efeito da mudança que narra e testemunha. Recapitulemos: a princípio, Zé Fernandes não sofre de tédio em Paris; ao mesmo tempo, não tem, na sua terra, a ilusão ou os recursos para construir para si um mundo à parte, como o Castelo da Grã-Ventura de Jacinto. Pequeno proprietário, fascinado pelo desregramento da civilização, Fernandes tem no amigo um espelho no qual se reconhece em negativo, um espelho que lhe devolve uma imagem algo diminuída: na cidade, deixa-se ver e se reconhece como provinciano ávido de deleites sensuais, com uma dose aproximadamente igual de volúpia e repulsa ressentida perante o grande mundo parisiense; no campo, exibe prudência e consciência culpada da exploração que embasa a vida tradicional, ao mesmo tempo em que experimenta não só a nostalgia da vida parisiense, mas também a nostalgia de ter Jacinto como contraponto a reafirmar as suas convicções. De fato, diz ele: “é até monótono, pela perfeição da beleza moral, aquele homem tão pitoresco pela desinquietação filosófica [...]. Quando ele agora, bom sabedor das coisas da lavoura, percorria comigo a quinta, em sólidas palestras agrícolas, prudentes e sem quimeras – eu quase lamentava esse outro Jacinto que colhia uma teoria em cada ramo de árvore” (p. 231).
           Sob o efeito da mudança operada em Jacinto, há um momento em que os papéis se invertem: Zé Fernandes se entedia no campo, depois da perda da amante e da morte da égua, e, sentido “uma pontinha de bolor” na alma, embarca para Paris. Lá, o tédio não o abandonará por completo. Será, na verdade, apenas sufocado pelo sentimento maior de desamparo e horror, que ele compara ao que Jacinto experimentara na primeira vez que fora ao campo.[5]
           Dessa maneira, Zé Fernandes não só encena a indissociabilidade entre ele e Jacinto, reforçando a relação especular ante ambos, mas ainda mostra como a conversão de Jacinto acentuou nele as suas próprias características, tornando-o mais visceralmente do que nunca o homem do campo. Mas a simetria pára por aí, pois enquanto Jacinto superou o medo e o desconforto e se adaptou ao ambiente que não era o seu – isto é, ao ambiente rústico –, tornando-se perfeitamente integrado à vida saudável das serras, Fernandes não superará as sensações ruins experimentadas na última visita a Paris, que apenas o levarão de volta à sua quinta, reafirmando a excelência do lugar de origem. Nessa derradeira estada, Zé Fernandes assume o papel de Jacinto, tal como ele o via antes da transformação: aquele que poderia ter, mas não queria ter, todos os prazeres da cidade; que poderia ceder, mas não cede – por inapetência ou simples tédio –, a todas as tentações (que ainda enfeitiçam Zé Fernandes, como se vê pela passagem em que se lembra da amante, ou pelo maço de revistas que traz a Tormes).
           O lugar de Jacinto na economia interna de Zé Fernandes, assim, é mais do que o de uma tese demonstrada. Jacinto é uma escora, um antídoto que permite a Zé Fernandes construir uma zona de “realidade”, na qual se sinta em segurança. E, ao mesmo tempo, é o modelo para a sua solução do conflito entre a cidade e as serras: “o equilíbrio da vida, e com ele a Grã-Ventura”.
           Jacinto teria obtido esse equilíbrio, segundo o narrador, por meio de uma controlada concessão à tecnologia moderna. De fato, muito controlada, pois não haverá máquinas agrícolas em Tormes, nem qualquer rudimento de industrialização rural. O progresso tecnológico se restringirá à incorporação, à rotina da casa senhorial, de um telefone, e do conforto moderno serão aproveitados apenas alguns móveis e tapetes, destinados a melhorar o quotidiano da família. No que toca à propriedade como um todo, anunciam-se alguns projetos que envolvem a informação e a técnica modernas: uma biblioteca de livros de estampas e uma sala de projeção de lanterna mágica, para instrução dos camponeses. Nesse sentido, a modernização que Jacinto opera nos seus domínios é conservadora: a recusa ao uso da tecnologia para a produção agrícola, a reforma das casas dos rendeiros e a farmácia (bem como a escola, a creche, a biblioteca e a sala de projeção planejadas para o futuro) produzem a melhoria das condições de vida dos pobres, sem alteração significativa, seja na forma de produção, seja na dependência dos camponeses em relação ao senhor da terra.[6]
           Zé Fernandes terá, ao final do livro, a sua própria solução para obter “o equilíbrio da vida, sem contudo partilhar do ímpeto reformista e caridoso de Jacinto. Sua solução consistirá no simples afastamento da matéria corrupta da cidade e na preservação do espírito dela, por meio da importação, para as serras, dos livros e revistas parisienses: “Pois adeusinho, até nunca mais! Na lama do teu vício e na poeira da tua vaidade, outra vez, não me pilhas! O que tens de bom, que é o teu gênio, elegante e claro, lá o receberei na Serra pelo correio.”
           Dessa maneira, o percurso de Fernandes se revela mais conservador e individualista do que o de Jacinto, o que reforça o sabor burguês das suas ressalvas, em Paris como em Tormes, ao comportamento e às idéias do seu “príncipe”. E é provavelmente desse caráter da personagem narradora, da sua perfeita caracterização, que decorre a tentação, por muitos experimentada, de fugir à ironia constitutiva do romance e atribuir ao autor, ou à sua intenção, o caráter conservador que o romance – de Zé Fernandes, não o de Eça – traz à evidência.



[1] Jacinto do Prado Coelho, “A tese de ‘A cidade e as serras’”. In A letra e o leitor. Lisboa: Moraes Editores, 1977, pp. 169-174. A primeira edição do livro é de 1969.
[2] Antonio Candido. “Eça de Queirós entre o campo e a cidade”. Livro do centenário de Eça de Queirós. Reproduzido com o título “Entre campo e cidade” em Tese e antítese. São Paulo: T. A Queiroz, 2000.
[3] Antonio José Saraiva. A tertúlia ocidental – estudos sobre Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz e outros. Lisboa: Gradiva, 1995.
[4] O caráter de museu ou sala de exposição que possui o apartamento de Jacinto é evidente ao longo do livro. No final, quando Zé Fernandes o visita, esse caráter explicita-se, agora em negativo, quando o narrador observa as coisas desusadas, como já dispostas num museu, para exemplificar a instrumentação caduca dum mundo passado”, p. 243.
[5] Miguel Tamen já notara a estrutura em quiasmo, que faz equivaler, nesta passagem “Zé Fernandes-da-cidade a Jacinto-das-serras”, por meio da “vaga tristeza da minha fragilidade”. “Fazer Arcádia”. In A cidade e as serras – uma revisão, pp. 31-2.
[6] É provavelmente a essa forma de compreender a reforma das condições de vida dos pobres nos seus domínios que Jacinto se refere, quando, no capítulo XIII, depois de ser confundido com agente miguelista, declara ser socialista.

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